[Não é de meu gosto nem uso autobiografar-me, em particular publicamente. Todavia, a convite do Público através de Manuel Carvalho, que me contactou e explicou o contexto, considerei que seria deselegante declinar o convite que muito amavelmente me foi transmitido. Então aqui vai.]
Desde bastante novo me inclinei para tirar um curso de agronomia. Porquê, talvez por ter vivido durante muito tempo numa pequena quinta da família, em Vila Nova de Gaia. Embora de reduzida dimensão viviam-se as diversas actividades agrícolas, incluído a produção de vinho para consumo familiar, a partir de vinhas em ramadas para o tinto e de uma parcela conduzida em forma baixa para o branco. Chegada a idade de concorrer à Universidade, a minha convicção de seguir agronomia mantinha-se. E lá marchei para a capital, no comboio-correio da noite (de toda uma noite inteira), para me inscrever no Instituto Superior de Agronomia e arranjar quarto.
Esperava-me uma nova vida de cinco anos, da qual guardo boas recordações. Concluído este período fui fazer estágio na Junta de Colonização Interna no Porto, sob o tema da gestão de uma cooperativa de pequenos agricultores rendeiros do Vale do Sousa. Ainda não era a viticultura, mas pelas vinhas (dos Verdes) andei, calcorreando caminhos enlameados, o acesso às propriedades agrícolas onde se cultivava de tudo um pouco, incluindo o vinho americano produzido pelos “enforcados” e “arjoados”, típicos da região. Seguiu-se o serviço militar obrigatório.
Terminada a comissão, regressando à então chamada Metrópole, iniciei o meu trabalho profissional na Divisão de Viticultura da Estação Agrária do Porto. Confesso que não era propriamente esta área em que tinha pensado, mas foi um bom encontro, pois apesar do trabalho ser então um tanto rotineiro, o contacto com a realidade do campo aliciava-me e muito me ensinou em vários aspectos.
Entretanto surge o 25 de Abril, acontecimento que muito alterou o dia-a-dia das nossas vidas. As componentes meramente técnicas deram lugar a intervenções de carácter mais político, para rearranjo de estruturas, neste caso agrícolas, e a minha vida de agrónomo alterou-se igualmente. Apesar da despolitização praticamente generalizada em que a maioria dos Portugueses se encontrava, alguém deve ter pensado que eu seria um bom elemento para o processo revolucionário em curso (PREC), e então vai daí que surge o meu nome em Diário da Republica para a Comissão Liquidatária dos Grémios da Lavoura do Distrito do Porto.
Era uma comissão de três elementos. Liquidámos uma porção de Grémios dando lugar a Cooperativas, o que no fundo se traduziu num “vira o disco e toca o mesmo”… Ainda ofegante de tão mortífera tarefa surge a oportunidade de fazer um estágio na École Superieure Agronomique de Montpellier. Foram três meses muito proveitosos para a minha formação, sob a orientação de dois grandes mestres, os Professores Jean Branas e François Champagnol, estágio que haveria de repetir mais tarde, sob a orientação do Professor Denis Boubals. Entusiasmado com novas ideias a ensaiar na região dos Vinhos Verdes, esperava-me contudo mais um “biscato”. Agora era a versão nortenha da Reforma Agrária traduzida na Lei do Arrendamento Rural. Punham-se as questões de actualização ou contestação de rendas, ou de acções de despejo por incúria do arrendatário.
A Comissão era constituída também por três elementos, sendo um nomeado pelo Governo e dois de campos políticos diametralmente opostos, atendendo à conjuntura política que então se vivia. Pese embora o facto de ter sido um período “divertido” e até pacífico, não era propriamente a actividade que eu queria e para a qual tinha tido preparação académica. Surgiram então dois telefonemas, dos colegas Bianchi de Aguiar e Arnaldo Dias da Silva, a “aliciarem-me” para ir para Vila Real, a fim de dar aulas de viticultura no então Instituto Politécnico. Com a minha mulher lá fomos ver o que se passava. Decidimos mudar de rumo e de terra. Custou um pedaço deixar a nossa casa de Miramar mas, estava decidido. De armas e bagagens num velho 4L, com os nossos três Filhos, lá abalámos pelas curvas do Marão. Nessa altura eram umas três horas de viagem, e de enjoo de alguns dos ocupantes mais pequenos.
Dar aulas era coisa que nunca me tinha passado pela cabeça, mas a vida às vezes prega destas partidas. Tive de passar uns tempos de estudo para actualizar os meus conhecimentos, aprofundar matérias, preparar as aulas. O que é facto é que a minha vida profissional só então se iniciou verdadeiramente, quer sob o ponto de vista académico, quer sob o de Agrónomo orientado para a viticultura. O estatuto da nossa actividade incluía naturalmente não só a docência mas também, obrigatoriamente, a investigação a diferentes níveis de objectivos e de aplicação. Nesse sentido a componente experimental era fundamental, neste caso para o desenvolvimento da vitivinicultura da Região do Douro, que muito se encontrava carente, sobretudo face aos novos modelos vitícolas decorrentes sobretudo da necessidade de mecanização para obstar à escassez crescente de mão-de-obra, a que o PDRITM (um plano de modernização da agricultura financiado pelo Banco Mundial nos anos de 1980) teve particular atenção.
Por outro lado, o conhecimento mais aprofundado de cada casta era ainda bastante empírico e difícil de interpretar, já que as castas se encontravam misturadas em cada parcela e não de forma individualizada. Ora, em finais da década de 70 recebi um desafio por parte do meu colega e amigo Antero Martins, para iniciarmos a selecção clonal de castas, o que na altura não existia ainda em Portugal. Por sugestão do Eng. Gastão Taborda, do CEVD (Centro de Estudos Vitivinícolas do Douro), demos prioridade à Touriga Nacional, que ele considerava ser a melhor casta para vinho do Porto, mas que estava em vias de extinção devido à sua baixíssima produtividade e à sua sensibilidade ao “desavinho”, o que aliás foi confirmado durante a fase de prospecção, durante quatro anos, em vinhas ao longo das regiões do Douro e do Dão.
Outras castas se seguiram, envolvendo várias dezenas de técnicos e de auxiliares, em apoio a campos experimentais, não só no Douro como em todas as regiões vitícolas do País. A selecção da videira e trabalhos de índole vária sobre aquela casta, foram aliás como que um fio condutor da minha carreira de investigação/experimentação, incluindo a Tese de Doutoramento. Para a preparação da tese obtive contributo valioso por um estágio frequentado na Universidade de Davis, na Califórnia. Para além daquela actividade, exerci na UTAD (Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro) outras funções, tais como a Coordenação do curso de Enologia, durante meia dúzia de anos, e a Coordenação pela UTAD, do International Master of Enology and Viticulture (Master Vintage), que envolveu oito universidades europeias, uma da África do Sul e outra do Chile, desde 2000 a 2016, o qual me deu a oportunidade de leccionar na Universidade Pontifícia de Santiago do Chile e de conhecer a sua viticultura de vários países e regiões da América do Sul e da Europa.
Voltando atrás, aos inícios da década de 80. Tive então a oportunidade de conhecer o Eng. Jorge Ferreira, administrador da Casa Ferreirinha, pessoa de qualidades humanas e de instinto empresarial, que me desafiou nessa altura, em que o Douro renascia em inovações técnicas e sociais importantes, para liderar dois projectos vitícolas: um, na reconversão da Quinta do Seixo, que a empresa acabara de adquirir; outro para implantar uma vinha de raiz em Almendra, que haveria de ser a já famosa Quinta da Leda.
Para a primeira, a reconversão das velhas vinhas, semiabandonadas, optou-se pela instalação de “vinha ao alto”, solução que na altura também já estava sendo posta em prática pela Ramos Pinto através do João Nicolau de Almeida; na Leda, tratando-se de um projecto quase virgem na zona naquela fase inicial, escolheram-se as castas mais recomendáveis e adoptou-se pelo sistema de poda tradicional, não só porque os podadores, que vinham de Cambres, a sabiam fazer, mas também como a forma mais adaptável às situações de extrema secura estival e inexistência de rega. Tanto um como o outro projecto foram acompanhados na componente enológica pelo colega e amigo José Maria Soares Franco, não esquecendo a inestimável e imprescindível concretização no campo por parte do Sr. Joaquim Fernandes.
Quando da aquisição da Casa Ferreirinha pela Sogrape, passei a ser também seu consultor vitícola, não só no Douro, mas também noutras regiões vitícolas: nos Vinhos Verdes, para reconversão parcial das suas vinhas; na Bairrada, na Quinta de Pedralvites; no Dão, o projecto de instalação das vinhas na Quinta dos Carvalhais; no Alentejo, a primeira fase de instalação da vinha na Herdade do Peso, esta em parte usufruindo de ensinamentos adquiridos da Leda. Provavelmente com base naqueles dois projectos iniciais, outras consultorias se lhes seguiram: Quinta do Crasto pelo Jorge Roquete; Vale do Meão, pelo Vito Olazabal; Quinta do Vallado pelo Jorge Ferreira; Herdade da Quinta Grande, em Coruche, de Graça Ribeiro da Cunha; Quinta de Matamouros, no Algarve, por Vasco Pereira Coutinho.
Esta experiência profissional, possibilitou a elaboração de várias publicações, de divulgação e de carácter didático, entre as quais, motivado academicamente pela necessidade de apoio aos alunos, de um livro sintético e actual sobre viticultura, em língua portuguesa, que proporcionou a atribuição de um prémio internacional pelo OIV (Ofice International de la Vigne et du Vin).
Hoje em dia, ainda presto assistência técnica a várias empresas, no Douro, nos Vinhos Verdes, no Douro Superior, na Beira Alta, no Alentejo, em Bucelas e no deserto do Namibe, em Angola, e o privilégio de manter estreitas ligações com a UTAD na qualidade de Professor Emérito.