Fugas - Vinhos

  • Manuel Roberto
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Entre o Pico e São Jorge com vinho, queijo e conservas

Por Pedro Garcias

A melhor companhia para os licorosos do Pico é o queijo de São Jorge. E o melhor parceiro das conservas de São Jorge é o branco seco da ilha do Pico. Viagem rápida ao melhor dos Açores.

Era uma viagem para ver vinhas e provar vinhos, mas é impossível ficar por aí quando o destino é o Pico e a ilha vizinha de São Jorge, nos Açores. Foram três dias sempre a correr, mas os suficientes para constatar mais uma vez que quem não conhece estas ilhas, e todas as outras do arquipélago, não conhece uma boa parte do melhor de Portugal.

A sério, a sério, a viagem de seis dos oito elementos do painel de provas especiais do FUGAS, começou com um almoço no restaurante Saca Rolhas, no lugar da Relva, a poucos quilómetros de Ponta Delgada. É um dos melhores da ilha de São Miguel. Um branco do Pico, o Curral Atlantis Verdelho-Arinto, um poço de fruta madura, salinidade e frescura atlântica, foi a introdução perfeita no admirável mundo novo dos brancos açorianos e a companhia certa para uma belíssima sopa de peixe e um extraordinário cherne assado com arroz caldoso. Não há forma de evitar os adjectivos: pode correr-se meio mundo que é difícil encontrar uma comida tão bem feita e tão saborosa.

Já no Pico, o dia seguinte começou com uma prova cega de brancos e licorosos açorianos no premiado (pela arquitectura) restaurante Cella Bar, situado mesmo em cima do mar, no lugar da Barca, concelho da Madalena, município que este ano ostenta o título de “Cidade do Vinho” (sobre os resultados dessa prova e a revolução vitivinícola que está a acontecer no Pico, escreveremos numa próxima edição). O almoço foi no concelho vizinho de São Roque, no restaurante Casa Âncora, propriedade de um casal russo. O bom gosto que perpassa na arquitectura e na decoração do restaurante estende-se à cozinha e à aposta nos produtos locais. Magnífico o polvo com puré de batata doce. Melhor só o fantástico caldo de peixe servido no final da viagem no restaurante Parisiana e o atum braseado que alguns comeram, no segundo dia, no restaurante Encoradouro, ambos na Madalena.

Se a Madalena é a capital do vinho, São Roque é a “Capital do Turismo Rural” dos Açores. O nome está registado e, mesmo que ainda não seja bem justificado em número de alojamentos, é um belo chamariz. O lugar é belíssimo, sempre com vista para a ilha de São Jorge e povoado de piscinas naturais. Em tempos, foi um importante pólo da indústria baleeira (mas sem a importância do pólo das Lajes do Pico).

O estertor da baleação açoriana ocorreu, de resto, em São Roque, onde foi caçado o último cachalote. A fábrica de então é hoje um museu, que guarda as memórias de uma actividade, a baleação, mais perigosa mas com a mesma dimensão de heroísmo da aventura de fazer vinho a partir da lava. Os habitantes do Pico sempre trabalharam no mar e na terra. Nunca foram uma coisa só. Agora, com a caça à baleia proibida, estão a reconverter-se ao “whale watching” e a recuperar as vinhas que a filoxera e o abandono foram soterrando.

Para conhecer um pouco da história vitivinícola da ilha, o melhor é passar pelo panorâmico Museu do Pico (Toledos, junto à vila da Madalena), onde parcelas de vinha coabitam com dragoeiros seculares. Mas, para se perceber realmente toda a poesia e sacrifício que se encontram em cada gota de vinho do Pico é necessário ir às vinhas e percorrer as curraletas de pedra negra que protegem as videiras dos ventos salgados. É uma paisagem de enorme dramatismo e beleza construída de forma épica pelos picarotos, hoje classificada como Património Mundial.

O núcleo principal de vinha situa-se na zona da Criação Velha, mesmo de frente para a ilha do Faial e onde o comendador Manuel Serpa, ex-padre, político reformado e verdadeira enciclopédia viva, deu uma verdadeira lição de história ao grupo. É um imenso e reticulado lajido de cujas curraletas saem os vinhos mais maduros da ilha, em especial da casta Verdelho, a base dos tradicionais licorosos, vinhos com 16 a 19 graus de álcool, normalmente não aguardentados, envelhecidos em pipas de muito uso e com um aroma e um sabor desconcertantes. Quem está habituado a Porto Tawny e a Madeira, pode estranhar. Mas, aos poucos, é difícil ficar indiferente e não gostar destes vinhos secos ou meios secos de grande salinidade e frescura.

Os licorosos mais surpreendentes encontram-se muitas vezes em casa de pequenos viticultores, em especial da zona da Criação Velha. Viticultores como António Tavares, que todos os anos faz umas poucas centenas de litros de Verdelho. Espreitando a pequena adega, ninguém daria um cêntimo pelo seu vinho. Mas o seu Verdelho, seco, salino e com uma acidez pungente, foi um dos melhores que se provaram. 

Não há nada que rivalize com a zona da Criação Velha. As suas vinhas de lajido são as mais cobiçadas da ilha. Mas há um outro lugar que começa a ser falado: São Mateus. É aqui que a Azores Wine Company, de António Maçanita, Paulo Machado e Filipe Rocha, está a erguer a maior vinha contínua do Pico. São cerca de 40 hectares de curraletas, até há bem pouco tempo povoadas de faias e incensos. A mesma empresa – envolvida em projectos de recuperação das castas Verdelho, Arinto dos Açores e Terrantez do Pico e que tem vindo a produzir alguns dos mais entusiasmantes brancos dos Açores, todos monocastas - está também a recuperar vinhas na zona das Bandeiras, na costa norte, e vai participar ainda num projecto de enoturismo em São Roque. Ao todo, a Azores Wine Company irá ficar com uma área de cerca de 100 hectares de vinha, mais ou menos 10 por cento do total da área de vinha da ilha.

Nessa altura, será o maior operador privado. Hoje, disputa esse estatuto com a Curral Atlantis, a primeira empresa a engarrafar vinhos estremes no Pico e cujo consultor enológico é Paulo Laureano. Os seus Arinto e Verdelho-Arinto são brancos com uma tensão e uma frescura fabulosas. O  grosso da produção da ilha continua a ser assegurado pela Cooperativa Agrícola do Pico (produz entre 200 mil e 400 mil litros por ano), que tem vindo a renovar o seu portefólio, com a aposta em vinhos naturais, espumantes (muito bom o Gouveio, ainda por engarrafar) e em brancos com fermentação e estágio em barrica.

Um deles é o novo e interessante Espalamaca, ainda por engarrafar mas que pudemos provar pela primeira vez em São Jorge, no final de uma rápida incursão de um dia a esta ilha, iniciada com uma visita à queijaria Canada, que só utiliza leite cru de produção própria. A procura é tanta que os queijos são vendidos com um tempo máximo de cura de apenas quatro meses. Os queijos mais velhos, com 12 ou 24 meses de cura, os melhores, só são produzidos pela União das Cooperativas Agrícolas de lacticínios de S. Jorge, também a partir de leite cru. São queijos crocantes que pedem mesmo vinho, em especial licorosos do Pico, mas também brancos como o referido Espalamaca. Bebêmo-lo a acompanhar umas deliciosas conservas de atum aromatizadas Santa Catarina, produzidas também em São Jorge, e uma tenra e suculenta carne de vitela grelhada do Pico, cortesia da Associação de Agricultores desta ilha. 

Chamam a São Jorge a “Ilha Castanha”, mas só se for pelo queijo, porque a paisagem é tão verde como a de São Miguel. Ao longe, São Jorge parece uma baleia deitada. Ao perto, é uma ilha estreita mas muito montanhosa e pastoril.  Em dias limpos, é possível avistar dos seus pontos mais altos as ilhas do Pico, Faial, Graciosa e Terceira. Dos seus miradouros avistam-se também algumas das dezenas de fajãs que a erosão das escarpas foi criando. São pequenas manchas mais ou menos planas de terra arável, situadas mesmo junto ao mar. À maioria só se chega a pé, de moto quatro ou de barco. É o caso da Fajã da Caldeira do Santo Cristo, a mais famosa de todas, pela beleza do lugar e por ser um santuário de ameijoas, outra das atracções gastronómicas da ilha. 

A São Jorge, valha a verdade, só falta mesmo o vinho (até café produz, nas Fajã dos Vimes!) . Produz algum de “cheiro” (o chamado morangueiro), mas mesmo este tipo (menor) de vinho atinge outra qualidade no Pico. As famílias ricas do Faial sempre souberam do potencial do Pico para a produção de vinhos. Durante séculos, fizeram desta ilha lugar de férias e adega, condenando a população local a um estatuto social inferior. A “subserviência” só terminou com a filoxera, na segunda metade do século XIX. A praga arrasou as vinhas e os picarotos puderam comprá-las a bom preço, mesmo não as trabalhando. Como sublinhava Manuel Serpa,  “a filoxera foi a libertação do Pico”. Quem diria. Agora, donos únicos das suas terras, os picarotos estão a voltar-se de novo para a vinha e a começar a fazer vinhos de nível mundial. Sim, mundial. Não é nenhum exagero.

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