Como todos os álbuns, Astérix nos Jogos Olímpicos começa com uma panorâmica geral da aldeia gaulesa, o enclave de resistência ao domínio romano. Como sempre, há uma discussão entre os gauleses, mas só depois de Decanonix, o ancião, ter notado uma celebração no campo de Aquarium enquanto estava a apanhar cogumelos. Mas o que se passa no campo romano (desde que haja sempre romanos suficientes para eles se divertirem, os gauleses deixam-nos em paz) deixa de interessar, perante a bem mais importante discussão sobre a melhor forma de cozinhar cogumelos, sopa, omeleta, salada... Panoramix, o druida, tem a última palavra. Salteados, é como sabem melhor.
Mas este não é um álbum sobre cogumelos. A 12.ª aventura de Astérix, em pleno auge criativo da dupla Goscinny e Uderzo, transporta os gauleses para fora da aldeia e para dentro de um dos símbolos da Antiguidade clássica, os Jogos Olímpicos. Mas, tal como em todos os álbuns de Astérix (com maior ou menor subtileza; menor quando passou a ser apenas Uderzo a fazer os álbuns), a aventura está cheia de anacronismos, referências ao presente e estereótipos. Há muita coisa fora do lugar, mas é isso que se espera. Se fosse o contrário, era um livro de História.
Em Astérix nos Jogos Olímpicos, vimos Atenas pelos olhos dos gauleses. O Pártenon não é apenas um templo, mas também uma atracção turística, onde se vendem ânforas personalizadas. Na Atenas do século XXI, os vendedores de souvenirs proliferam em todo o lado. Vendem tudo, reproduções baratas de estátuas de bronze, em miniatura e em tamanho natural (e não necessariamente de bronze), garrafas de ouzo nos mais variados formatos - uma garrafa em forma de coluna grega é particularmente popular -, reproduções das imagens dos templos feitas à mão (ou talvez não), tudo artigos genuínos e típicos da Grécia. As lojas desouvenirs em Atenas são como as ruínas, estão em todo o lado.
Atenas é mais ou menos assim. Guias que têm um primo que arranja o alojamento mais barato, ou o transporte mais rápido, ou o bilhete difícil de arranjar para um determinado evento. Ou um primo que tem um restaurante bom e barato com vista para a Acrópole. Que irá servir, sem dúvida, legumes recheados, grelhadas mistas, saladas de queijo feta, entre outras coisas. Acompanhado, claro, de "vinho resinoso", o retsina, um vinho grego aromatizado com resina, que, na Antiguidade, era usada como conservante. Nada disto agrada aos turistas gauleses, pouco dados a novos sabores, que preferem cerveja e javali - trouxeram uns quantos da Gália, indispensáveis para a dieta equilibrada da comitiva romano-gaulesa.
O mesmo guia também irá recomendar um bar, que, coincidência, também é do seu primo - o Invinoveritas. Há muitos assim em Atenas, onde se ouvem os sons do mais internacional dos compositores gregos, Mikis Theodorakis, e se dançará à moda de Zorba, tal como Anthony Quinn ensinou a Alan Bates e que o mundo viu nos minutos finais do filme Zorba, o Grego. Foi esta a música que se ouviu antes de cada uma das finais dos Jogos Olímpicos de Atenas em 2004, desde o estádio olímpico com a dispendiosa cobertura feita por Santiago Calatrava até às provas de hipismo em Markopoulo.
Atenas ontem e hoje
Atenas está bem longe de ser o paraíso idílico que Astérix e os outros gauleses visitaram. O trânsito é uma marca registada, assim como a poluição, que paira como uma enorme nuvem sobre a cidade, cuja expansão se perde de vista mesmo quando se está num miradouro. Cidade antiga, com marcas de várias civilizações que estão sempre a aparecer. Qualquer buraco que se faça no chão de Atenas pode resultar numa escavação arqueológica.
Na Antiguidade, os Jogos Olímpicos eram sinónimos de tréguas, em honra de Zeus, o pai dos deuses. Olímpia era o palco, e apenas aqueles que falavam grego eram elegíveis. No início durava apenas um dia e havia apenas uma prova, uma corrida de cerca de 240 metros que correspondia a uma volta ao estádio. Mais tarde, tal como depois aconteceu na era moderna, cresceu em duração e número de eventos, mais corridas e desportos de combate, como o boxe, a luta e o pancrácio (que inclui elementos das duas primeiras).
No ano 50 a.C. já Atenas estava sob o domínio romano e os Jogos estavam reservados a gregos e romanos. Isto representava um problema para a aldeia, o único pedaço da Gália que os romanos não conquistaram, mas Astérix e os outros não querem falhar a glória olímpica e, num momento raro (o outro é quando decidem alistar-se na legião em Astérix Legionário), decidem que, por Toutatis, são romanos e, portanto, elegíveis para participar nos Jogos, ao lado do único representante de Rodes (que é, naturalmente, um colosso) e dos espartanos, que desfilam descalços e só comem caroços de azeitona e banha - mas, mesmo eles, não resistem às iguarias que se comem nas comitivas "decadentes" e querem, eles próprios, "decandentar" com vinho e bifes do lombo.
Uma das coisas em que Goscinny e Uderzo acertaram em cheio foi na proibição das mulheres em assistir e participar nestes Jogos da Antiguidade. Na verdade, as mulheres solteiras podiam assistir às competições dos homens, enquanto as casadas estavam proibidas de entrar em Olímpia. Esta proibição ainda se manteve nos primeiros Jogos da Era Moderna em 1896, mas, quatro anos depois, já não existia - a igualdade de género nos Jogos tem sido, aliás, algo bastante difícil de alcançar; apenas em Londres 2012 todos os eventos tiveram versões masculinas e femininas, sendo que, em número de atletas, os homens continuam em maioria.
A 6 de Abril de 1896, os Jogos Olímpicos regressaram a casa, por acção de um aristocrata francês, Pierre de Fredy, o Barão de Coubertin. Não foram em Olímpia, mas em Atenas, receberam 241 atletas (apenas homens) de 14 nações (Portugal não esteve presente) e decorreram no Estádio Panathinaiko. A ideia inicial dos organizadores gregos era manter os Jogos em Atenas para sempre, mas Coubertin já se tinha comprometido em levar o evento para Paris em 1900 - foram um fracasso, tal como em Saint Louis, 1904; os Jogos só recuperaram o seu brilho quatro anos depois, em Londres. Voltariam a casa em 2004, para os XXVIII Jogos Olímpicos da Era Moderna. Cento e oito anos depois, os segundos Jogos de Atenas já eram um verdadeiro ritual global da humanidade: 10.625 atletas de 201 países.
Nestes Jogos de Astérix há algo que se mantém até hoje, a vontade de ganhar a qualquer preço. A poção mágica foi sempre uma arma de resistência contra os invasores romanos e iria servir para ganhar os Jogos Olímpicos, mas tal é contra os regulamentos. Obélix não pode entrar e Astérix tem de correr limpo. Só que os romanos não querem deixar nada ao acaso e, na última corrida, entram em prova com o doping da poção gaulesa. A língua azul de todos os romanos denuncia a batota e é Astérix quem ganha a corrida. A história olímpica moderna está recheada de vencedores batoteiros, a mais famosa de todas a do canadiano Ben Johnson, vencedor em pista dos 100m em Seul 1988, mas desqualificado por doping, com a vitória a ser atribuída ao norte-americano Carl Lewis.
Houve uma adaptação cinematográfica de Astérix nos Jogos Olímpicos(em 2007), com liberdades criativas que nem sempre resultam. A presença de muitos ídolos do desporto francês, como Tony Parker ou Zinedine Zidane, pouco fazem pelo filme, mas há um acrescento que resulta em pleno e que faz justiça às tais notas de actualidade que eram a especialidade de Goscinny. Uma das provas da versão cinematográfica é a corrida de quadrigas (que não existe nos álbuns) e a equipa favorita à vitória era composta por uma dupla que fez furor na Ferrari e na Fórmula 1. Jean Todt, antigo patrão da equipa de Maranello e actual presidente da Federação Internacional de Automobilismo, era o director desportivo, Michael Schumacher era Schumix, o germano, condutor de uma quadriga totalmente vermelha.