São cinco da tarde e estamos sentados onde se deve estar a esta hora no Funchal: no terraço do Hotel Reid’s, à espera do chá. Sentimo-nos parte de uma linhagem de viajantes de espírito tão britânico que, aconteça o que acontecer, às cinco da tarde param para o chá. E o tempo pára com eles.
Ou melhor, tudo pára, à excepção da dança dos empregados que vêm da cozinha e rodopiam à nossa volta transportando os pratos de três andares com as sanduíches de pepino, de queijo, de salmão e de camarão. Dizem as regras que estas devem ser comidas primeiro, com o chá que entretanto escolhemos da longa lista. Só depois virão os pratos com os delicados bolos enfeitados com flores, frutos e cremes coloridos. E, claro, os famosos scones.
O livro I had tea at Reid’s, de Andreas Augustin, vende-se no hotel e apresenta-se como a companhia ideal para o chá das cinco no caso de estarmos sozinhos (o preço é de 33,5 euros por pessoa). É aí que, entre toda a história do chá em geral e deste em particular, aprendemos as regras que durante séculos terão ajudado a classe alta inglesa a sobreviver em qualquer lugar do mundo, não importa a distância de Inglaterra.
Somos informados que o leite deve sempre ser deitado na chávena depois do chá. Há uma explicação para isso: só as chávenas de boa porcelana aguentavam o chá à temperatura a que este deve ser feito — deitá-lo primeiro na chávena, com confiança, era sinal de que se estava a usar a melhor porcelana. Já em relação a outra questão fundamental — nos scones devem-se colocar primeiro as natas (ou a manteiga) e depois a compota ou ao contrário? —, Andreas Augustin esclarece que os especialistas nunca chegaram a um consenso.
Ocupados com estes dilemas existenciais, temos à nossa frente, emoldurado pelas árvores, o Atlântico. É em direcção a ele que se derrama o Funchal, colina abaixo, à nossa esquerda. O oceano aparece recortado por entre as letras REID’S, colocadas do lado exterior do terraço, anunciando aos viajantes vindos de barco que ali, no topo de um rochedo escarpado, fica um dos mais famosos hotéis de luxo do mundo.
Foi nisso que terá pensado o escocês William Reid quando, em 1888, escolheu este rochedo para construir aquele que na altura baptizou como Reid’s New Hotel: que os viajantes se aproximariam da Madeira por barco e veriam, como um pequeno castelo na rocha, o seu estabelecimento.
Reid conhecia bem a ilha. Tinha chegado num navio vindo da Escócia em 1836, apenas com 14 anos e, reza a história, cinco libras no bolso. Era um dos 12 filhos de um fazendeiro de Kimarnock e, como tinha a saúde frágil, tinha sido aconselhado pelo médico a mudar-se para um clima mais quente. Chegado ao Funchal, começou por trabalhar numa padaria e mais tarde dedicou-se ao negócio dos vinhos.
Por isso, há muito que Reid observava a chegada de estrangeiros à Madeira, que desde o século XVIII se tornara um dos mais famosos centros mundiais para o chamado “turismo terapêutico”. Acreditava-se que os ares da ilha eram benéficos para quem sofria de tuberculose e a Madeira habituara-se a ver chegar os “tísicos”. Entretanto chegavam também, cada vez mais, os aventureiros interessados pela fauna e flora e que se dedicavam ao turismo botânico.
William Reid via que todos estes visitantes procuravam alojamentos e nem todos queriam ficar num ambiente de sanatório. O jovem escocês começou então a servir de intermediário no aluguer de quintas de lazer que existiam em vários pontos da ilha. Foi o início de um império hoteleiro que teria no Reid’s o seu mais luxuoso exemplar — embora William Reid não tenha vivido o suficiente para o ver terminado, tendo morrido em 1890, um ano depois do início da construção, a cargo do arquitecto George Somers Clarke.
Foram dois dos seus filhos, Willy e Alfred, que no ano seguinte inauguraram o hotel, na altura muito mais pequeno do que é hoje (toda a ala este foi acrescentada apenas em 1990). Um guia de 1891 anunciava que o Reid’s New Hotel servia uma “excelente carne de vaca” e que se o “fiambre e bacon” eram importados “de uma quinta inglesa”, toda a fruta e vegetais eram locais. E enumerava uma série de frutas exóticas que crescem na Madeira, concluindo que “as bananas existem o ano inteiro”. Também os vinhos “nacionais e importados” eram “disponibilizados a preços módicos” e incluíam “todas as variedades de vinho da Madeira”, além “de todas as famosas marcas de champanhe”. O hotel, que ficou nas mãos da família Reid até 1925, pertence hoje ao grupo Belmond (antigo grupo Orient-Express), que o rebaptizou como Belmond Reid’s Palace.
Banho no mar e orquestra
O que faziam então os visitantes da Madeira que, depois de uma longa viagem de navio, passavam na ilha vários meses ou até um ou dois anos? Muitos deles não saíam do hotel, onde havia sempre inúmeras actividades. Os cartazes publicitários do Reid’s dos anos 1920 anunciavam o “banho privado no mar” — hoje, apesar da construção de duas piscinas modernas, a piscina marítima continua a existir e é possível descer as escadas para dar um mergulho no mar. O que já não existe é a orquestra que “durante as horas do banho” tocava junto ao “elevador eléctrico” que transportava os hóspedes do terraço até ao cais para banhistas.
Nesses cartazes a Madeira é promovida como um destino de “happy sunny days” e há um slogan que aparece repetidas vezes pela importância que teria certamente junto dos ingleses: “No rain, no dust”. Clima perfeito, portanto, para os mais aventurosos arriscarem passeios pela ilha. Foi essa ideia que finalmente nos arrancou do hipnotizante terraço do Reid’s para uma pequena excursão até ao Norte, atravessando a Madeira.
Não vamos nas redes carregadas aos ombros por dois homens, como acontecia antigamente — e como os cartazes também anunciam, com desenho exemplificativo. Passamos primeiro pela zona antiga do Funchal para uma breve visita ao Mercado dos Lavradores, onde de manhã cedo se pode ver a venda de peixe, com os atuns, o peixe-espada, as moreias, as bicudas estendidos sobre as bancadas de pedra, enquanto as exóticas frutas da Madeira, das muitas variedades de maracujá às enormes anonas, surpreendem os turistas.
Logo ao lado fica o renovado Armazém do Mercado, uma antiga casa senhorial que foi uma importante fábrica de bordados e mais tarde serviu como armazém de apoio ao mercado. Reabriu em Dezembro de 2014 com diferentes espaços, do Atelier Gatafunhos para workshops (às quartas-feiras de manhã realiza-se a Madeira Cooking Experience) aos quiosques em contraplacado que podem ser alugados por várias lojinhas, até à Oficina, um restaurante que funciona numa antiga oficina de carros.
Damos um salto ao Museu do Brinquedo (que se mudou para aqui há um ano) para ver os perto de 12 mil brinquedos coleccionados ao longo do tempo por José Manuel Borges Pereira, dos mais antigos carrinhos da Dinky Toys até aos super-heróis dos anos 1990 e a uma colecção de Barbies, passando por um exército nazi feito pouco depois da II Guerra Mundial (as suásticas tiveram que ser pintadas nos Estados Unidos, porque na Europa não era permitido).
E terminamos sentados no pátio interior do Armazém, na esplanada de A Malga, a ouvir Carlos Diogo Pereira, dos History Tellers, grupo ligado à Associação Académica da Universidade da Madeira, contar-nos como foi aqui, na zona onde nos encontramos, que nasceu a cidade do Funchal no início do século XV, por entre navegadores, freiras, piratas, muito açúcar e alguns escândalos.
Voltar a tempo de jantar
Mas temos que seguir viagem. Não demoraremos dias, como acontecia nos primórdios do turismo. Temos o teleférico que nos leva por cima do Funchal até ao Monte, a 550 metros de altitude. De repente o céu põe-se escuro e aquilo que inicialmente parece uma chuvinha fraca transforma-se numa chuva mais convicta — tão convicta que decidimos não seguir o programa inicial que nos levaria ao Pico do Areeiro, a 1800 metros de altitude.
Abrigamo-nos por momentos debaixo do telheiro da velha estação do Caminho de Ferro do Monte, que entre 1893 e 1943 unia o Funchal até ao sítio do Monte por um comboio de cremalheira a vapor. Em 1912, esta linha, muito popular entre os turistas (e que veio substituir o transporte em redes) foi alargada até ao Terreiro da Luta. Uma placa ao lado da estação explica que esta era “ponto de paragem obrigatório de quase todos os visitantes do Funchal no início do século XX e o passeio favorito dos habitantes da cidade.” Também aqui Reid tinha um hotel, o Mount Park.
No clima mais fresco do Monte fugia-se ao calor do Verão no Funchal em simpáticas quintas de lazer. Hoje estamos em época de turismo activo e de natureza e a Madeira está cada vez mais a promover inúmeras actividades, do trail ao canyoning, passando pelo parapente ou o safari de jeep. Nós optamos por um menos radical passeio pelas levadas e este até relativamente curto (cerca de três quilómetros) que nos leva de Ribeiro Frio até Balcões e a uma vista deslumbrante sobre as montanhas das quais os farrapos de nuvens começam já a despegar-se.
Voltamos ao século XIX para tentar imaginar como seria então atravessar toda a ilha, do Funchal a Santana, no Norte — exactamente o caminho que agora percorremos de carro. A viagem era longa, com inevitáveis paragens pelo meio. Contam-nos que a tradição das espetadas da Madeira pode ter origem nestes passeios, em que se comia a carne de vaca nos espetos do loureiro (na altura havia muito mais vacas na Madeira, assim como produção de leite e queijo, embora hoje mereça destaque o requeijão feito no Santo da Serra).
Entretidos com estas conversas chegamos a Santana, à Quinta do Furão, onde somos recebidos com um vinho da Madeira com gelo e um almoço com o famoso peixe-espada com banana e maracujá acompanhado por um folhado de espinafres e queijo de cabra. Estamos na costa Norte e em princípio o clima é um pouco mais fresco, mas hoje é exactamente o contrário: o Funchal está mais cinzento e aqui o sol brilha. A Quinta do Furão tem vinha, um hotel desde 1997 e um restaurante desde 1993, perto do local onde décadas antes William Reid teve também um dos seus hotéis.
Como estamos no século XXI conseguimos voltar ao Funchal não a tempo do chá das cinco mas do jantar, que pode ser no italiano Villa Cipriani, no renovado William ou no histórico The Dining Room, onde acontecem jantares dançantes, com música ao vivo pela banda residente, e os Champanhe Gala Buffet. O cenário é impressionante e os hóspedes são aconselhados a vestirem-se “para impressionar”.
A exigência de um dress code rigoroso foi abandonada pelo Reid’s em 1990. Antes disso, contudo, era obrigatório num hotel em que (em diferentes épocas, claro) tanto nos podíamos cruzar com a imperatriz Sissi da Áustria a celebrar o seu aniversário como com o primeiro-ministro britânico Winston Churchill a pintar um quadro ou com o escritor George Bernard Shaw a ter lições de tango.
Joachim Koerper no restaurante William
O rosto do fundador daquele que é hoje o Belmond Reid’s Madeira recebe-nos à porta do restaurante de fine dining renovado no Verão passado e rebaptizado como William, homenageando William Reid. O restaurante passou a ter como chef consultor Joachim Koerper, do Eleven, em Lisboa, e como chef executivo Luís Pestana.
É aí que jantamos na última noite no Reid’s. Numa refeição na qual os chefs querem fazer brilhar alguns dos produtos da Madeira, começamos com três amuse bouche: bola de pato confitado com gel de caril, flã de requeijão com gelatina de cassis e puré de aipo e tártaro de bacalhau com tapenade. Depois mousseline de sapateira a que se seguiu o primeiro prato, cannelloni de foie-gras com vinho Madeira, financier de chocolate e café e chutney de pêra.
No prato seguinte, é a cenografia que imediatamente nos capta a atenção: trata-se de um tataki de bacalhau acompanhado por um consommé de crustáceos e flores, sendo a infusão de ervas, flores e camarão seco feita à nossa frente em balões de café. Veio depois um lavagante com couve-flor em texturas, algumas com beterraba, outras com açafrão e acompanhado por caviar. Como pré-sobremesa um delicadíssimo ravioli de framboesa com creme de limão e mousse de pistáchio. E por fim uma “geometria de chocolates, negro, de leite e branco com café”. Para quem preferir uma alternativa com mais sabor a Madeira, há um delicioso souflé de maracujá.
Para além da carta, em que o preço médio de uma refeição ronda os 80 euros sem vinhos, o restaurante tem três menus à escolha: o Menu William (74 euros), o Assinatura (98 euros) e o Menu Lavagante (160 euros).
A Fugas viajou a convite do Belmond Reid's Palace e da TAP
- Nome
- Reid's Palace Hotel
- Local
- Funchal, Sé, Estrada Monumental, 139
- Telefone
- 291717171
- Website
- http://www.reidspalace.com