Fugas - hotéis

Miguel Manso

O spa das águas milagrosas

Por Luís Maio ,

A Ponta da Ferraria, em São Miguel, é dos mais extraordinários troços da costa açoriana. E agora com spa termal e programas como não se vêem em mais parte nenhuma. Entrámos em águas milagrosas, saímos dez anos mais novos.

Vinte e um banhos prescrevia a receita clássica. Depois disso, no entanto, muitos dos que desciam a tortuosa vereda montados em jumentos, ou mesmo às costas de carregadores, conseguiam fazer o caminho de volta pelos seus próprios meios. É pelo menos o que reza a lenda das curas milagrosas proporcionadas pela "casa de banhos" da Ferraria, na ponta sudoeste da ilha de São Miguel, Açores.

O singelo edifício balnear remonta a 1888, vindo a encerrar algures na década de 50 do século passado. Entretanto, o caminho de cabras deu lugar a um ramal incrivelmente ziguezagueante, que pelo menos veio facilitar o acesso aos pontos de pesca e piscinas naturais, que bordejam este pedaço de costa. Agora a antiga casa de banhos deu lugar a um sofisticado spa termal, complementado por um colar de "valências", incluindo piscinas ao ar livre, parque de estacionamento e um apoio de praia.

O projecto de requalificação da Ponta da Ferraria é do Governo Regional e tem mais de dez anos. Durante todo esse tempo suscitou muitas reservas e até gerou desaguisados com os locais. Conheceu nessa medida várias formulações e mesmo hoje não é pacífico nem sequer está acabado. Não impede que o estabelecimento inaugurado em Agosto do ano passado se destaque pelo exotismo dos tratamentos propostos, a meio caminho do bem-estar e da fisioterapia. A mais-valia é a localização, quando a Ponta da Ferraria é certamente uma das paisagens naturais mais deslumbrantes (apetece dizer "místicas") de todo o arquipélago.

Sublime, colheita açoriana

O exotismo das Termas da Ferraria vem de empregarem águas de nascentes vulcânicas, que correm no subsolo (furos de 20 metros) a uma temperatura de 62º C. São necessariamente arrefecidas na mistura com águas extraídas do mar, que andam na casa dos 20º C. Este prodígio é mais um derivado da história de acidentes vulcânicos que esculpiram a paisagem açoriana. Na circunstância, julga-se que a erupção que originou a Ferraria e fez crescer o contíguo Pico das Camarinhas - que antes caía abruptamente sobre o mar -, ocorreu por volta de 1140, ou seja, ainda antes de a ilha ser colonizada.

O padre Gaspar Fructuoso (1522-1591), grande cronista das ilhas, não pode ter testemunhado a ocorrência, mas presume que nessa altura o Pico das Camarinhas "arrebentou e lançou de si, para a banda do mar, uma ribeira de fogo, que se meteu tanto pelo mar, que ocupou nele grande espaço, ficando onde antes era mar, um espaçoso e largo cais de biscoite (...) junto do dito cais, para a banda leste, sai uma formosa ribeira de água tão quente que nela se pelam leitões, coze peixe e escascam lapas" (Saudades da Terra). Os referidos biscoitos de pedra são, na verdade, camadas de lava solidificada, escuros como breu, que formaram uma estrutura aplanada ou delta espraiado pelo mar adentro. Chamaram-lhe Ferraria, certamente porque as escoadas de lava então emitidas se revelaram ricas em ferro.

O Pico das Camarinhas já tem pouco da luxuriante cobertura original de camarinhas ou tamarinheiros, frutos de emprego medicinal ceifados a eito em finais do século XIX. Mas a nudez empedernida que lhe sucedeu tem a virtude de realçar ainda mais o cone monumental, que se eleva a 200 metros de altitude sobre a fajã de basalto rendilhado a que deu origem. O negro profundo destas formações vulcânicas contracena por sua vez com a espuma branca das ondas que nelas embatem, recortando um cenário natural de excepcional fotogenia, que é a perfeita quintessência do sublime azorean style e certamente faria as delícias de Edmund Burke.

Os roteiros turísticos adoptaram a Ferraria como corolário de excursões à lagoa das Sete Cidades, até porque é lá que a estrada acaba e onde se desfruta do melhor pôr do sol de São Miguel. Antes o edifício termal em ruínas devia parecer lá plantado de propósito para acentuar o dramatismo das fotografias. Mais que contemplá-lo, no entanto, os locais foram ganhando o hábito de fazer zona balnear ali mesmo ao lado, numa pequena enseada onde a água do mar ronda os 40ºC. µ

Esta rara delícia levaria a prever enchentes que, no entanto, nunca se verificaram. Há, para começar, o factor distância: são 22 quilómetros de Ponta Delgada, o que para muitos açorianos equivale a 220. Mas não era só isso. Escreve António Ferreira Leite, no seu incontornável Um olhar de observação sobre os Ginetes (Assembleia de Freguesia de Ginetes, 2001): "Junto ao pequeno porto, a água termal mistura-se com a água salgada, o que propicia um banho delicioso e relaxante, que fazia o regalo dos poucos banhistas da década de 60 e 70, quando os banhos eram pouco procurados, em virtude de preconceitos que tiveram a ver com falsos pudores".

Jazz vulcânico

A requalificação da Ferraria não é um acto isolado. Faz parte de uma estratégia concertada de diversificação da oferta turística dos Açores, onde wellness rima com trekking e whale watching. O estabelecimento na ponta sudoeste de São Miguel concorre nesse segmento mais específico do turismo de saúde e bem-estar, destacando-se como o primeiro reaberto ao público de quatro antigos pólos termais intervencionados no arquipélago. Seguem-se as Termas do Carapacho (Graciosa), do Varadouro (Faial) e das Furnas (São Miguel).

O que veio a inaugurar no lugar da Ferraria é, no entanto, bastante diferente do que era para ser. O caderno de encargos inicial previa um hotel com spa integrado, o que implicaria alterar e semiprivatizar este escaninho de paraíso, por outro lado protegido sob a figura de Monumento Natural Regional. Uma pretensão de forma alguma aceite pelos locais, revolta que levou à reformulação do projecto e ao cancelamento da construção do hotel. Já não foi a tempo, pelos vistos, de impedir o surgimento de um apoio de praia sob a forma de um conjunto de volumes em vidro e betão, implantado à entrada das piscinas naturais. É por sinal uma obra bem bonita, com uma qualidade quase escultórica, mas nunca chegou a servir para nada, uma vez que foi concebida como anexo de um hotel que não chegou a ver a luz do dia.

Tem, portanto, essa poesia da arquitectura inútil. Em qualquer caso, quando o spa termal ficou pronto, o Governo Regional viu-se em mãos com um novo problema, uma vez que não apareceram candidatos ao concurso público de concessão entretanto lançado. A concessão acabou por ser directamente proposta e aceite por fisioterapeutas e executivos ligados ao Hotel do Caracol (Angra), que para o efeito criaram a empresa Palco Natural.

Sabrina no mar

O miradouro sobranceiro à Ponta da Ferraria e o próprio ramal (aqui chamado de rua) que lá vai dar respondem pela designação de Sabrina. É nome que se associa a princesas e contos de fadas, mas na circunstância refere-se a uma ilha de existência fugaz, por sua vez baptizada com o nome de uma chalupa inglesa, única embarcação que alguma vez lá aportou. O local onde a ilha emergiu, cerca de três milhas náuticas ao largo da costa, a 10 de Junho de 1811, hoje tem um fundo de 75 metros de profundidade. Ou seja, desapareceu sem deixar rasto, mas as vistas do miradouro debruçado sobre as falésias, com o farol centenário numa ponta e o edifício termal na outra, são de tal modo inebriantes que não custa imaginar os prodigiosos eventos eruptivos que ocorreram ali mesmo em frente e a espúria tentativa de colonização que se lhe seguiu.

A ilhota, que se formou em meia dúzia de dias, tinha forma circular, cerca de dois quilómetros de perímetro e 90 metros de altura máxima e uma configuração muito semelhante ao ilhéu de Vila Franca. Não passou um mês até que a enorme coluna de fumo que dela se levantava chamasse à atenção do capitão James Tillard da fragata britânica HMS Sabrina, que se encontrava em missão defensiva dos Açores de eventuais ataques das forças napoleónicas. Entretanto a ilhota foi crescendo, fazendo aumentar a cobiça do capitão inglês, que a 4 de Julho finalmente lá desembarcou para triunfalmente hastear a bandeira britânica. O eventual conflito diplomático resultante dessa folia conquistadora nunca aconteceu não apenas porque o governo português na altura estava refugiado no Brasil e totalmente dependente dos britânicos, mas sobretudo porque a Sabrina depressa foi varrida pela erosão marinha, desaparecendo do mapa apenas cinco meses depois de ter emergido. Não impede que se continue a sonhar que um dia reaparecerá, tal como certo rei, numa manhã de nevoeiro.

Terapia light

A Ferraria nunca será um spa termal igual aos outros, quando a sua "matéria-prima" são águas sulfúreas, quentes e de origem vulcânica. As suas virtudes terapêuticas, em especial no combate ao reumatismo, envolvem aconselhar os clientes a não tomarem duche com água da torneira à saída do spa (melhor só no dia seguinte), de forma a dar mais tempo à pele de absorver as águas ricas em enxofre. Antigamente, aliás, as pessoas nem sequer se lavavam com outras águas durante todo o período do tratamento.

Mas, para além de empregar essas águas únicas nas facilidades do costume (jacuzzi, banho turco, corredor de contraste com água fria, etc.), o spa açoriano introduziu um conjunto de tratamentos invulgares, sintonizado com a singularidade das águas que tem ao seu dispor. É o caso por excelência da Massagem Jazz, feita ao som de peças jazzísticas, onde a "manualidade" é adaptada ao ritmo da música. Nada das explosões a todo o vapor do free jazz, bem entendido, mas um jazz ligeiro à base de piano, propício a uma massagem doce, quase ternurenta, onde por vezes mal se dá pela tal "manualidade".

Outra especialidade da Ferraria é o PNF-Chi, técnica de exercício de baixo impacto, introduzido pelos fisioterapeutas do Hotel do Caracol em 2003. É, declara o folheto, "uma abordagem/modalidade de mobilização activa global que funde os princípios do padrão do movimento em diagonal do PNF (Proprioceptive Neuromuscular Facilitation) com o exercício lento, gracioso e ritmado do Tai Chi Chuan". Realizar uma sessão desta relaxante ginástica num ambiente como o da Ferraria é menos um exercício que uma verdadeira experiência sensorial.

A Fugas viajou a convite das Termas da Ferraria

Como ir
A Ferraria fica em São Miguel, a 22 quilómetros de Ponta Delgada, na freguesia dos Ginetes.

Quando ir
O spa termal está aberto o ano inteiro e nada melhor que ser "rei por um dia" (assim se chama um dos seus programas), quando lá fora está frio, enevoado e ventoso. Claro que nos dias de bom tempo é mais agradável abancar no exterior, à beira das piscinas naturais - as tais em que a água do mar está tão quente que só se consegue ir a banhos quando a maré sobe.

Onde comer
Os programas de um ou mais dias de tratamentos no spa termal da Ferraria, bem como os pacotes para empresas, incluem uma "refeição saudável". Uma ementa meeting and spa do chefe Alberto Silva tem por pratos principais tainha com sementes de sésamo e novilho da Terceira. Quem for à Ferraria só para passear e tomar banho nas piscinas naturais deve munir-se de farnel, ou contentar-se com gelados e pratos ligeiros, os únicos servidos sem reserva no restaurante do estabelecimento.

Onde ficar
Casa da Lenha, dos Pinhos e das Pedras
Lomba de Cima 8 - Ginetes, São Miguel
Tel.: 296295348
www.azorentour.de

Três vivendas rústicas, semeadas num prado nas alturas dos Ginetes, a dois passos da Ferraria. Esplêndido balcão sobre o Atlântico, sobretudo em dias de céu limpo, quando o sol se põe ali mesmo em frente. Para ajudar a passar as noites, mais de 200 canais de televisão (a maior parte alemães, país de origem dos proprietários) e uma garrafa de vinho tinto gratuita à chegada. Duplos desde 60€.

Nome
Spa Termal da Ferraria
Local
Ponta Delgada, Ginetes, Rua Ilha Sabrina - Ginetes
Telefone
296295669
Horarios
Todos os dias das 00:00 às 00:00
Website
http://www.termasferraria.com
--%>