Ela estava lá. Mas, a menos de trinta metros, não a vimos, quando, ao virar de uma esquina, entrámos na rua principal de Marialva. Não é que esteja propriamente escondida. A meia encosta no monte dos Bogalhais, ela é altaneira o suficiente para nos pôr diante dos olhos a vila recortada pelo tempo e pelo sol já baixo deste fim de tarde. Mas a sua singela estrutura em madeira e a envolvente de carrascos e sobreiros tornam quase imperceptível, na paisagem, este T0 onde haveremos de passar a noite. Um projecto de turismo sustentável dinamizado a partir de Espanha pela rede Rusticae, que os donos das Casas do Côro se apressaram a testar no arrabalde de uma das mais famosas aldeias históricas de Portugal.
A ecologia tinha de chegar ao turismo. Como terá, um dia, que chegar a todas as actividades humanas. E o turismo em espaço rural, ou o turismo de aldeia, como o que desenvolvem em Marialva Paulo e Cármen Romão, já parte em vantagem. Afinal, a reconstrução de património edificado e a dinamização económica de uma vila a envelhecer perigosamente em direcção ao despovoamento total são, também eles, gestos sustentáveis. O país precisa destes espaços de baixa densidade populacional, e não apenas para que o turista possa enquadrar o rosto de uma velhinha com o monumento em fundo para a fotografia. É uma questão de sobrevivência: a de quem vive aqui; e a de quem simplesmente está de passagem, como nós.
Acotovelados numa faixa estreita junto ao mar, estamos a multiplicar um conjunto de problemas que nos extenuam e nos fazem desejar umas férias num sítio pacato. Um lugar sem o frenesim do trabalho, do trânsito, das ruas cheias de gente apressada onde ninguém diz bom dia a ninguém. E Marialva é o negativo disso tudo. Na Rua da Corredoura, ou das misses, como carinhosamente lhe chama Paulo Romão, não há velhinha que não nos acene com um bom dia e, se tivermos vagar, ainda nos brindam com dois, três ou mais dedos de conversa. Paradas à porta de casa, de apanha-moscas na mão, elas marcam o ritmo lento deste lugar que sobreviveu à passagem dos aravos, romanos, godos, árabes, castelhanos. E que vem sobrevivendo, mesmo no reino de Portugal.
Esta vila que já foi condado e marquesado, terra dos Távoras antes destes caírem em desgraça às mãos de D. José I e do Marquês de Pombal, em 1758, foi decaindo em importância e, na reforma municipal de 1855, acabou despromovida a freguesia: de Foz Côa primeiro, de Meda, depois. E assim chegou aos nossos dias. Sem poder algum que não seja o de nos lembrar que somos um país com mais de oito séculos. Sem nobreza que não seja a de fazer parte de um núcleo restrito de aldeias portuguesas a que chamamos, precisamente por essa capacidade de nos puxar pela memória, históricas. Um epíteto que assenta bem a estas pedras que o tempo tomou de assalto, abandonando-as sem mais destruição, para que lhe consigamos ainda, à contraluz do sol matinal, vislumbrar o fulgor que já tiveram.
Paulo Romão diz que Marialva não fica a caminho de lugar algum, mas o percurso das suas Casas do Côro, que numa dúzia de anos passaram dos cinco quartos iniciais para um oferta total de 24 quartos (para já), e a Sociedade das Nações em que vemos transformado o seu restaurante numa sexta-feira, indicia que há muita gente que a toma como destino. E se os limites da aldeia, com os seus pouco mais de cinquenta habitantes na parte velha, parecem curtos para um programa de fim-de-semana, o novo IP2 tratou de pôr o Douro, as gravuras rupestres e o Museu de Arte e Arqueologia do Vale do Côa, uma das mais interessantes obras da arquitectura portuguesa contemporânea, a meia hora de distância. Perto de mais para qualquer desculpa.
Quase perfeito
A milhas da imponência do edifício que Pedro Pimentel e Tiago Rebelo desenharam para a encosta junto ao ponto de encontro entre o Côa e o Douro, a Suite dos Bogalhais, o pequeno parelipípedo de madeira que nos trouxe aqui, partilha, no entanto, uma mesma ambição de plena integração na paisagem. Ou não tivesse escapado à nossa vista, à chegada. Romão subiu e desceu este montículo à procura do sítio certo, até que percebeu que o spot estava uns metros fora da propriedade que comprara. Apesar não entender o interesse de tão inútil parcela, o dono, o velho senhor Fernando, que nestes dias se dedica com a mulher à apanha da amêndoa, acabaria por vendê-la.
Não é difícil perceber o senhor Fernando. Ele é que não nos perceberá a nós, que nos deleitamos a observar os telhados e a muralha da sua Marialva de todos os dias emoldurados pelos dois sobreiros que, à nossa frente, definiram o ângulo certo de instalação da casa. Pensado a este pormenor, o cenário só poderia roçar a perfeição.
Uns metros mais acima, abrigadas por uns pedregulhos, duas espreguiçadeiras permitem-nos escolher entre outro ângulo da história do país ou, para quem prefira olhar o céu, a história, bem mais longa, do Universo. Uma e outra trocáveis pela possibilidade de não pensar em absolutamente nada. O que nem é difícil, se nos deixarmos levar pelo borbulhar do espumante do Dão que nos espera à chegada.
A garrafa estava lá dentro, pousada em frente à cama king size, num tronco de madeira feito mesa, o único elemento rústico num open space onde, a começar num móvel branco, minimalista, que esconde a TV e um frigorífico, e do qual sobressaem dois bastões para caminhadas, tudo é contemporâneo. Ou quase tudo, porque, acima da imponente banheira com vista, um quadro feito de musgos e líquenes evoca a vida que, para lá do vidro, se agarra às árvores e às pedras. A tela, transformada em natureza viva, expressão actual de um certo desejo de retorno à terra, convive bem com os artefactos pensados para diminuir a pegada ecológica deste T0. Onde a luz pode ser diminuída ao consumo mínimo de energia, e a água, fria ou aquecida pelo inevitável painel, é reaproveitada.
A energia ainda provém da rede pública, mas Paulo Romão já está a preparar o lugar onde há-de instalar painéis fotovoltaicos que alimentarão esta suite e outros alojamentos de características semelhantes que projecta plantar noutros espaços do monte dos Bogalhais. Cada um tem o seu encanto, todos a respectiva privacidade, mas nenhuma dessas novas casas gozará deste privilégio de ter a aldeia de frente.
Contudo, poderão ter o telhado verde que esta suite ainda não tem, ou receber, como esta, um jardim vertical numa das suas paredes exteriores. E também como neste caso, a água da rega será recuperada para alimentar um tapete protector feito de tomilhos, santolinhas, alecrim e alfazemas várias. Ervas aromáticas como as que crescem por estes montes fora.
Algumas destas ervas estão na horta das Casas do Côro cujos donos, se não produzem tudo o que precisam para abastecer o restaurante, compram o que podem nas redondezas. Outro gesto que, para além de um óbvio impacto na economia local, poupa CO2 nas deslocações. Com uvas suas e outras compradas a vizinhos, Paulo Romão começou a produzir vinhos próprios, dando ao cliente a oportunidade de provar néctares com a assinatura de enólogos como Dirk Niepoort, Carlos Lucas ou Rui Madeira, por exemplo. Companhia ajustada para a carta que Cármen Romão propõe diariamente e que, na noite em que partilhámos a mesa com o casal, abria com uma tradicional bola de azeitona antes de nos levar por combinações mais inesperadas, como a do folhado de espargos verdes servido com doce de pêssego com um toque de aguardente velha.
Tinham-nos perguntado se gostaríamos de saber o menu, horas antes do jantar. Dissemos que não e, está visto, não nos arrependemos. E por momentos, pelo menos durante umas horas, prolongadas no conforto dos Bogalhais, esquecemos o desastre ecológico que é este país em crise onde, terminado um Verão que não o foi - embora nos digam que ele passou em Marialva - enfrentamos ainda a canícula de uma dívida difícil de (a)pagar.
Pena é que, nesta aldeia histórica que adormeceu, iluminada, à nossa frente, não seja possível regressar a esse final do século XII em que quem raptasse uma rapariga e aqui se acoitasse pagava 300 soldos e se livrava de pena, e quem aqui se refugiasse durante seis meses via os seus débitos perdoados. Imagina-se o sucesso que seria nos dias que correm. Mas Marialva não seria a mesma coisa com o bulício de um conselho de ministros ou os gritos da senhora Merkel, a esbracejar rua da Corredoura acima, nos ombros do seu raptor.
Ai o espumante! Onde já vai...
Como Ir
Do Norte, a A1 até Aveiro e a A25, até Celorico da Beira, são as a melhores vias para chegar a Marialva, que ficou ainda mais "perto" com a conclusão do IP2 entre Celorico da Beira e o rio Douro. Do Sul, o melhor é tomar a A1 até Torres Novas, a A23 até à Guarda e uns quilómetros na A25 (em direcção a Aveiro) até à saída para o IP2 (direcção Trancoso/Bragança). Na saída para Marialva há indicações para o centro histórico.
A Fugas esteve alojada a convite das Casas do Côro
- Nome
- Suite dos Bogalhais
- Local
- Meda, Marialva, Casas do Côro - Marialva (Meda)
- Telefone
- 917552020
- Website
- http://www.casasdocoro.com