Fugas - hotéis

Um palácio que conta histórias aos hóspedes

Por Isabel Salema. Vídeo de Ricardo Rezende ,

Na Rua das Janelas Verdes, em Lisboa, um boutique hotel instalado num belo edifício do século XVIII. É o Palácio Ramalhete. Soa-lhe familiar? Uma noite no palacete que apela ao espírito da casa d' "Os Maias" de Eça de Queirós.

Não tínhamos propriamente pensado dormir com Carlos da Maia, a personagem principal do romance Os Maias, de Eça de Queirós, mas também não estávamos à espera que por cima da nossa cabeça, das almofadas da enorme cama, estivesse o Espírito Santo. Era o que se via quando olhámos para o tecto, uma vez que nos tinha sido marcada a suite Dove, instalada na antiga capela da casa. A suite, com os seus 35 metros quadrados e uma casa de banho com duas janelas, é um dos quartos mais bonitos e espaçosos do Palácio Ramalhete, um boutique hotel que abriu no final de 2011 na Rua da Janelas Verdes, em Lisboa.

O palacete que o hotel ocupa mesmo em frente ao Museu Nacional de Arte Antiga é um belo edifício do século XVIII com uma escala que é raro encontrar na baixa lisboeta e as paredes interiores revestidas a azulejos pombalinos. As janelas dão para o Tejo, mas agora é noite e do rio só vemos as luzes. Também é tarde para ir espreitar o pátio e a piscina, que funciona com água aquecida todo o ano.

Abrimos Os Maias, publicado por Eça em 1888, e logo no primeiro capítulo encontramos uma caracterização do Ramalhete:

"A casa que os Maias vieram habitar em Lisboa, no Outono de 1875, era conhecida na vizinhança da Rua de S. Francisco de Paula, e em todo o bairro das Janelas Verdes, pela casa do Ramalhete ou simplesmente o Ramalhete. Apesar deste fresco nome de vivenda campestre, o Ramalhete, sombrio casarão de paredes severas, com um renque de estreitas varandas de ferro no primeiro andar, e por cima uma tímida fila de janelinhas abrigadas à beira do telhado, tinha o aspecto tristonho de residência eclesiástica que competia a uma edificação do reinado da Sr.ª D. Maria I: com uma sineta e com uma cruz no topo assimilar-se-ia a um colégio de jesuítas. O nome de Ramalhete provinha decerto dum revestimento quadrado de azulejos fazendo painel no lugar heráldico do escudo de armas, que nunca chegara a ser colocado, e representando um grande ramo de girassóis atado por uma fita onde se distinguiam letras e números duma data."

Já passa das nove da manhã e o sol, que está baixinho, acaba de ultrapassar o telhado do prédio em frente. A luz de um branco dourado começa a avançar pelo soalho antigo até aquecer os azulejos das paredes da casa.

Cá em baixo, paramos ao entrar numa das várias salas do primeiro andar, que se sucedem umas às outras, com as suas sete janelas de sacada e varandas - o efeito da luz é deslumbrante. É assim que Lisboa devia ser sempre. Cheira bem, a jardins na Primavera, e o aroma vem de uma grande jarra com rosas brancas que está numa mesa ao centro da sala principal.

Os donos do Palácio Ramalhete, um alemão e um holandês, não estão quando descemos para o pequeno-almoço e somos recebidos por Francisco Rodriguez, o director-geral do hotel. "Estamos sempre a contar uma história, não é só um serviço", diz este espanhol, que explica que os seus clientes são estrangeiros. A história que querem contar é que esta é uma típica casa de família de há 200 anos. E, consta, terá sido aqui que Eça se inspirou para as suas descrições do Ramalhete. "É muito engraçado ler o livro e trabalhar aqui. Ajuda-nos a sentir o lugar."

A maior parte dos hóspedes já ouviu qualquer coisa sobre Eça e a ideia de um chá num dos pátios, à imagem de Afonso da Maia, tanto faz se é ficção-realidade ou ficção-ficção e não aconteceu nem no livro. O romance tem o picante de se centrar na história do amor incestuoso entre Carlos da Maia e Maria Eduarda.

A verdade da ficção é que, no livro, a família Maia mora na zona das Janelas Verdes e não há um famoso número da porta - como o n.º 202 dos Campos Elísios em A Cidade e as Serras -, que permita excluir vários candidatos a terem inspirado Eça na criação do Ramalhete. O Hotel As Janelas Verdes, que fica na mesma rua, é um deles.

Mas os hóspedes não se perdem e se quiserem saber mais é só chegar à estante de uma das salas e pegar no roteiro de A. Campos Matos, um clássico sobre a Lisboa queirosiana. É o livro que o olisipógrafo José Sarmento de Matos nos tinha dado como referência para procurarmos o verdadeiro Ramalhete, depois de avisar que dá sempre confusão tentar corporizar numa morada aquilo que no escritor é meramente uma ficção.

"É claro que os Maias tinham de viver num sítio chique e as Janelas Verdes era na altura uma zona de casarões aristocráticos. Acho que ele estava mais a pensar na zona do que propriamente em qualquer edifício em especial." Campos Matos escreve no seu roteiro sobre a Lisboa de Eça de Queirós que o escritor teria como modelo o Palácio Sabugosa, na Rua 1.º de Maio, ao Calvário, mais para Ocidente. Eça ia regularmente à Junqueira, porque o conde de Sabugosa, também escritor, era muito seu amigo e um dos Vencidos da Vida.

Ninguém aqui esconde que a verdadeira Lisboa queirosiana vive melhor na ficção e o que se procura no Palácio Ramalhete é conseguir falar da cidade de uma outra maneira a clientes cultos, além de os mandar para o museu que fica do outro lado da rua, como fazem todos os guias turísticos. Na mesma estante, os estrangeiros que queiram saber quem é Eça de Queirós podem pegar no livro do crítico dos críticos literários, Harold Bloom, que em O Cânone Ocidental situa o escritor na literatura mundial.

O Palácio Ramalhete foi alugado à família Taborda, os actuais proprietários, e sofreu um bom restauro. Um dos investimentos importantes foi revestir algumas divisões com azulejos pombalinos comprados no mercado, outro foi a piscina aquecida que ocupa um dos terraços do jardim, que é uma sucessão de pátios desnivelados pontuados por alguma vegetação. Logo que o tempo permita, os pequenos-almoços buffet serão servidos aqui. Uma boa opção é ficar simplesmente estendido a apanhar sol numa espreguiçadeira e a reler Os Maias.

Pegamos novamente no livro e olhamos para o Tejo com os olhos do avô de Carlos da Maia:

"O que desconsolara Afonso, ao princípio, fora a vista do terraço - de onde outrora, decerto, se abrangia até ao mar. Mas as casas edificadas em redor, nos últimos anos, tinham tapado esse horizonte esplêndido. Agora, uma estreita tira de água e monte que se avistava entre dois prédios de cinco andares, separados por um corte de rua, formava toda a paisagem defronte do Ramalhete. E, todavia, Afonso terminou por lhe descobrir um encanto íntimo. Era como uma tela marinha, encaixilhada em cantarias brancas, suspensa do céu azul em face do terraço, mostrando, nas variedades infinitas de cor e luz, os episódios fugitivos duma pacata vida de rio: às vezes uma vela de barco da Trafaria fugindo airosamente à bolina; outras vezes uma galera toda em pano, entrando num favor da aragem, vagarosa, no vermelho da tarde; ou então a melancolia dum grande paquete, descendo, fechado e preparado para a vaga, entrevisto um momento, desaparecendo logo, como já devorado pelo mar incerto; ou ainda durante dias, no pó de ouro das sestas silenciosas, o vulto negro de um couraçado inglês... E sempre ao fundo o pedaço de monte verde-negro, com um moinho parado no alto, e duas casas brancas ao rés da água, cheias de expressão."

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A Fugas esteve alojada a convite do Palácio Ramalhete

Nome
Palácio Ramalhete
Local
Lisboa, Santos-o-Velho, Rua das Janelas Verdes, 92
Telefone
213931380
Website
http://www.palacio-ramalhete.com
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