Quisemos confiar nas indicações do GPS e descemos Alentejo fora por estradas nacionais e pequenas aldeias, atravessámos a rua de casitas brancas que compõe o sítio dos Troviscais (lugarejo mais próximo das Casas da Cerca) e uma vez aqui chegados, em vez de ligarmos a Graça Jalles para acertar a chegada à unidade de turismo como combinado, continuámos a seguir as coordenadas até terminarmos à porta do senhor Joaquim que, antecipando outro turista perdido, tinha acabado de nos ceder a passagem duas curvas antes. “É para as casas de turismo mesmo? Lá em baixo?”
Afoitamo-nos, já com novas indicações, tentando chegar à “única estrada que desce” para lá: um caminho de terra batida que cai em ziguezague sinuoso por entre os eucaliptos. Lá em baixo, três casas cor de terra alinhadas à direita, à esquerda uma mesa comprida sob uma pérgola de galhos, camas de rede, espreguiçadeiras de madeira, uma velha carroça, baloiços, bicicletas, um cavalete sem tela. Não avistamos vivalma, à volta só um nada de cerros pintados do verde-acinzentado do Alentejo, feito de azinheiras, sobreiros, esteve e oliveiras. O silêncio, absoluto, cobre o lugar de abandono e encanto ao mesmo tempo.
A sensação imediata que temos é a de que o mundo termina aqui, deixado para lá das colinas com o ritmo da cidade, com as preocupações e os estímulos constantes do quotidiano. Aqui o tempo é outro. Pouco depois, Graça Jalles, proprietária da unidade de turismo rural, conta-nos que uma amiga comparou um dia aquele lugar ao ventre materno e há, de facto, algo de regresso às origens, de reconforto e protecção, como se aquele abraço apertado da geografia limitasse o horizonte para fechar o mundo atrás de si e nos devolver, se não ao ventre materno, à natureza, porventura aos tempos de meninice.
Descobrimos mais tarde que a rede de telemóvel é mais caprichosa do que antecipáramos e os pontos estratégicos voláteis, ora há sinal ora se perde, sem que tenhamos saído do mesmo sítio. A ligação à Internet — que na Casa da Adega, onde ficámos, é feita por cabo — também estava com problemas naquele dia e a sensação de isolamento quase total. Só três gatos selvagens e os sons do campo por companhia, o mundo exterior existindo apenas no televisor plano à nossa frente. Primeiro estranha-se, depois entranha-se. E há muito não dormíamos uma noite tão bem dormida.
Um projecto de vida
Quando acordamos, já o pão do dia nos espera lá fora sobre a mesa; na sala de refeições poisa uma cesta com queijo, compota e chocolates artesanais produzidos na região; na cozinha há sempre leite, sumos, café, cereais. Tomamos o pequeno-almoço no terraço e pouco depois, a manhã ainda gelada, trepamos por uma escada periclitante para espreitar o miradouro improvisado em madeira sobre uma árvore vizinha. A vista continua afogada em cerros, mas não há mística da infância campestre sem uma casa na árvore. Duas teias de aranha, grandes, redondas, suspensas, brilham entre a folhagem quando Graça chega para o passeio matinal até ao rio Mira.
Caminhamos fugindo à lama e aos sulcos deixados pelos javalis e passamos junto à cerca onde no Verão estão os dois cavalos da proprietária, prontos a receber mimos dos hóspedes. Pelo caminho, Graça vai contando histórias de família, do percurso de vida, deste projecto construído ao longo de uma década de pulso determinado e resiliência. Viveu durante dez anos em Macau, onde trabalhava como arquitecta de obras públicas, e em 1998, quando Portugal se preparava para entregar a soberania do território à China, regressou a Lisboa. No entanto, já não era em cidades que desejava viver a próxima etapa, queria a natureza, o campo de que sempre gostou. “Pus-me a olhar para um mapa a decidir para onde ia e escolhi esta zona do Alentejo”, recorda. Não sabe bem porquê, nunca cá tinha estado. Pegou no carro e veio passar uns dias de férias. Pouco tempo depois voltava com um emprego no Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina, onde trabalhou outros dez anos.
Entretanto, o sonho de comprar um monte concretizava-se e decidiu reconstruir a velha ruína existente na propriedade utilizando os métodos e os materiais tradicionais da região, em taipa. Nos primeiros quatro anos, ali morou sem electricidade ou água canalizada. “Ligava o gerador duas horas por noite.” Há cerca de dez anos, a vontade de mudar de rumo profissional cruzou-se com a possibilidade de adquirir a Herdade de São Nuno, ali próximo, de 30 hectares e três ruínas. Nascia o projecto turístico das Casas da Cerca, com a certeza de que os edifícios seriam novamente recuperados utilizando os materiais tradicionais.
A velha adega e local de pernoita do antigo proprietário — curiosamente o pai do senhor Joaquim, conta-nos Graça — foi a primeira a ser reconstruída, com paredes nuas de terra argilosa e rebordo caiado de branco. Em 2011, surgia a Casa do Tanque, numa antiga arrecadação e abrigo de coelhos, junto a um dos tanques recuperados; e em 2014 era terminada a Casa do Pomar, que fora abrigo de porcos, mais pequena, localizada entre os dois outros edifícios, próxima de um lago de seixos e um tanque com jacuzzi.
Já correm uns bons 20 minutos de conversa quando avistamos o rio, largo e tranquilo, contornando as colinas entre uma várzea de juncos e lodo negro. É possível apanhar bivalves na lama, tomar banhos de rio (a corrente não é forte, garante Graça), andar de caiaque (uma das actividades disponibilizadas) ou simplesmente passear, fazer um piquenique ou deixar o olhar finalmente espraiar-se pela bucólica panorâmica. Segundo Graça, terá sido este mesmo Mira uma das fontes de inspiração para a letra da músicaYesterday, dos Beatles, quando, em 1965, Paul McCartney por aqui passou a caminho de umas férias na então pouco turística Albufeira. A história estará contada emYesterday & Today, escrito por Ray Coleman em colaboração com o músico inglês, um dos três livros que tínhamos na sala, acompanhado das Mantas Alentejanas e do Terra Crua (onde há um texto sobre as casas em taipa de Graça).
Voltamos à Casa da Adega para recolher a bagagem, deixamos Graça em casa (no topo de uma das colinas sobranceiras ao turismo rural, embora não se aviste lá de baixo) e regressamos, relutantes, ao mundo.
Yesterday all my troubles seemed so far away
Now it looks as though they’re here to stay
Oh, I believe in yesterday.
Informações
A Casa da Adega é a maior das três habitações, possuindo dois pisos (no rés-do-chão fica a cozinha, a casa de banho e a sala de refeições, no primeiro andar a sala de estar e o quarto) e aloja até cinco pessoas (quatro adultos e uma criança). Já a Casa do Tanque e a Casa do Pomar possuem uma única divisão (além da casa de banho), integrando quarto, kitchnette e zona de estar (lotação máxima de dois adultos e uma criança). Todas estão equipadas com televisão, leitor de DVD, telefone fixo e Internet (apenas a Casa do Pomar tem wi-fi, nas restantes o acesso é feito por cabo). Cada casa tem ainda um tanque, um grelhador a carvão e zona de terraço com mobiliário.
Preços: Os preços variam consoante a casa escolhida (a Casa da Adega é a mais cara; as outras duas têm o mesmo preço), a época (varia entre baixa, média, média alta e alta) e o número de noites, pelo que uma noite na Casa da Adega custa entre 90€ (se forem reservadas 12 noites ou mais na época baixa) e 170€ (até quatro noites na época alta), enquanto uma noite na Casa do Tanque ou na Casa do Pomar varia entre 50€ e 130€, respectivamente. O pequeno-almoço está incluído.
A Fugas esteve alojada a convite das Casas da Cerca
- Nome
- Casas da Cerca
- Local
- Odemira, São Luís, Herdade de São Nuno
- Telefone
- 283975263
- Website
- http://casasdacerca.com.pt/home