Fugas - hotéis

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Fino e elegante como um lápis esferográfico

Por Luís Octávio Costa ,

Dentro deste hotel há uma papelaria e dentro da papelaria vive uma família com memórias escritas a pena e tinta. A Araújo & Sobrinho, uma das mais antigas papelarias do mundo, fundiu-se com o Porto A.S. 1829, um hotel único.

“Verifique a sua superioridade”, a “beleza de linhas” e o “equilíbrio”. Os slogans anunciam a Eversharp Ventura, “a caneta que vale quanto custa”. Ao seu lado, finamente emoldurado, o lápis esferográfico Diplomat, “o novo trunfo da técnica alemã — à venda nas boas papelarias”. “No mundo esferográfico surgiu uma estrela”. E no Porto exibe-se um hotel matriosca, que dentro tem uma papelaria — que continua viva e bem viva — que tem uma família, que tem memórias escritas a pena e tinta.

Miguel nasceu no edifício de seis pisos. “Vem do meu trisavô. O meu bisavô ergueu o edifício porque a loja era pequena. Quando o meu pai se casou, o meu avô fez uma remodelação e construiu um apartamento maravilhoso. Era a nossa casa, uma casa fantástica”, conta o bisneto, neto, filho e protector da marca Araújo & Sobrinho que vive nas paredes, nos corredores, nas escadarias e nas gavetas do Porto A.S. 1829 Hotel, há sensivelmente um ano no Largo São Domingos, no Porto. Nos três últimos pisos viveram vários ramos da família. A “casa fantástica”, recorda Miguel, olhos vidrados, tinha “quartos gigantes”... “Depois descíamos e tínhamos a casa dos nossos avós que era maior ainda. E descíamos mais ainda e tínhamos a sala de armas, a biblioteca, o salão de jogos... E depois a loja. Eu era miúdo, havia a porta do cavalo, que era uma passagem directa para a loja, onde chegaram a trabalhar cerca de 150 funcionários. Ainda existiam as oficinas, a gráfica, a serralharia, a carpintaria... Era um mundo, fazia-se tudo aqui. Foi uma infância muito cheia.”

Descemos a Rua das Flores, a artéria principal do comércio da velha cidade do Porto, até ao fundo. E esbarramos com a história de uma das papelarias mais antigas do mundo. Manuel Francisco de Araújo, trisavô de Miguel, foi um dos primeiros portuenses a meter-se num barco a vapor e ir a Inglaterra fazer compras para a colónia de ingleses, que era quem tinha dinheiro aqui na altura. “O centro do Porto era aqui. Ele começou com uma loja de bricabraque, vendia sabonetes, água de colónia, chocolates e instrumentos musicais porque a papelaria resumia-se a papel, tinta e pena. A papelaria pura e dura eram esses três artigos. A papelaria cresceu imenso depois, mas praticamente desapareceu com a informática. Deixou de fazer sentido.”

O resto da história confunde-se com a crise dos últimos anos. Houve uma queda grande na área da papelaria, a deslocação do material escolar, “vendido de qualquer maneira nos hipermercados”, a crise na construção de 2010 e consequente colapso dos gabinetes de arquitectura, bons clientes da loja. A Araújo & Sobrinho, “uma instituição”, ainda era uma loja de 800 metros quadrados, três pisos carregados de stock (os outros três da “casa fantástica” estavam devolutos) e dez funcionários. O turismo não era uma realidade e Miguel mandava os turistas comer em Matosinhos. “Comecei a reduzir, a reduzir, a reduzir até aparecer a Lux Mundi” com um projecto que permitia manter o nome, o negócio e a herança, que hoje se espalha por todos os pisos do edifício em forma de peças recuperadas, móveis com chapa Araújo & Sobrinho, caixas de lápis guardados como artigos de relojoaria e fotografias das enchentes de curiosos que colavam o nariz nas renovadas montras da loja no início do século XX com o último grito de objectos de escritório, artigos para brindes, aprestos para desenho e pintura. 

“A papelaria não saiu daqui”, sublinha Dora Simões, do Grupo Lux Hotels, actualmente responsável pela gestão de três unidades hoteleiras, segmentadas sob o slogan “be unique”: Lisboa Carmo Hotel, Porto A.S. 1829 Hotel e Évora Olive Hotel. “Trata-se de uma linha de hotéis boutique, hotéis de charme, com um tema forte e que ficam no centro da cidade, com localização privilegiada.” Este “hotel-museu” portuense conta com 41 quartos e com a recepção no rés-do-chão que naturalmente separa o restaurante Galeria do Largo da loja Araújo & Sobrinho, a relançar a sua marca graças a produtos de papelaria vintage e outros objectos deliciosos (e nem estamos a falar da variedade de compotas ao pequeno-almoço).

“Mantivemos o espólio da loja neste novo espaço, que tenta contar uma história ao longo dos pisos. A integração da papelaria no projecto hoteleiro permite a rentabilidade e funcionalidade do prédio”, reforça Raquel Queirós, manager de um hotel com um toque clássico de charme (como as banheiras de pés de ferro pousados sobre mosaico hidráulico) associado ao conforto dos quartos insonorizados (com camas que são autênticas nuvens). “O Porto”, refere Dora Simões, “é uma cidade grande que toma conta daquilo que é seu”. E essa é também a assinatura do Porto A.S. 1829, que tem recebido muitos turistas, mas também curiosos, saudosistas, clientes do chá das cinco, pessoas que entram e que só depois percebem que os tempos mudaram.

Este edifício “já passou por tudo”, diz Miguel, representante das cinco gerações. “Isto é uma casa boa, construída por um comerciante para durar no tempo. A última transformação foi uma evolução natural”. Há muito tempo que o telefone de serviço já não é o 235. Há muito que nenhum paciente dá entrada no hospital de canetas. A casa fantástica, com passagens secretas e um mundo de artesãos, ainda existe. Com equilíbrio e linhas belas. Como uma caneta, que é uma estrela.

Restaurante Galeria do Largo

Manual de instruções para uma refeição no restaurante Galeria do Largo. Vinho “Inesperado” do Douro. Petinga em pão panko e funcho, molho tártaro. Naco de pescada escalfada com cebolada e ovo. Codorniz recheada com alheira e risotto de cogumelos. Semi-esfera de abacaxi sobre bolo de coco e gelado de pina colada.

Fazemos pim-pam-pum desta vez — e voltamos dia 15 de Abril para riscar alguns pratos da carta nova. Observamos o desfile de pratos à nossa volta e apetece ter um íman, apetece completar a “caderneta” — mesmo os cromos mais difíceis que mandávamos vir pelo correio —, apetece criar a função de provador-oficial-de-todos-os-pratos-que-vão-para-as-outras-mesas.

E esta comida diz-se simples. “Não é gourmet, é comida”, espicaça Manuel Ferreira,chef que se divide entre o Galeria do Largo (Porto A.S. 1829 Hotel) e o Maria do Carmo (Lisboa Carmo Hotel). Dois dias lá e o resto da semana no Porto a “trabalhar” a cozinha regional, a “recriar alguns pratos com um ou outro ingredientes esquecidos” e a ter tantas cautelas com os produtos portugueses como com a utilização da palavra “gourmet”.

Ao almoço serve-se a “galeria dos petiscos”. Ao jantar o ritmo abranda. Bacalhau confit e favada de morcela. Barriga de porco, iceberg sauté e molho de iogurte. Fondant de manga, parfait de chocolate e pistácios e hortelã. Como rapar o prato em silêncio? Ainda não há manual de instruções...

Galeria do Largo
Largo São Domingos, 45, Porto
Tel.: 223 402 740
Preços médios: almoços desde 12,50€; jantares desde 25€.

A Fugas esteve alojada a convite do Porto A.S. 1829 Hotel

Nome
Porto A.S. 1829 Hotel
Local
Porto, São Nicolau, Largo de São Domingos, 45 a 55
Telefone
223 402 740
Website
www.as1829hotel.pt
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