Fugas - viagens

O Luxemburgo das encruzilhadas

Por Andreia Marques Pereira

Se piscarmos os olhos, podemos não dar conta que passamos o Luxemburgo. Se não o fizermos, corremos o risco de nos encantar com o pequeno país que, na sua capital homónima, concentra as suas virtudes e vícios. É uma cidade europeia e uma cidade de província, é fortaleza e a "mais bela varanda europeia", tem arte e tem hortas. Quer permanecer o que é, mas não pára de mudar

Nas campanhas turísticas do Luxemburgo (cidade), dá-se agora um destaque especial à arte contemporânea. A urbe já tinha, desde 1995, ano em que o Luxemburgo se estreou como Capital Europeia da Cultura, o Casino Luxembourg -Fórum de Arte Contemporânea, com o seu propósito de apresentar "as artes visuais de hoje em toda a sua diversidade e complexidade".

Mas, entretanto, abriram uma série de novos espaços de exposição em antigas instalações ferroviárias; e em 2006 foi inaugurada a jóia da coroa do Luxemburgo-enquanto-meca-da-arte-contemporânea: o arquitecto norte-americano I. M. Pei (o mesmo da pirâmide do Louvre) desenhou o novo Museu de Arte Moderna Grão-Duque Jean, o MUDAM, mesmo a tempo da segunda incursão da cidade como capital europeia da cultura (desta vez, em 2007, o Luxemburgo não esteve sozinho: juntou-se-lhe a Grande Região, que inclui Lorena, Renânia-Palatinato, Sarre (Saarland) e Valónia; França, Alemanha e Bélgica, portanto).

É mesmo a obra do arquitecto norte-americano responsável pela polémica pirâmide do Louvre que merece o destaque nos roteiros turísticos da cidade (que se prepara para inaugurar, em Maio, novo museu, a Villa Vauban Museu de Arte da Cidade do Luxemburgo que dará destaque, por um lado, à "idade de ouro" da arte fl amenga e por outro às pinturas de paisagens francesas do século XIX).

O MUDAM sobressai não só pela colecção e exposições (a sua principal vocação são as mostras temporárias) - nem sequer apenas pelo edifício em si, todo espaço e luz -, mas pelo peso simbólico do local escolhido para o construir, o bairro de Kirchberg, onde se ergueu o Forte Thüngen. É o passado e o presente (e o futuro) que ali se encontram. Uma fortaleza histórica que se reinventa como museu. A arquitectura militar de Vauban e o traço contemporâneo de I. M. Pei.

O Luxemburgo das encruzilhadas (de onde nunca saiu): de Gibraltar do Norte a uma das capitais da eurocracia da Europa unida (uma das bases do parlamento Europeu, sede do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias), da alma tradicional à ânsia cosmopolita, do ritmo quase provincial ao centro financeiro de nível internacional (mais de 160 bancos, incluindo o Banco Europeu de Investimentos). Sempre com o mesmo lema, inscrito na fachada da casa mais antiga da cidade: Mir wëlle bleiwe, war mirsin (Queremos permanecer o que somos).

O Luxemburgo não é um destino óbvio. Vamos ao Luxemburgo por ficar mesmo ali, se estamos na Bélgica, França ou Alemanha; subestimamos o cenário (idílico), a história (milenar) e a vibração (descontraída). Se Portugal é o rosto com que a Europa fita, o pequeno Luxemburgo pode ser o seu coração. Um coração que já foi, no seu âmago, uma fortaleza de pedra e é agora de um pitoresco inimitável: a pedra continua lá, em convívio harmonioso com relva, árvores, hortas até (25 por cento da área urbana são parques e jardins e tempos houve em que a cidade era das rosas há um século atrás estas eram a maior exportação luxemburguesa), enquanto motivo de peregrinações turísticas -muitas delas de um dia apenas, com os turistas a virem desses países fronteiriços, como Malay Das, indiano a viver na Alemanha há mais de dez anos: "Todos me falam tão bem do Luxemburgo que decidi vir conhecer, é tão perto. Vim de carro com uns amigos", diz, numa manhã de sábado de meados de Setembro, num dos miradouros da cidade.

Crise de identidade

Miradouros talvez não seja a palavra certa, varandas é como os luxemburgueses gostam de se referir às beiras dos planaltos que constituem a sua cidade -dizem que La Corniche, que une a cidade antiga alta com o Grund, é a varanda mais bonita da Europa ( já lá iremos). Há vales profundos entre os planaltos que se miram mutuamente, no fundo, parques ou bairros da cidade que sim, é verde, ou da cor branca crua dos edifícios que a cobrem. Alguém escreveu que a cidade tem o aspecto de casa de vários pisos - diríamos que essencialmente dois -, que se empoleira nas alturas ou se despenha em abismos sulcados pelos dois rios Alzette e Pétrusse. É como uma molécula com vários átomos ligados por pontes e viadutos.

Foi esta geografia a razão da existência do Luxemburgo -que começou como cidade e acabou a dar nome a um país, depois de séculos de turbulência histórica. Há pouco mais de mil anos (em 963), o conde Siegfried (que os pergaminhos dão como descendente de Carlos Magno) construiu uma fortaleza num local óbvio: um promontório (o Bock, onde já existiam vestígios de ocupação romana) rodeado de vales profundos em três lados. A cidade foi crescendo aí e fortificando-se cada vez mais até se tornar quase inexpugnável. Quase.

A partir do século XV a cidade mudou várias vezes de mão, cobiçada pela sua localização estratégica: foi um tabuleiro de xadrez onde se moveram borgonheses, espanhóis, franceses, austríacos e prussianos e a cada novo senhor novo reforço das muralhas (o que, num ciclo perverso, a tornava cada vez mais apetecível). Foi Vauban (o engenheiro de Luís XIV, nome incontornável na história da arquitectura militar) quem, após a conquista da cidade pelos franceses, redesenhou as suas defesas e lhes deu a configuração "actual" -sendo que o que se vê actualmente é o que resta da destruição da fortaleza ordenada pelo Tratado de Londres que, em 1867, ditou o fim da era bélica e tornou o Luxemburgo um estado neutral.

Houve, dizem os livros, uma crise de identidade: depois de nove séculos como cidade fortificada no centro da vida europeia, o que seria o Luxemburgo daí para a frente? Não durou muito, a crise: caíram as muralhas, mas nas rondas plantou-se relva, os fossos foram substituídos por parques e jardins, as casamatas passaram a ser atracção turística e a cidade finalmente libertou-se das grilhetas medievais e transbordou para grandes boulevards ladeados de imponentes edifícios oitocentistas.

E por estar realmente no centro da Europa, o Luxemburgo tornouse numa das capitais da Europa unida. O "bairro europeu", Kirchberg, é claramente alienígena no cenário da cidade -um pouco como La Défense em Paris ou Canary Wharf em Londres: altos edifícios de aço e vidro, avenidas largas e, desde há não muitos anos, o primeiro shopping center do Luxemburgo. E a legião de funcionários europeus que vive na cidade é responsável por alguma da animação nocturna da cidade, que não é bem como dizem alguns locais "depois das 18h00 não se vê ninguém na rua", ouvimos repetidas vezes, mas também não tem a movida que se espera de uma capital europeia.

Falam de província, mas nenhuma cidade de província se pode gabar de ter tantos restaurantes com estrelas Michelin (quatro na cidade, 13 no total num dos mais pequenos estados europeus). O que o Luxemburgo tem é descontracção. Que outro palácio real na realidade palácio ducal: outra das idiossincrasias do Luxemburgo é ser o único grãoducado do mundo, tem apenas uma sentinela à porta? E este palácio está no meio da cidade, à face de uma rua pedonal, um edifício renascentista severo, em pedra escura, com tiques de pequeno castelo, mas no conjunto bastante despretensioso, se comparado com os seus congéneres europeus.

A mais bela varanda europeia

Estamos na cidade velha, que aqui se divide em cidade alta e baixa, entre edifícios medievais, e estamos a pé, a melhor maneira de conhecer esta cidade -claro que há descidas a pique e subidas íngremes, mas também há possibilidade de fazer "batota": elevadores a transportaremnos entre os diferentes andares. Quando não há (e, sejamos realistas, isso acontece muito), garantimos que vale bem a pena o esforço de subir e descer -vejam-se os parques aninhados no vale do Pétrusse, um silêncio irreal com a cidade a correr em cima.

A correr mas não muito. Porque se o Luxemburgo funciona como um relógio suíço não é por os luxemburgueses andarem apressados, é mesmo pela organização extrema. Mas nem a organização salva o visitante mais incauto, por vezes. Com uma geografia algo complicada é fácil perdermos a noção de onde estamos na cidade -mas chegamos ao final do dia e percebemos que estivemos onde devíamos ter estado, mesmo que já não saibamos se estamos na margem do rio Alzette ou do Pétrusse.

Apesar de termos tido uma lição rápida da geografia mais básica da cidade: a parte alta equivale ao centro da cidade, a "cidade velha"; a parte baixa é o bairro da gare, como quem diz, da Gare Centrale, da estação de comboio; o Grund é um dos vales da cidade e um dos bairros (sinónimos, para os luxemburgueses: "am Grund", "no fundo", é o bairro e é o vale). A Kirchberg só nos atrevemos a ir de carro.

Por enquanto temos um dia para passar e muita pedra para calcorrear. No "bairro da gare", mistura-se o comércio mais elegante com o outro. A sóbria elegância dos edifícios oitocentistas domina nos grandes boulevards que atravessam as pontes para a "cidade velha", também ela delimitada por avenidas antes de se ir estreitando. É fácil saber quando chegamos à Place d'Armes porque, na verdade, esta é quase inescapável. Está no centro da cidade e dali compreende-se um pouco melhor os caminhos ínvios que esta por vezes toma. Foi "pátio" para exercícios de exércitos ao longo dos séculos, agora é a sala de estar da cidade, com cafés e restaurantes que saem para esplanadas, lojas, muita animação e, claro, muitos turistas circulando em torno da praça de pedra, plantada de árvores à volta.

O Palácio Ducal está ali perto, e não muito longe entramos no Museu Nacional de História e de Arte e no Museu da História da Cidade do Luxemburgo, onde o elevador panorâmico é uma sala flutuante, penetrando na pedra e erguendo-se às alturas como outro miradouro da cidade, e onde se pode observar a evolução das muralhas em escala reduzida. Claro que nada melhor do que a experiência e ali à frente está essa história à nossa espera. A jóia da coroa do turismo luxemburguês.

É verdade que, em 1867, as potências europeias decidiram pôr um ponto final no vórtice de cobiça em que a cidade se tornara, ordenando a destruição da fortaleza que, entretanto, crescera mais do que a própria urbe: 18 anos de trabalho e um milhão e quinhentos mil marcos de ouro custaram a tarefa de a reduzir (quase) ao seu aspecto de cartão postal actual. Na década de 30 do século XX voltou-se à fortificação, desta feita para restaurar, com o lazer em mente e então as casamatas voltaram a ser transitáveis e visitáveis. São 23 quilómetros delas, um labirinto de túneis e galerias esculpido na pedra. Não é uma viagem ao centro da terra, mas é uma viagem às entranhas da Europa.

À superfície, sobem-se pequenas torres, descansa-se nos pequenos jardins, miradouros para o cenário de gargantas atravessadas por pontes (incluindo a vermelha, e por isso polémica, Grand Duchesse Charlotte) e viadutos que unem os diferentes promontórios que se erguem sobre um manto de vegetação e casas brancas (ou ocre), telhados pretos quase como num conto de fadas, com a intromissão frontal do "bairro europeu". Estamos de cabeça no ar, mas ela foge rapidamente para terra, para o fundo do vale, o Grund, aninhado à beira-rio. É para lá que descemos, finalmente na "mais bela varanda da Europa", o Chemin de La Corniche, caminho íngreme encaixado entre a paisagem e a parede rochosa revestida por casas elegantes e colorida por floreiras.

No Grund tudo parece ter a rusticidade típica dos pequenos povoados, o chão de pedra desigual, as pontes pitorescas que atravessam o rio, as casas baixas e tradicionais sobre ruelas estreitas. Era o bairro dos artesãos, agora é um dos pontos mais apetecíveis da boémia luxemburguesa em contraposição com alguma sofisticação que corre no "andar de cima" da cidade. Quando o dia se esvai transfigura-se, mas a meio da tarde de sábado alguma agitação já toma conta das ruas. O ponto central é o Scott's, um pub onde o pátio, entre a ruela e o rio, está quase cheio e a língua franca parece ser o inglês debitado com olhos ao alto, no "Bock" e no caminho que descemos erguido em parede. À noite, entramos no Liquid, quase ao lado, bar de traves de madeira e espelhos dourados, velas e baralhos de cartas ao som de música com ambições alternativas.

Caminha-se acompanhando o rio, passa-se a Abadia de Neumunster (restaurada e acrescentada de um bar de design contemporâneo) e sem quase darmos conta somos rodeados por verde. Entretanto, o rio é quase um fio, mas o parque do Vale do Pétrusse é um pequeno esplendor no fundo da garganta rochosa formada por dois vales abruptos. Estamos no centro da cidade, porém, esta mal se ouve a passar em cima, enquanto se percorrem os caminhos divididos com ciclistas e patinadores, por entre relva e árvores que vistas de cima parecem ocupar tudo. A subida à "superfície" é o que mais custa, são escadas atrás de escadas e pequenos miradouros para descansar até se chegar às largas esplanadas de onde, até o sol se pôr no horizonte, as objectivas fotográficas "captam" a essência luxemburguesa.

Português e crioulo

No Luxemburgo que quer "permanecer o que é", na Place d'Armes, surpreendemo-nos com uma festa cabo-verdiana que traz mornas e coladeras aos ouvidos dos visitantes e cachupa e bolo de vinho do Porto aos pratos dos audazes. O crioulo e português andam de boca-em-boca mas o português era esperado. E já o tínhamos ouvido, não só dos nossos anfitriões, mas de estranhos: a primeira coisa que escutámos ao descer do comboio vindos da Holanda, foi precisamente bom vernáculo luso em altos berros.

Não é à toa que os portugueses que vivem no grão-ducado dizem, "na brincadeira", sublinha José Luís, português nascido no Luxemburgo, que o grão-ducado é a "última colónia portuguesa" ("perdemos Macau, mas o Luxemburgo não"): são quase 80 mil os registados (oficiosamente, esse número pode chegar quase aos 90 mil). Num país com cerca de 500 mil habitantes, os portugueses e luso-descendentes são quase um quinto da população, em que 47 por cento são emigrantes. E, aos residentes do micro-estado, há ainda que acrescentar a população pendular; são cerca de 140 mil os que atravessam diariamente as três fronteiras para mais uma jornada laboral.

Os luxemburgueses falam três línguas, a sua e a dos vizinhos: dialogam em luxemburguês (o dialecto feito língua ofi cial há poucas décadas), lêem jornais em alemão e tratam das burocracias em francês. O inglês é língua franca entre os funcionários europeus, o português está em todo o lado e o italiano também (ainda) anda por ali. Falámos de encruzilhadas. O Luxemburgo ainda não saiu delas. Porque não pode. Talvez essa seja a essência do Luxemburgo cidade e país.

Como ir

A TAP voa para o Luxemburgo de Lisboa e Porto com preços que rondam os 235 euros e 220 euros, respectivamente. A Lux Air voa entre o Porto e o Luxemburgo desde 220 euros. A Ryanair voa do Porto para Frankfurt Hahn (a uma hora da cidade do Luxemburgo) a partir de 110 euros (preços calculados para saídas um mês depois da pesquisa)

Onde ficar

Hotel Parc Bellevue
Avenue Marie-Thérèse, 5
L-2132 Luxemburgo
Tel.: (+352) 45 61 41 1
Fax: (+352) 45 61 41 222
www.parcbellevue.lu
Preços: desde €173 (duplo)

Hotel Zurich
Rue Joseph Junck, 36
L-1839 Luxemburgo
Tel.: (+352) 49 13 50
Fax: (+352) 49 54 73
www.hotelzurich.lu
Preços: desde €79 (duplo)

Parc Beaux-Arts
Rue Sigefroi, 1
L-2536 Luxemburgo
Tel.: (+352) 26 86 76 1
Fax: (+352) 26 86 76 36
E-mail: reception.beauxarts@goeres-group.com
www.parcbeauxarts.lu
Preços: desde €403 (duplo)

Onde comer

Goethe Stuff
Rue de l'Eau, 32
L-1449 Luxemburgo
Tel.: (+352) 22 85 85
Fax : (+352) 22 85 85
(gastronomia alemã e alsaciana desde €30)

Brasserie Rom's Club
Montée de Clausen, 2
L-1343 Luxemburgo
Tel.: (+352) 27 47 85 35
Fax: (+352) 27 47 85 34
www.romsclub.lu
(gastronomia luxemburguesa e francesa menos de €25)

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