Pois aqui estamos em Jaca, capital da comarca da Jacetania, numa das pontinhas da província de Huesca e a uma hora e meia da imponente e célebre Saragoça.
Cidadezinha simpática e acolhedora, de centro histórico bem preservado e com cerca de 14 mil habitantes, já conheceu, noutros tempos, uma maior importância: foi a primeira capital do reino de Aragão e, por razões estratégicas, conheceu até investimentos militares e económicos imponentes, que se foram mantendo ao longo dos séculos é que França é logo ali. É desses tempos, e em sua consequência, que Jaca, por um lado, guarda jóias monumentais e artísticas de visita obrigatória e, por outro, investe num futuro turístico intrinsecamente ligado às riquezas paisagísticas e edificadas, aos passeios e aventura pela Natureza em seu redor com que foi brindada e, claro, nos desportos de Inverno, até porque muitos turistas das estâncias vizinhas, dizem-nos, optam por ficar em alojamentos da cidade, conciliando a vida cultural urbana com as esquiadelas a alguns quilómetros.
Ora nós, chegados à cidade vindos de neve para cima, neve para baixo, que mais poderemos desejar do que um imenso, moderníssimo, futurista. Pavilhão de Gelo? Passado o primeiro arrepio, venha o primeiro espanto.
É que Jaca, embora possa não ter nome que soe à maioria dos portugueses, é célebre no mundo desportivo mais gelado: em 2007, foi sede do Festival Olímpico da Juventude Europeia e, muito graças a isso, ganhou aquele que é o maior pavilhão de desportos no gelo ibérico e cuja arquitectura não destoaria da herdada por Lisboa da Expo 98.
Passeámos por aqui, admirando os mais profissionais na grande pista de gelo de dimensões olímpicas e os jovens alunos de uma escola de patinagem noutra pista mais reduzida. Cabem neste "estádio", coroado com uma cúpula em forma de gota de água que cruza vidro e aço visível a milhas, mais de 3500 espectadores. Já a estrutura, assinada pelo atelier Coll-Barreu, é epicentro de uma aposta contínua local dos desportos de Inverno, a tal ponto que a região tenta (pela quinta vez.) ser escolhida, agora numa candidatura conjunta com Saragoça, para acolher as Olimpíadas de Inverno 2022.
Mesmo para quem não pretende aplicar-se nos patins, vale a pena dar uma vista de olhos a este pabellón, considerado já o melhor de Espanha e destinado a tornar Jaca a capital ibérica dos desportos de Inverno (e planeiam construir mesmo ao lado um Centro Especializado de Alto Rendimento para atletas).
Depois de tanta neve e gelo, que tal algo mais quentinho? Bem dito, bem feito. O nosso próximo destino é um spa em versão caseira: vamos conhecer e pôr à prova o novíssimo Centro de Spa e Fitness de Jaca. E quem já mergulhou na neve sabe bem como o corpo e o espírito agradecem de seguida uma experiência destas. Existem diversos spas e alguns balneários por todos os Pirenéus. O que experimentámos é investimento municipal e serve perfeitamente: uma grande piscina aquecida, percurso de duches, banho turco, sauna, camas de água. venham os deuses e escolham. Este grupo de jornalistas que por aqui mergulhou assegura: foi um prazer.
E agora, lavados até à alma do frio, pele reluzente, ainda teremos direito a outros prazeres e circuitos, o das tapas. Ficámo-nos, e bem, pelas muitas delícias, num ritmo contínuo e infindável, da informal e saborosa Casa Fau e do imaginativo e aplicado Restaurante Lilium (ver caixa).
Novas paredes, velhas pinturas Mas Jaca, antes da despedida, ainda nos reserva algumas jóias da coroa e boas lições sobre a sua História e a da Península Ibérica, a provar que, mesmo em país vizinho, há sempre algo mais que desconhecemos.
Pelo aprazível e tradicional centro histórico, onde, sem surpresas, lojas clássicas e decanas se intercalam com casas modernas e de marcas internacionais ou com sedutores bares de tapas e pastelarias, descobre-se o coração da cidade, a imponente Catedral de São Pedro que oferece muito mais para além da simples admiração arquitectónica. Reza a história que foi por aqui que o românico começou em Espanha e essa marca está patente na catedral e por outros pontos da comarca da Jacetania.
O monumento, iniciado no século XI, guarda, na verdade, sinais de intervenções de todos os séculos vindouros, tornando-se um puzzle arquitectónico, onde capela a capela, templo a templo, se guardam majestosos tesouros artísticos. Mas por onde nos iremos demorar mais é pelo Museu Diocesano, que de diocesano tem apenas o facto de ser um museu de diocese, estando bem afastado do mais comum conceito paroquial.
Além das salas que albergam colecções do passado religioso e das artes locais, é um museu de arte sacra medieval onde se espalham pelas suas alas pinturas murais românicas e góticas retiradas das paredes de igrejas e eremitas de terriolas esvaziadas da diocese, o que torna este singular museu uma referência internacional para visitantes e estudiosos particularmente porque, hoje em dia, os especialistas não recomendam que se arranquem às paredes tais pinturas e porque muitas delas são únicas na sua essência em todo o mundo. Uma das salas é dedicada a um espantoso e imenso mural (conjunto retirado da igreja de Bagüés), o mais importante da colecção, que preenche duas paredes de alto a abaixo, numa espécie de banda desenhada românica onde, em dezenas de quadros, são explicadas histórias bíblicas. A sala inclui uma sessão multimédia com vídeo explicativo do que se vê em volta e de todo o processo.
O pentágono das miniaturas
Da religião à campanha militar vai a mesma meia dúzia de passos que do centro histórico a uma chamativa edificação de memorável forma e estrutura, já numa das saídas da cidade: trata-se da Cidadela, também chamada de Castelo de São Pedro, erigida entre os séculos XVI e XVII, em perfeita e (para a altura) moderníssima forma pentagonal, gigantesca fortaleza inexpugnável (à excepção de pelo ar mas, obviamente, naqueles tempos não havia grandes meios aéreos.) destinada a defender o Cristianismo ibérico e os interesses espanhóis dos avanços franceses e invasões protestantes e ainda hoje usada pelo Exército espanhol. Mandado construir por Felipe II de Espanha, I de Portugal (e daí termos direito a ver sinais da coroa portuguesa), tem centro numa grande praça militar e segue até cinco pontas estelares, autênticos baluartes defensivos. É estudada pelos quatro cantos do mundo, muito graças, também, ao aplaudido projecto de restauro de que foi alvo nos finais dos anos 60, conquistando um Prémio Europa Nostra (que consagra património cultural europeu).
Além de permitir um passeio bem guiado pela história militar ibérica, guarda mais uma daquelas descobertas de encher o olho, o Museu das Miniaturas Militares, resultado de uma paixão pessoal de um coleccionador, Royo-Villanova, esquecida durante muitos anos e agora digna e merecidamente exposta no seu esplendor de 32 mil figuras. Mesmo estes profissionais (isto é, nós: meia dúzia de jornalistas convidados) sentiram o impacto de uma certa alegria, digamos, infantil (afinal, também muitas infâncias se distraíram com bonequinhos. militares).
A colecção do museu reparte-se por quadros "vivos" de batalhas ou exércitos de outros tempos, recriadas em miniaturas ínfimas por artistas, decerto, com infinita paciência. São milhares de peças, soldadinhos e suas armas, aviões, tanques, etc. etc., todos restaurados há poucos anos. Já agora, tente descobrir o detalhe, tendo em conta o ambiente, mais curioso de todos, em jeito de passatempo: uma das cenas recriadas tem um azulíssimo céu de onde cai, esvoaçando, Mary Poppins (a mais pequena Poppins alguma vez vista, apostamos) liberdade artística que lança um sorriso imaginativo ao belicismo local.
Bruxas e monges
Saídos da cidade, guardámos para o final uma visita à área do parque de San Juan de la Peña e Monte Oroel. E temos monumentais razões para isso. Mas antes de subirmos ao derradeiro monumento, uma paragem curta, que a agenda não permite mais, em Santa Cruz de la Serós destino certo já na nossa agenda para uma próxima visita mais prolongada. Serós, porta de entrada para o parque, é uma aldeia histórica da Jacetania, integrada no conjunto histórico e artístico do Caminho de Santiago, como muitos outros pontos da província. Encostada à serra que iremos subir, mantém a traça românica e é exemplar na mostra de arquitectura tradicional de Aragão. É daquelas aldeiazinhas de postal ilustrado, bonitas por Natureza, abençoadas pelos deuses e. célebres por manterem a tradição de espantarem bruxas, o que faz com que as casas de pedra (e com telhados também cobertos de pedra para proteger da neve), por entre ruas e ruelas, se admirem até à ponta das chaminés: cada uma tem a sua singular decoração feita por figuras em pedra tosca chamadas, precisamente, espantabruxas.
Ainda avistámos lojinhas, restaurantes e igrejas a tentarem seduzir-nos. Mas fica para a próxima, ala para cima que se faz tarde.
Subimos até ao mosteiro velho de San Juan de la Peña, aonde se chega após uns sete quilómetros de estrada serpenteante, com direito a vistas vertiginosas. E é quando nos preparamos para mais uma curva que surge esta jóia incrustada na montanha, impressionante criação da época medieval. Impressionantemente, também, gelada e húmida, até porque está encostada e usa como cobertura e paredes em partes a própria montanha. Maior martírio terão sofrido os monges que por aqui viveram desde o século XI ao que parece, a maioria morria de doenças derivadas do agreste clima e localização do mosteiro, com boas partes preservadas e que resistiram ao tempo. É passeando pelo seu interior, vislumbrando, entre janelões ou arestas, céu, montanha, vale, tem-se quase uma sensação religiosa, mesmo apesar de a temperatura ser sempre (até mesmo no Verão, garantem-nos) assustadoramente baixa. Para admirar, além de construções na rocha, salas despidas, há capela, pinturas, claustro românico ou panteão real.
Deste mosteiro velho, fugiriam séculos depois outros monges, decididos a ter melhor (e, já agora, mais) vida, lá mais para o alto da serra, onde o sol é mais simpático.
É aqui no cume que se encontra a segunda parte do conjunto de San Puan de la Peña, um novo mosteiro, já do século XVIII, naturalmente menos surpreendente mas ainda assim com traços marcantes da "modernidade" monástica, de perfeita simetria e claustros, até porque agora acolhe dois eficientes centros de interpretação, um dedicado ao Reino de Aragão, outro ao Mosteiro em si. O conjunto alberga ainda uma hospedaria, que inclui um moderno edifício, cujo contraste com as construções centenárias pode até chocar. Não é esse o nosso caso. Saímos de San Juan de la Peña mais maravilhados que chocados. E, já de regresso a casa, é com uma última imagem do mosteiro incrustado na rocha que nos despedimos de Jaca, cidade com nome de fruto que de parecido com este só a grandeza, não de tamanho mas de conteúdo: cultural, histórico, artístico. E, com o sentimento de que há muito mais a descobrir, prometemos voltar.
Este não é destino para dietas
Os (muitos) prazeres da mesa
Os Pirenéus Aragoneses podem ser um destino preferencial de neve.
Mas, em qualquer altura do ano, oferecem outros prazeres. Mais gulosos. À mesa de Huesca, não faltam iguarias, cores, aromas, texturas. Por isso, não é o melhor destino para dietas. O frio também é combatido à mesa e o corpo pede as calorias extra dos fritos, da carne e até das sobremesas.
A experiência gastronómica começa logo assim que pousamos na primeira estância, em Formigal, com um jantar no Fidel, o restaurante do Hotel Villa de Sallent, paredes-meias com o nosso porto de abrigo, o quatro estrelas Hotel & Spa Aragón Hills. Mas é no dia a seguir, à hora de almoço, que compreendemos o que é a verdadeira comida aragonesa: requintada mas pesada e em doses XXL. No restaurante do Hotel Casa Morlans, em Panticosa, recebem-nos com uma salada de pato e um risotto de cogumelos, entre outras entradas. De tal forma que, quando chega o segundo, um salmão na brasa que ocupa por inteiro o prato, o estômago já pouco espaço tem para o receber. É a precisar de uma sesta que saímos daqui, entorpecidos pela quantidade, mas deliciados pela qualidade.
O encontro com o que mais de tradicional tem a gastronomia aragonesa repete-se à noite, desta vez no Hotel El Reno, em Villanúa, já do lado do Vale de Aragão. Aqui faz-se a introdução a três tipos de carne muito apreciados nesta região: javali, veado e corça.
Depois de conhecermos os pratos regionais, o dia seguinte é uma incursão pelas tapas (e pelas copas, pois claro). A começar em Astún, num almoço organizado pelo Hotel Europa, onde somos esperados por uma mesa preenchida de amuse-bouche de diferentes cores e formas. A mesma diversidade que se encontra quando se traça uma rota de tapas por Jaca. Começamos pela Casa Fau, a cinco passos da Catedral de São Pedro de Jaca. O ambiente é informal, de copas y tapas. Pela mesa, há abundância de mimos como queijo fresco com caviar ou queijo creme com salmão.
Mas também muitos produtos que simbolizam o que de melhor a montanha oferece. Como setas, ou seja, cogumelos dos bosques. É o tempo deles e não há sítio que não os sirva: em creme ou salteados a cobrirem um pedaço generoso de foie gras, com ovos mexidos, numa salada ou como acompanhamento de um suculento naco de carne.
Continuamos nas tapas no Restaurante Lilium, onde o rústico e o moderno se aliam para criar um ambiente distinto sem demasiada formalidade. Entre as propostas, destaque para o arroz cremoso de cogumelos e foie.
O arroz, que tanto domina a gastronomia local, será rei na refeição de despedida. No Arrocería Oroel, o restaurante do Hotel Oroel, no centro de Jaca, oferece-se uma diferente perspectiva da cozinha serrana tendo por base o arroz: solto, malandro, cremoso, em paelha ou em caçarola de barro. Experimentamos um arroz negro com sabores do mar e um arroz amarelo com os gostos da terra. No geral, nestas e outras propostas, uma coisa é certa: cada grama que perder em passeios ou em esquiadelas o mais certo é recuperá-lo em dobro à mesa farta aragonesa.