Começa com uma espécie de epifania, uma estranha sensação de déjà vu, logo na fila do check-in. Dos candeeiros ovo estrelado pendurados no tecto aos porta-casacos a servirem de pilares, passando pelos tapetes de cores garridas, o terminal de cruzeiros da Royal Caribbean em Xangai parece uma sucursal do terminal 4 do aeroporto de Barajas, em Madrid. Depressa se descobre, no entanto, que esta recriação de interiores é só uma peça menor, integrada numa das novas atracções da cidade que mais enche a vista e encarna a trepidante metamorfose da China.
Ali, na ponta norte do Bund, o passeio marginal ao rio Huangpu, são tantas as novidades que até dá vontade de voltar a desembarcar antes de soltar amarras. Falamos de uma extensa zona ribeirinha da cidade (260 mil metros quadrados de superfície), objecto de uma profunda requalificação, lançada a pretexto da construção de um novo terminal de cruzeiros. O projecto confiado ao atelier nova-iorquino Sparch e à equipa liderada pelo arquitecto Frank Repas foi iniciado em 2004, mas só agora entrou em fase de acabamento. Inclui arranha-céus, praças rebaixadas, jardins de inverno e uma completa folia arquitectónica — o chamado Candelabro de Xangai, teia de enormes casulos envidraçados, que albergam cafés, restaurantes e clubes, suspensos por cabos de um cabide em aço de seis andares de altura.
Num futuro próximo, esta fantasia transparente será com certeza um dos espaços públicos mais populares da cidade. Por agora, enquanto lhe dão os últimos retoques, é uma distracção quase exclusiva da clientela de cruzeiros. Xangai aproveitou a Expo 2010 para entrar no clube das cidades portuárias de cruzeiros — sector turístico ainda relativamente novo e em plena expansão na China. Mas o rio é demasiado estreito e a ponte sobre o mesmo não dá passagem aos gigantes do sector. O maior barco de cruzeiro que actualmente aqui atraca é o Legend of The Seas, que anda próximo das setenta toneladas, tem 11 decks e uma capacidade na ordem dos dois mil passageiros.
Um longo adeus a Xangai
É justamente no Legend que embarcamos com destino a Hong Kong. Os rebocadores só chegam ao anoitecer, mas os passageiros são chamados a registar-se logo à hora de almoço. Quem chega cedo está, no entanto, longe de dar o tempo por perdido, quando poucos miradouros sobre a cidade se revelam tão deslumbrantes como o convés superior do Legend, atracado na ponta norte do Bund. Mais abaixo, no mesmo seguimento, os arranha-céus vintage da Baixa da cidade, em frente a aglomeração de novas torres esculturais de Pudong com o rio sinuoso e o seu longo desfile de embarcações pelo meio. É o sítio perfeito para um longo adeus a Xangai, sobretudo quando ao fim do dia as duas margens se iluminam em sincronia.
O programa de cinco dias no Legend vem com a classificação de “cruzeiro de transição”, o que quer dizer que começa num porto e acaba noutro, implicando para a maioria dos passageiros apanhar um avião ou um barco complementar. Talvez por isso, em pleno boom dos cruzeiros de prazer na China, este hotel flutuante apresenta uma ocupação razoável, mas está longe da lotação esgotada. Não é, em qualquer dos casos, dos cruzeiros mais caros e o grosso dos “hóspedes” são aposentados pouco sintonizados nas últimas modas. Vêem-se muitos fatos completos de tecidos lustrosos, vestidos de renda e às franjinhas, pijamas a servirem de fatos de treino, chinelas de plástico e até boinas à Mao Tsetung. Seja qual for o escalão etário, a maioria dos chineses em cruzeiros são por enquanto newcomers, clientes da primeira vez que ainda não parecem contaminados pelos “vícios” dos cruzeiros ocidentais. Não estão sempre a encher o prato de junk food, bebem pouco ou moderadamente, acordam cedo para fazer ginástica e não passam o dia a dormir a sesta. Têm os seus próprios vícios — o jogo, já se sabe, mas também um apetite desenfreado pelo consumo de artigos de ocasião, tais que relógios e bijuteria dourada, vendidos em saldos promovidos a qualquer hora no piso-loja do cruzeiro. Para além disso, a impressão que deixa um cruzeiro com chineses em 2012 é de grande animação, esse misto de ingenuidade e alegria que se produz quando se experimentam as coisas pela primeira vez, mesmo que já numa idade avançada.
O acontecimento mais memorável do cruzeiro é sintomático dessa cândida espontaneidade e tem a data do primeiro de dois dias de navegação sem escalas nos mares da China. De manhã e ao fim-do-dia, um casal de jamaicanos oriundos de Montego Bay é chamado a actuar junto da piscina ao ar livre. Ela canta, ele toca teclas e programa ritmos, alternando êxitos de r&b com clássicos da terra deles. Têm bom gosto e a cantora tem uma voz prodigiosa, coisa certamente rara em cruzeiros. Neste fim de dia estão tão inspirados que até conseguem chamar a si meia dúzia de senhoras chinesas, capazes de arriscarem uns tímidos passos de dança. Já um casal do Botswana não se acanha e conquista o centro da pista improvisada, servindo de catalisador para um verdadeiro baile de chineses na terceira idade, desinibidos ao ponto de dançarem em fato de banho.
Chocolates e peixe cru
Ao terceiro dia o barco volta a atracar, desta vez na ilha de Okinawa, no Japão. Okinawa é uma espécie de Madeira do Japão, uma estância de turismo balnear mais conhecida pelas praias paradisíacas do arquipélago de ilhotas em volta, sobretudo frequentada por japoneses e turistas das vizinhanças. Onde o barco lança amarras por meio dia é, no entanto, na capital Naha, onde o que há para ver é o castelo de Shurijo e a avenida de compras de Kokusai, com uma eventual pausa de almoço no mercado de Makishi.
De tudo o resto que é a extensa cidade de Naha a maior parte dos guias pouco ou nada diz e aparentemente com razão: a cidade é um aglomerado de prédios de todo o tamanho e feitio, quase todos edifícios em betão sem respeito por estilo algum. No alto deste puzzle caprichoso serpenteia um monocarril, onde se viaja como num cenário de jogo de computador tridimensional, o que constitui porventura a mais excitante atracção da cidade. De resto, o melhor de Naha são os japoneses, todos muito sorridentes, estilosos e bem vestidos, uma sofisticação que se torna mais evidente para quem vem da China.
Quanto ao que há para ver em Naha: o castelo no alto da cidade é um complexo de grossas muralhas, portas esculturais e pavilhões majestosos que testemunham a história de um reino a meio caminho entre a China e o Japão. Shuirijo parece um museu e não é por acaso. Foi tudo arrasado na Segunda Grande Guerra e hoje o que se visita é uma completa reconstituição do castelo nos seus dias de glória. Kokusai, por sua vez, é isto: 1,6 quilómetros de lojas repletas de doces e quinquilharia, sobretudo frequentadas por adolescentes de roupas “flashantes”. É um cenário urbano francamente exótico, mais giro de ver que para comprar. Mais interessante, porém, resulta visitar o contíguo mercado coberto de Makishi, repleto de peixes vivos e intrigantes, depois servidos nos muitos restaurantes tipo cantina de mesas corridas, que se sucedem no piso superior.
Memórias da China colonial
Entretenimento é o que não falta num paquete como o Legend, que oferece desde aulas de jogos de casino a uma parede de escalada na popa do décimo convés, passando por visitas guiadas aos bastidores do navio e gelados semifrios ao entardecer. Mas quando se passam dois dias inteiros em alto mar às tantas já se conhecem os cantos à casa e o que cada um passa a procurar é o que cada um usualmente mais gosta de fazer. O que no caso dos chineses significa passar horas a fotografarem-se mutuamente (depois os japoneses é que têm a fama), a jogar pingue-pongue e a bater cartas a dinheiro ou a feijões. O tom geral deste segundo dia de alto mar é certamente muito mais relaxado e a maioria dos passageiros acaba por se render à velocidade de cruzeiro, aproveitando para passar pelas brasas nas espreguiçadeiras espalhadas pelos decks superiores do navio.
Já o dia seguinte é bem mais atribulado para quem resolve desembarcar em Xiamen. A doca onde os barcos de cruzeiro atracam fica a 20 minutos de táxi do centro da cidade, mas os táxis acabam mal o primeiro andar de quartos do paquete é esvaziado. A alternativa é apanhar um autocarro — o problema é que nesta terra os chineses só falam chinês e primeiro é preciso arranjar alguém que perceba para onde queremos ir e esteja disposto a escrever o endereço num papel para o condutor ler. Uma confusão que se torna ainda maior quando se percebe que o que interessa nesta ilha do sudeste da China não é tanto ela própria, mas outra ilha bem mais pequena, que fica em frente à baixa da cidade.
Chama-se Gulangyu, tem apenas dois quilómetros quadrados, e é a incontestável rainha das atracções por estas paragens, estando inclusive classificada entre os 35 sítios de maior prestígio “cénico” da República Popular da China. Para lá chegar é preciso apanhar um ferry que demora pouco mais de cinco minutos a fazer a travessia, mas a ilha é um íman quotidiano para milhares de chineses, o que se traduz em ferries ostensivamente sobrelotados, em especial entre as nove e as dez da manhã. Entrar e sair dos barcos a essa hora é uma aventura e quando lá se está dentro também não se ganha muito descanso, até porque é quase impossível deixar de pensar no eventual excesso de peso. No final, o trajecto acaba por produzir memórias inesquecíveis de comunicação gestual e seguro contacto físico com magotes de chineses, que se vêm casar, passear os recém-nascidos ou simplesmente fazerem-se fotografar com as suas melhores toilettes junto às capelinhas da ilha.
Gulangyu é também chamada “o jardim das mil nações”, o que é uma forma pomposa de referir o seu estatuto excepcional, único na história da China. Um pouco à semelhança de Tânger, em Marrocos, e no mesmo início do século XX, esta ilha foi declarada Zona Internacional. Antes disso, na sequência da primeira Guerra do Ópio, esteve em mãos inglesas e mais tarde, durante a Segunda Grande Guerra, foi anexada pelo Japão. Gulangyu foi a China onde o resto do mundo assentou arraiais, um passado colonial e cosmopolita que a constelou de preciosas vivendas e de jardins não menos requintados.
Hoje algumas dessas mansões estão restauradas, enquanto outras se mantêm em ruínas, mas no seu conjunto o património edificado da ilha funciona como um parque temático da era colonial (proibidas novas construções), suplementado de um batalhão de pequenas lojas de souvenirs e vendedores ambulantes, num dos raros ambientes urbanos chineses livres de carros a gasolina (há, mesmos assim, meia dúzia de buggies eléctricos para alugar). Entre as principais atracções contam-se uma estátua gigante e um museu dedicado ao herói nacional Koxinga e o único museu de pianos da China. Mas o lugar de longe mais concorrido é a chamada Rocha da Luz do Sol, um magnífico bloco de granito que se destaca como o ponto mais alto da ilha (92,7 metros). O topo oferece vistas desafogadas a 360 graus sobre a ilha inteira e vizinhanças, mas é outro desses lugares onde só se consegue chegar empurrando e sendo empurrado por um batalhão de chineses sorridentes.
Hong Kong panorâmica
A chegada ao cais de Kowloon acontece ao raiar do dia seguinte, ainda a tempo de ver o sol irromper mesmo ali em frente, entre as montanhas da ilha de Hong Kong e a sua longa fila de arranha-céus escultóricos contemplando o estreito, a toda a hora sulcado por um caótico sortido de embarcações. A própria Kowloon proporciona um espectáculo alucinante, com vastas áreas em estaleiro acabadas de conquistar ao mar, gruas colossais e torres aparatosas a multiplicarem-se ao desafio.
Para quem se despede do Legend, é quase impossível deixar de experimentar sentimentos contraditórios. Por um lado, o “miradouro” é sensacional, tanto que nem apetece sair do barco, ao qual se descobre ter-se ganho uma viciante habituação. Por outro, o que Hong Kong já revela nesta primeira visão panorâmica é no mínimo tão promissor e excitante quanto Xangai — que, recorde-se, foi o ponto de partida. Hong Kong não é Xangai, mas pode vir a ser ainda maior, mais vertical e mais futurista. Regressa a estranha sensação do déjà vu inicial e fica a ideia que este cruzeiro, apesar de transição, acaba por fechar um (excelente) capítulo de introdução ao presente-futuro da China.
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Guia prático
Como ir
A Air France dispõe de 14 ligações semanais de Lisboa com Xangai e 14 ligações semanais da capital portuguesa com Hong Kong, em ambos os casos via Paris. Lisboa-Paris são 2h30, Paris-Xangai um pouco mais de 11 horas, que sobem para cerca de 13h no caso de Hong Kong.
A tarifa Lisboa-Xangai//Hong Kong-Lisboa em classe económica fica em 815€; em classe económica premium custa 1535€ e em executiva business são 2590€.
Próximas saídas
O Legend of the Seas vai realizar cruzeiros de dois a quatro dias, sempre a partir e com retorno a Singapura até Março de 2013, vindo depois a parar para “revitalizado” nessa mesma cidade. Os preços variam consoante a duração, mas começam nos 350€ por pessoa, para um cruzeiro de quatro dias. Todas as refeições (menos bebidas alcoólicas e de cápsula) e a maior parte das atracções e facilidades (ginásio, torre de escalada, piscinas e jacuzzi gratuitos, mas não massagens) estão incluídas nesse preço. A partir de Junho do ano que vem, o Legend será substituído pelo Mariner of The Seas na Ásia, navio que representa uma segura mais-valia em termos de restaurantes, espaços desportivos e entretenimentos.
Informações
Air France
Central de reservas: 707202800
www.airfrance.pt
Royal Caribbean
www.royalcaribbean.pt
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A Fugas viajou a convite da Royal Caribbean e da Air France