Fugas - viagens

Jaime, um seringueiro que não teve juventude

Por Hugo Daniel Sousa

Perto de Manaus, fica o Museu do Seringal, cenário do filme "A Selva" mantido para recordar o tempo da borracha, em que alguns enriqueceram à custa do trabalho desumano de outros. Jaime, 72 anos sofridos, desfia as memórias dessas aventuras na selva.

A lancha abranda e vêem-se construções de madeira, com árvores por todo o lado. O lugar parece idílico. Uma placa anuncia: Museu do Seringal, Vila Paraíso. A viagem até aqui vale por si. É meia hora de barco desde Manaus, mas significa muito mais. Significa entrar na calma do rio Negro, com o encanto das águas escuras e a tranquilidade da Amazónia.

Sobe-se uma escada de madeira para uma varanda, com uma vista linda. Há redes e bancos para descansar. Que melhor lugar para repousar do que esta varanda, com o rio, as árvores e as nuvens no horizonte? Mas a verdade é que varandas como esta só foram lugar de descanso para os coronéis de borracha, que enriqueceram à custa do trabalho desumano de milhares de homens que entravam na selva à noite em busca do látex da seringueira, a árvore que dá origem à borracha.

Jaime, de 72 anos, foi um desses homens explorados. De pele escura, bigode grisalho, pólo às riscas e calças brancas, podia ser uma personagem do livro A Selva, de Ferreira de Castro, cuja versão cinematográfica de Leonel Vieira foi filmada neste local, agora transformado em Museu do Seringal. Este espaço foi construído para as filmagens e mantido para preservar a memória da corrida à borracha. Mas mais do que a casa senhorial, a igreja, a casa de defumação da borracha ou o barracão de aviamento, são as palavras de Jaime que recuperam esse tempo em que homens eram obrigados a meter-se selva dentro de noite, sujeitos às cobras e às onças, aos mosquitos e às doenças.

“No tempo do meu pai, o seringal era escravidão. No meu tempo, não se conseguia pagar a conta ao patrão, mas no tempo do meu pai era pior. O patrão mandava açoitar, mandava cavar sepultura, mandava o camarada entrar no buraco e atirava nele”, conta Jaime, que agora é funcionário da secretaria da Cultura do Amazonas e trabalha como guia no Museu do Seringal.

Este homem tem sangue indígena. Nasceu num seringal no Acre (junto à fronteira com o Peru), filho de um cearense e de uma índia jamamadi. Durante mais de 25 anos não conheceu outra coisa que não fosse recolher látex para fazer borracha, o trabalho mais difícil que alguma vez teve de fazer. “Entre os meus 10/12 anos até aos 40, eu estive no seringal, cortando seringa todo o tempo. A minha vida foi essa. Não tive juventude. Passear? Namorar? Negativo. Naquele tempo no interior não tinha isso não”, conta o ex-seringueiro, abanando a cabeça.

Ervas curativas

A visita ao Museu do Seringal começa pela casa senhorial, onde morava o seringalista, que o dinheiro transformava em coronel de barranco. Há sinais de luxo. Um piano importado da Alemanha, uma grafonola, uma mesa grande com louças de porcelana, talheres de prata, candeeiros de cristal. O oposto do que veremos mais à frente, na casa do seringueiro, que não é mais do que um barraco despido no meio da floresta.

“O seringueiro não entrava aqui [na casa senhorial]”, diz Jaime, enquanto olhamos para uma espingarda, que merece um comentário imediato: “Os coronéis mandavam matar os seringueiros que não cumpriam as ordens. Eu já não vi isso, mas o meu pai contava muitos casos. Tinha um buraco com nome de ‘paga saldo’, onde o patrão mandava jogar os seringueiros.”

Ao lado da casa senhorial, fica o barracão de aviamento, outra construção em madeira. Era o sítio onde os seringueiros se abasteciam de alimentos como arroz, feijão, carne seca e café. E onde bebiam cachaça, para esquecer a dureza daquele trabalho. “Quando seringueiro ficava bravo, tomava uma cachaça e acalmava”, conta Jaime, quase sempre com um sorriso nos lábios. Acalmava e ficava mais endividado, porque a conta era paga com a borracha recolhida dia após dia. “A gente ficava sempre a dever. Nunca um trabalhador conseguia saldar a dívida”, diz, sobre essa contabilidade injusta, que em vez de salário dava dívidas aos seringueiros.

Os trabalhadores também tinham de comprar ao patrão as ferramentas para recolher o látex: a faca, a latinha e a poronga, uma lamparina para a cabeça, porque muito do trabalho do seringueiro era nocturno. “No início, saía à uma ou duas da manhã, chorando, com medo de ir e não voltar mais. Quando a gente vai a primeira vez, a gente vai com medo. Não tem costume de andar no mato sozinho à noite. Depois me acostumei”, diz Jaime, homem de fala rápida, relembrando os primeiros tempos em que cortou seringa.

O dia dos seringueiros começava às duas ou três da manhã, porque de madrugada o látex está mais fresco. Faziam-se os cortes de noite e deixava-se uma pequena tigelinha na árvore para recolher o leite. E ao final da manhã passava-se o látex para uma lata maior. Um trabalho duro, feito na escuridão e no meio de uma selva cheia de perigos. “Nunca fui mordido por cobra, mas conheci muita gente que morreu”, diz Jaime, que experimentou vários tipos de febres e doenças: “Acho que malária tive umas dez vezes.” À falta de médico, as ervas medicinais eram a solução: “A minha mãe era índia, sabia que ervas davam para curar a gente.”

A jornada de trabalho não terminava com a chegada da luz do dia. Era então hora de defumar a borracha, processo que tem de ser feito no mesmo dia da recolha. “Tem de defumar até às seis da tarde. Se não, começa a coalhar. Basta o calor da mão para tornar o látex sólido”, explica Jaime, enquanto faz uma demonstração, rodando um pau com borracha por cima de uma fogueira. Feita a defumação, a borracha assemelha-se a uma bola, que depois é valorizada conforme o peso. Um negócio com muitas nuances, porque, do lado de quem vendia, havia quem tentasse incluir paus ou panos para inflacionar o peso. E, do lado comprador, fazia-se o oposto. “Quando se compra bola de borracha, desconta-se 10 ou 15%, porque ainda está molhada. Mas há quem desconte 40%. Eu fazia isso, porque meu patrão me mandava”, conta o guia Armando Dússan, um colombiano que também já trabalhou no comércio da borracha.

Jaime afinal é Manuel

Passeamos debaixo da sombra das seringueiras, árvores com três folhas. Jaime desfia memórias do tempo em que os seringueiros desviavam alguma borracha para o regatão, o mercado no rio, onde a trocavam por açúcar, bolacha ou roupas. “Quando eu comecei a me entender, as mulheres faziam uma fralda de pano. Não existia esse negócio de calcinha [cueca]”, diz Jaime, enquanto nos aproximamos de uma pequena construção de madeira em palafitas, apenas com uma parede. É a casa do seringueiro, simples e a alguns metros do chão. “O seringueiro dorme pouco. Deita-se às sete e acorda à uma da manhã. Nessas horas, o sono é muito pesado. Se a onça chegar, pega ele. Então ele dorme lá em cima e deita a escada abaixo. Se onça chegar, tem de pular e faz barulho”, explica Jaime.

O Museu do Seringal tem ainda uma igreja, com um altar dedicado a Nossa Senhora da Conceição, a padroeira de Manaus. Nas paredes, há papelinhos com pedidos à santa. O guia Armando Dússan explica que a maioria dos coronéis eram católicos, assim como muitos trabalhadores, especialmente os vindos do Nordeste: “Os nordestinos trouxeram as suas roupas, as suas comidas, as suas festas e sua religião.”

Ao contrário da casa senhorial ou da área de banho, na igreja os seringueiros podiam entrar, explica Jaime. E é então que conta a curiosa história do seu baptismo. Afinal, Jaime chama-se na verdade Manuel Henrique de Sousa. “O padre só vinha no seringal de ano a ano para fazer a desobriga, baptismo e casamento”, conta, entre sorrisos. “Mas antes de o padre chegar, eu adoeci para morrer. Então existe um baptismo em casa, em que o pai da gente chama uma pessoa de idade para fazer o baptismo dentro de casa. Esse baptismo tem de ser [com o nome] de Manuel ou Maria, não pode ser Jaime, Pedro, José.”

Mais tarde, Jaime seria baptizado pelo padre, que insistiu que ele deveria ser Manuel. “Só os meus documentos têm Manuel. Há gente na minha família que não sabe que o meu nome oficial é Manuel”, conta o ex-seringueiro, cuja boa disposição supera o sofrimento que passou.

Jaime casou bem cedo, com uma menina de uma família que trabalhava num seringal próximo. “A primeira moça que namorei, eu casei. Ela era uma criança, tinha 13 anos. Ainda hoje estou com ela. Tem 62 anos e temos 11 filhos”, revela este homem de mãos calejadas, que só deixou o seringal aos 40 anos. Estava cansado, via a filha sem “sapato para calçar, nem roupa para vestir”: “Andava toda rasgadinha”, conta, lembrando que naquele tempo a roupa dos seringueiros era feita de sacos de açúcar.

Resolveu então mudar de vida. Ouvia dizer que Manaus era bom para ganhar dinheiro e arriscou. No início correu mal. “Não me dei bem, porque quando cheguei sofri muito. Vim com pouco dinheiro, acabou-se o dinheiro e tinha pouco conhecimento na cidade. Sofri um ano e tal. Depois, em 1983, comecei a trabalhar e não parei mais.” É assim a vida de Manuel Henrique de Sousa, que foi, é e será sempre conhecido como Jaime.

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