Fugas - viagens

Manaus: Uma cidade em busca da harmonia com a natureza

Por Hugo Daniel Sousa (texto) e Nelson Garrido (fotos)

Já foi a Paris dos Trópicos, mas o crescimento nas últimas décadas descaracterizou-a um pouco. Percorremos a cidade pelos olhos do escritor Milton Hatoum e descobrimos que Manaus afinal ainda tem muitos encantos. E que está a tentar recuperar alguma harmonia com a natureza.

Ver uma cidade pelos olhos de quem a conhece é sempre diferente. Não ficamos limitados às primeiras impressões e aos locais turísticos. Ganhamos perspectiva histórica e sentido crítico. Manaus tem merecidamente um lugar no imaginário mundial, como a cidade às portas da Amazónia, a maior floresta tropical do mundo. Só isso justifica a visita. Mas vê-la pelo olhar de Milton Hatoum, um dos grandes escritores brasileiros da actualidade e um dos filhos mais conhecidos da capital da Amazónia, é conhecê-la mais profundamente.

Agora a viver em São Paulo, Milton Hatoum tem sentimentos contraditórios quando fala da cidade onde nasceu há 61 anos, descendente de emigrantes libaneses. Alegria e tristeza. Admiração e desilusão. Saudade e revolta. A voz do escritor enche-se de emoção quando recorda a Manaus da sua infância, uma “cidade horizontal, com casario bonito e igarapés [canais de água] no centro”. Enche-se de orgulho quando fala do Teatro Amazonas e de admiração quando descreve o prazer de entrar pela selva adentro.

A voz, no entanto, muda de tom ao falar nas grandes transformações que ocorreram nas últimas décadas. “Manaus perdeu as suas características históricas, do começo do século. Destruíram a cidade. Os igarapés, que eram talvez o maior encanto, foram poluídos e hoje estão aterrados. A Manaus das praças lindas, da natureza, acabou”, diz à Fugas Milton Hatoum, falando da sua terra natal como uma “São Paulo do Norte”, que perdeu a “harmonia com a natureza”.

Estes contrastes são, aliás, bem visíveis assim que se chega a Manaus. A começar pela aproximação do avião à cidade (a TAP iniciou esta semana voos directos Lisboa-Manaus-Belém). Quem for à janela (o que se recomenda), verá a diferença entre a natureza verdejante da floresta amazónica e o cimento de uma cidade que cresceu e tem agora dois milhões de habitantes. A cada esquina, cruzamo-nos com edifícios magníficos do início do século passado, ao lado de prédios em ruínas ou arranha-céus descaracterizados. Tanto estamos numa rua suja, pejada de carros, como paramos, extasiados, numa bela praça, como a de São Sebastião.

E não se pense que estas críticas de Milton Hatoum são uma voz isolada ou radical. O próprio poder político reconhece que a evolução foi negativa. “A cidade cresceu mal e de mau jeito. Era para ser uma cidade horizontal e está-se transformando numa capital igual ao resto do mundo, vertical, o que descaracteriza a arquitectura própria da região e atrapalha a boa qualidade de vida. É preciso compreender que estamos numa zona tropical húmida e é preciso viver de acordo com a natureza. Se não o fizermos, vamos viver mal”, diz Robério Braga, secretário de Cultura do estado do Amazonas, afirmando que é, por isso, que a prioridade tem sido recuperar o património e as praças de Manaus.

Quer isto dizer que não vale a pena ir a Manaus? Longe disso. A cidade conserva encantos, que lhe valeram o cognome de Paris dos Trópicos, e está às portas da Amazónia, uma experiência única para qualquer turista ou viajante. Vamos então ao roteiro de Milton Hatoum, um amazonense viajante, que afinal nunca deixa a sua cidade para trás. “Se o desejo, a literatura ou a viagem levam os personagens a expandir o raio de sua acção e a transpor as barreiras da infância e da moral, da classe e da província, estes mesmos elementos não se dão por vencidos e, mais cedo ou mais tarde, recaem sobre os heróis como uma fatalidade que os traz de volta a um centro imóvel: “para onde vou, Manaus me persegue”, lê-se na apresentação do seu livro de contos A Cidade Ilhada.

Teatro Amazonas, o ícone
O Largo de São Sebastião é, talvez, o local mais bonito do centro de Manaus. Consegue perceber-se como era a cidade nos tempos áureos. A praça está bem arranjada, com a calçada portuguesa no sítio, as árvores são frondosas, os bancos de madeira dão uma sombra preciosa. Os prédios em volta estão quase todos pintados de fresco. São restaurantes, gelatarias, hotéis, cafés. E, acima de todos, na beleza, na altura e no destaque, está o imponente Teatro Amazonas, um edifício improvável numa cidade à entrada da selva.

“Quando eu era criança, morava a 100 metros do teatro. A minha irmã começou a estudar piano aos cinco anos e, aos 10, deu um recital no teatro. Eu tinha seis anos. Fiquei deslumbrado com as pinturas da sala principal e do salão nobre”, diz à Fugas Milton Hatoum, que escreveu o conto A Ninfa do Teatro Amazonas, que tem como cenário o principal ícone de Manaus.

O teatro foi construído no final do século XIX, na época áurea da borracha. O então governador Eduardo Ribeiro foi o ideólogo e executor de um projecto que marcou para sempre a cidade. Por fora, é um edifício imponente, também graças à estranha cúpula verde e amarela (tem 36 mil telhas importadas da Europa) que Eduardo Ribeiro acrescentou ao projecto original, desenhado por um gabinete de arquitectura de Lisboa. Mas é lá dentro que o teatro revela todo o seu esplendor. Os lustres franceses, as pinturas do tecto ilustrando a dança, tragédia, ópera e música, as máscaras homenageando compositores e dramaturgos, entre eles Gil Vicente, as cadeiras de madeira, os mármores no hall de entrada, os espelhos no salão nobre a fazerem lembrar Versalhes, tudo se conjuga para transformar o teatro “numa obra de arte”, como diz Robério Braga, que arrisca que Manaus “é a única cidade do mundo cujo símbolo é um teatro”.

É possível visitar o teatro de segunda a sábado (e durante o Mundial também ao domingo). A visita é curta mas serve para saber um pouco da história deste projecto, construído à base de materiais vindos da Europa. Quando a Fugas fez uma visita guiada, encontrou o maestro Marcelo de Jesus. “O Teatro Amazonas é o coração de Manaus. É para onde todo o mundo vem, o que todo o mundo quer visitar”, resumiu. Além da visita, é inesquecível assistir a um espectáculo nesta sala. Não só pela beleza actual, mas também porque é impossível não imaginar o que era este espaço há 100 anos, sem nada em volta, com senhoras de vestido longo e homens trajados de gala para assistir à ópera no meio da Amazónia.

Saindo do teatro, volta-se à praça São Sebastião, outra das memórias fortes de Milton Hatoum. “Ia quase todos os dias à praça São Sebastião, esse bela praça de desenho italiano, cujo piso é revestido de pedras portuguesas. As ondas pretas e brancas inspiraram o paisagista Burle Marx no projecto dos jardins do Aterro do Flamengo, no Rio”, conta o escritor, deixando-se levar pela sua formação em arquitectura. “Os sinos da igreja de São Sebastião ainda ecoam na minha memória. Às vezes, em São Paulo, acordo com as badaladas dos sinos e recordo proustianamente cenas da infância”, acrescenta Milton, que usou esta praça, e o monumento à abertura dos portos, como cenário do início do seu romance Cinzas do Norte: “Antes de conviver com Mundo no ginásio Pedro II, eu o vi uma vez no centro da praça São Sebastião: magricelo, cabeça quase raspada, sentado nas pedras que desenham ondas pretas e brancas. Ao lado de uma moça, ele mirava a nau de bronze do continente Europa; olhava o barco do monumento e desenhava com uma cara de espanto, mordendo os lábios e movendo a cabeça com meneios rápidos como os de um pássaro. Parei para ver o desenho: um barquinho torto e esquisito no meio de um mar escuro que podia ser o rio Negro ou o Amazonas. Além do mar, uma faixa branca. Dobrou o papel com um gesto insolente, me encarou como se eu fosse intruso; de repente se levantou e estendeu a mão, me oferecendo o papel dobrado.”

Esta praça é o verdadeiro centro de Manaus. Durante o dia, tem pouco movimento, porque o calor abrasador afasta as pessoas da rua. Mas a partir do final da tarde, ganha vida. É nessa altura que se juntam as pessoas. À sexta-feira e sábado, por exemplo, é habitual haver grupos de jovens no meio da praça, em círculos de conversa ou de canções.

A comunidade desfruta da praça. Um dos pólos de atracção é a banquinha do Tacacá da Gisela, uma receita tradicional do Amazonas que faz sucesso do final da tarde em diante. O tacacá é feito com tucupi (um suco extraído da mandioca brava), goma (amido de mandioca), jambu (uma erva picante que deixa a boca ligeiramente dormente, porque tem um efeito anestésico) e camarões. Tem um sabor diferente de todos os outros caldos que já provámos.

O senhor Joaquim, dono da banca de tacacá e de um quiosque de jornais e livros, costuma projectar DVD de música ao vivo numa pequena tela, para animar os clientes: normalmente passa música brasileira (vimos Chico e Caetano, por exemplo), mas Joaquim Melo também tem Madredeus e Carlos Paredes na colecção.

A tarde/noite é também o momento ideal para fazer um périplo pelos bares e gelatarias. O Bar do Armando, que era de um português, tem mesas no passeio. Serve cervejas bem geladas (inteligentemente geladas, como diria Miguel Esteves Cardoso) e petiscos, incluindo os bolinhos de bacalhau que provam como a influência portuguesa se nota muito por aqui. É habitual haver música ao vivo. Na esquina, há uma gelataria, a Glacial, também fundada por portugueses, onde é possível experimentar sabores de que nunca se ouviu falar: cupuaçu, açaí, tucumã, pupunha ou taperebá.

Herança europeia
A praça também pode ser o ponto de partida de um passeio em direcção ao porto. É neste trajecto que Milton Hatoum mais sente a passagem do tempo, como se lê em Cinzas do Norte. “Em poucos anos Manaus crescera tanto que Mundo não reconheceria certos bairros. Ele só presenciara o começo da destruição; não chegara a ver a ‘reforma urbana’ do coronel Zanda, as praças do centro, como a Nove de Novembro, serem rasgadas por avenidas e terem todos os seus monumentos saqueados. Não viu sua casa ser demolida, nem o hotel gigantesco erguido no mesmo lugar.”

Ainda assim vale a pena caminhar, embora preparado para enfrentar o calor e a humidade. A praça da Polícia, também conhecida como Praça Heliodoro Balbi, diz muito a Milton Hatoum. Aqui fica o colégio onde estudou e, também por isso, foi usada como cenário do romance Dois Irmãos, um bom livro para ler antes de ir a Manaus. A praça foi renovada em 2009. É uma reminiscência da Manaus que tinha harmonia com a natureza. As árvores dão sombra, os bancos de madeira dão descanso e em frente aprecia-se o Palacete Provincial, mais um desses edifícios que, de repente, nos faz pensar que estamos em Paris ou Viena.

Outro edifício que nos faz viajar no tempo é o Palácio Rio Negro, construído por um antigo magnata da borracha e hoje transformado em centro cultural. Os jardins foram renovados e têm pequenos canais, que dão uma ideia de como era a cidade no tempo dos igarapés.

Percorrendo as ruas, percebe-se facilmente que Manaus é uma cidade de múltiplas influências. A herança europeia está presente na arquitectura, a cultura indígena é omnipresente e, em certos momentos, a cidade parece africana. O comércio de rua é um desses traços africanistas. Costuma haver “camelôs” nas principais avenidas (algo que o Governo está a tentar mudar, criando lojas para os vendedores ambulantes). E descendo até ao porto encontramos outra das imagens de marca de Manaus: o mercado, ou melhor, os mercados.

Existe o Mercado Municipal Adolpho Lisboa, um conjunto de edifícios de 1893, renovados em 2013. É um espaço inspirado nos mercados de Grenelle e Les Halles, em França, e com uma fachada influenciada pela galeria Vittorio Emanuelle, de Milão. “Um belo exemplo da arquitetura de ferro”, diz Milton Hatoum sobre este mercado, que é outro dos postais ilustrados de Manaus.

Algumas dezenas de metros ao lado fica o outro mercadão, chamado Manaus Moderna, um espaço bem menos organizado e bonito, mas onde a população faz habitualmente as compras. Pela manhã, tem mais gente do que o Adolpho Lisboa, à procura do peixe fresco e das frutas amazónicas. Passear pelos mercados é a oportunidade para ver de perto os famosos peixes da Amazónia, do tambaqui ao tucunaré, passando pelo pirarucu ou o bodó, um peixe que é vendido vivo, porque liberta enzimas que o tornam impróprio para consumo se for abatido antes de ser cozinhado.

Do outro lado da rua, fica o porto de Manaus, que está a precisar de uma renovação profunda. Dezenas de barcos acumulam-se no cais. Chegam vegetais e partem arcas frigoríficas, carregadas com alimentos. Muitas comunidades ribeirinhas ficam a quatro e cinco horas de viagem de barco. Outras a mais ainda. A rede de descanso é um apetrecho obrigatório para ter algum conforto na viagem e, por isso, nos barcos vazios já há dezenas de redes estendidas, a reservar lugar.

Bosque da ciência, o oásis
Assim que desafiámos Milton Hatoum a fazer um roteiro de Manaus, o escritor falou imediatamente de um sítio especial: o bosque da ciência, onde fica a sede do INPA - Instituto Nacional de Pesquisa Amazónica. É um parque, “o lugar mais aprazível de Manaus”, segundo Hatoum. “A cidade deveria ser toda assim, mas a barbárie e a ignorância não permitiram isso. É arborizado, um oásis no meio da loucura calorenta, porque a natureza foi burramente expulsa da cidade.”

Situado na zona leste e inaugurado em 1995, o parque tem 13 hectares e foi projectado por Severiano Porto, o mesmo arquitecto que desenhou o estádio Vivaldo Lima, demolido para dar lugar à nova arena para o Mundial de futebol deste ano — outras das revoltas de Milton: “Destruir um património da arquitectura amazónica é um lance de extrema crueldade e ignorância. O que há por trás dessa crueldade e incultura? A ganância, a grana às pencas, o ouro sem mineração, sem esforço”, escreveu na crónica “Estádios Novos, Miséria Antiga”. Ainda assim, é justo reconhecer que a Arena Amazónia, onde Portugal disputará o seu segundo jogo no Mundial, é um dos estádios mais bonitos do Brasil.

Fomos ao bosque num domingo à tarde. É uma boa opção para sentir um pouco da Amazónia, especialmente para quem não tiver tempo ou dinheiro para ir à selva. A vegetação é vasta e podemos ver vários animais. Aliás, é mais fácil vê-los aqui do que na selva. Logo à entrada, estão os tanques com os famosos peixes-boi, uma mamífero que pode chegar aos 450 kg e quase três metros de comprimento. Duas curiosidades: não tem unhas e nunca fica banguela (desdentado), porque troca continuamente de dentes.

Também vemos ariranhas, uma espécie de lontra com cauda comprida, que tem uma característica peculiar: as manchas no peito e pescoço funcionam como uma impressão digital, permitindo a identificação individual dos animais. Há também tartarugas da Amazónia, que podem atingir os 82cm, e três espécies de jacarés (tinga, açú e pedra), aliás, bem mais fáceis de ver nestes tanques do que no meio da selva, onde são fugidios e só saem à noite para caçar.

No passeio pelo bosque, bem mais fresco do que a cidade, é também possível ver algumas árvores típicas da Amazónia, como o cupuaçu (um parente do cacau, óptimo no gelado) e Tanimbuca — no bosque, existe um exemplar com 600 anos e 35 metros de altura.

O rio, solidão absoluta
Outro dos grandes atractivos de Manaus é ser banhado pelo rio Negro, que mesmo ao largo da cidade se junta com o Solimões, dando origem ao rio Amazonas. O fenómeno chama-se Encontro das Águas e é fácil de ver — é uma curta viagem de 15 minutos de barco.

As águas dos dois rios não se misturam imediatamente, porque há grandes diferenças de temperatura e de velocidade entre os dois. O rio Negro, que nasce no hemisfério Norte, na Colômbia, é mais quente (24º a 28º, consoante as fontes) do que o Solimões, que vem do hemisfério Sul, do Peru (18º a 24º). A cor escura do Negro deve-se às matérias orgânicas e a cor barrenta do Solimões é dada pelas argilas que a água transporta. É muito curioso meter a mão nas águas dos dois rios e sentir as diferenças de temperatura.

O Encontro das Águas é apenas o começo dos encantos do rio. Se nos afastarmos de Manaus, percorrendo um dos rios de barco, mergulha-se num outro mundo. “O rio Negro é um lugar único no mundo pela vastidão. É um dos pouco lugares do mundo em que há uma solidão absoluta. Não há ninguém. Quando se sobe o rio, navega-se quatro, cinco, sete dias de barco e não se vê ninguém. Isso só existe em algumas regiões da África e da Ásia”, diz Milton Hatoum.

Na visita da Fugas não houve tempo para viajar tantos dias pelo rio Negro acima, mas uma visita ao Museu do Seringal, a meia hora de Manaus, dá para sentir a beleza da paisagem e a sensação de isolamento. O Museu do Seringal, aliás, é outros dos sítios a não perder nos arredores de Manaus. Foi construído para as filmagens do filme A Selva, de Leonel Vieira, e transformado em museu para lembrar como eram os tempos da borracha, que trouxe riqueza a Manaus mas causou a morte a milhares de seringueiros (ver Fugas de 12/04/2014).

Ironicamente, o crescimento económico que descaracterizou a cidade de Manaus foi o mesmo que permitiu a preservação da floresta. “Ao contrário do Pará, a floresta foi muito preservada em Manaus”, diz Milton Hatoum, para quem o ecoturismo realmente funciona. “Você sai de Manaus e parece que está noutro mundo.”

O que Milton Hatoum diz sobre o rio Negro vale igualmente para o Solimões. A Fugas foi dormir a um hotel de selva, o Juma Lodge, a três horas de Manaus (ver Fugas de 08/03/2014). A experiência é única. Realmente única. Os telemóveis não funcionam e é realmente possível fugir à civilização. Passear na selva, ver jacarés, nadar no rio, pescar e ver o nascer do sol são algumas das actividades possíveis, sendo que nenhuma iguala o prazer de deslizar numa canoa pelos igarapés, vendo e ouvindo os pássaros que sobrevoam o rio.

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