Colocados perante a oportunidade de poder optar entre um vinho tinto de cor mais ligeira e delicada, ou outro que se apresente enfarpelado por uma cor mais espessa e concentrada. a escolha da maioria dos enófilos reincidirá quase inevitavelmente sobre o segundo, sobre o vinho tinto que se singularize por oferecer uma cor mais sólida e corpulenta, mais escura e densa, numa expectativa, mesmo que não assumida, de maior complexidade e intensidade de sabores. Esta é uma condição democrática e relativamente universal que afecta de igual modo enófilos encartados e apreciadores ocasionais, críticos e produtores, enólogos e comerciantes, de todos os lados do mundo, sujeitando profissionais e amadores a um cativeiro mental de que não é fácil escapar.
Ainda que inconscientemente, acabamos por valorizar e distinguir as cores mais cheias e maciças, acreditando na existência de uma correlação directa entre a veemência da cor e a intensidade, estrutura e potência do vinho.
Enaltecemos com louvor e exaltação da profundidade da cor, aplaudindo e abençoando as tonalidades mais opacas e carregadas, testemunhando com voz cheia a satisfação e orgulho quando um vinho se apresenta preto e impenetrável à luz.
Pelo contrário, desconfiamos e desacreditamos instintivamente todos os vinhos tintos que se anunciem pálidos e descorados, tingidos por laivos muito ligeiros de cor vermelha, simplesmente rosados e sem a gravidade e profundidade das cores mais sombrias que, no entender da maioria, devem colorir os vinhos tintos.
Mesmo para os mais letrados na matéria, aqueles que sabem que a cor não sustenta qualquer
vínculo directo, ou indirecto, com a qualidade dos vinhos tintos, ou com a falta dela, a visão de uma tonalidade mais carregada funciona como um certificado espontâneo de robustez e sanidade, um abono de saúde a que involuntariamente nos agarramos. Uma circunstância irreflectida e inconsciente que afecta a quase todos, de forma mais ou menos homogénea.
Infelizmente, a obsessão pela cor pressupõe ser uma das principais condicionantes enológicas na elaboração dos vinhos tintos modernos, bem como um dos estímulos mais determinantes para uma eventual viciação do vinho.
A história do vinho confirma os prejuízos que a obstinação com a cor pode acarretar, expressos de forma eloquente na história preambular do Vinho do Porto, com a introdução da baga de sabugueiro na elaboração do afamado Vinho Fino do Porto, utilizada como corante artificial, capaz de acentuar a cor de qualquer vinho tinto. E, apesar de ter sido proibida a adição de baga de sabugueiro ao Vinho de Feitoria, por alvará de 30 de Agosto de 1757, com a imposição do arranque compulsivo de todas as plantas de sabugueiros na distância de cinco léguas das duas margens do Douro, a verdade é que, catorze anos mais tarde, em novo edital datado de 16 de Novembro de 1771, a proibição alargou a erradicação do sabugueiro às províncias do Minho, Beira e Trás-os-Montes, numa tentativa final de erradicar de vez com a prática.
Hoje, apesar de afastadas as memórias de adulteração de um passado longínquo, os vinhos tintos nacionais, e tal-qualmente os internacionais, continuam a amargar com uma autêntica obstinação pelos vinhos de tonalidades sombrias e profundas.
Tantos e tantos excessos são hoje cometidos na adega para que os vinhos tintos sobrevenham severos e carregados na cor, numa busca incessante por maior concentração cromática que conduz a extracções forçadas e a desmesuras e concentrações supérfluas. Por causa da cor, absolutamente irrelevante na apreciação e qualidade do vinho, muitos vinhos se perdem.
Os poucos que se desobrigam da exigência de uma cor profunda, os raros destemidos que se libertam do espartilho das matizes negras e opacas, sabem que a cor não é um fim per se. Basta atentar no J 2007, da operação alentejana da José Maria da Fonseca, um vinho de cor vermelha cereja muito aberta que, logo no primeiro olhar, garante um estatuto diferente, num enquadramento curioso entre uma visão moderna e clássica, entre a secura dos taninos e a graça da fruta, entre as notas de resina, terra molhada. e a baunilha do estágio em madeira. Um tinto admirável e original que vale a pena saborear.
Ou o Quinta dos Termos Selecção 2007, um vinho das Beiras que não se envergonha da sua cor avermelhada de profundidade simplesmente mediana. Um tinto muito particular, diferente e pejado de personalidade, rude nos taninos mas vigoroso e cheio de alma, espelho fiel de uma região alterosa e sóbria. A meio caminho entre classicismo e modernidade, é um tinto genuíno que gere um lote de castas tão diferentes como a Trincadeira, Rufete, Touriga Nacional, Tinta Roriz e Tinto Cão. Um bom vinho num estilo alternativo que se saúda.
Igualmente vago na cor mostrase o sadino Anima L7 2007 que, apesar de o rótulo não o dizer explicitamente, nasceu na colheita 2007, apresentando-se vestido de tons vermelhos muito ligeiros e descorados. Se no nariz é a cereja que domina, resguardada pelo licor de ginja e um leve toque de caça, na boca é a acidez que comanda, impondo um ritmo endiabrado do ataque até ao fi nal de boca, obsequiada por um final longo e fresco. Igualmente atraente apresenta-se o Quinta de S. Francisco 2007, da região de Lisboa, vestido de cor vermelha rubi com bordo magenta. O nariz propõe fruta fresca, numa tela bem composta, elegante e bem proporcionada. A boca confirma a elegância e compostura, com fruta sincera e expressiva, proporcionando um vinho alegre e agradável, que dá prazer beber.