Fugas - vinhos

Nelson Garrido

A ditadura da cor

Por Rui Falcão

A obrigação comercial de apresentar vinhos tintos de tonalidade negra, densa e fechada, obriga a exageros e compromissos, originando extracções pesadas e desnecessárias que embrutecem os vinhos. Para quando uma revolução de costumes?

Colocados perante a oportunidade de poder optar entre um vinho tinto de cor mais ligeira e delicada, ou outro que se apresente enfarpelado por uma cor mais espessa e concentrada. a escolha da maioria dos enófilos reincidirá quase inevitavelmente sobre o segundo, sobre o vinho tinto que se singularize por oferecer uma cor mais sólida e corpulenta, mais escura e densa, numa expectativa, mesmo que não assumida, de maior complexidade e intensidade de sabores. Esta é uma condição democrática e relativamente universal que afecta de igual modo enófilos encartados e apreciadores ocasionais, críticos e produtores, enólogos e comerciantes, de todos os lados do mundo, sujeitando profissionais e amadores a um cativeiro mental de que não é fácil escapar.

Ainda que inconscientemente, acabamos por valorizar e distinguir as cores mais cheias e maciças, acreditando na existência de uma correlação directa entre a veemência da cor e a intensidade, estrutura e potência do vinho.

Enaltecemos com louvor e exaltação da profundidade da cor, aplaudindo e abençoando as tonalidades mais opacas e carregadas, testemunhando com voz cheia a satisfação e orgulho quando um vinho se apresenta preto e impenetrável à luz.

Pelo contrário, desconfiamos e desacreditamos instintivamente todos os vinhos tintos que se anunciem pálidos e descorados, tingidos por laivos muito ligeiros de cor vermelha, simplesmente rosados e sem a gravidade e profundidade das cores mais sombrias que, no entender da maioria, devem colorir os vinhos tintos.

Mesmo para os mais letrados na matéria, aqueles que sabem que a cor não sustenta qualquer

vínculo directo, ou indirecto, com a qualidade dos vinhos tintos, ou com a falta dela, a visão de uma tonalidade mais carregada funciona como um certificado espontâneo de robustez e sanidade, um abono de saúde a que involuntariamente nos agarramos. Uma circunstância irreflectida e inconsciente que afecta a quase todos, de forma mais ou menos homogénea.

Infelizmente, a obsessão pela cor pressupõe ser uma das principais condicionantes enológicas na elaboração dos vinhos tintos modernos, bem como um dos estímulos mais determinantes para uma eventual viciação do vinho.

A história do vinho confirma os prejuízos que a obstinação com a cor pode acarretar, expressos de forma eloquente na história preambular do Vinho do Porto, com a introdução da baga de sabugueiro na elaboração do afamado Vinho Fino do Porto, utilizada como corante artificial, capaz de acentuar a cor de qualquer vinho tinto. E, apesar de ter sido proibida a adição de baga de sabugueiro ao Vinho de Feitoria, por alvará de 30 de Agosto de 1757, com a imposição do arranque compulsivo de todas as plantas de sabugueiros na distância de cinco léguas das duas margens do Douro, a verdade é que, catorze anos mais tarde, em novo edital datado de 16 de Novembro de 1771, a proibição alargou a erradicação do sabugueiro às províncias do Minho, Beira e Trás-os-Montes, numa tentativa final de erradicar de vez com a prática.

Hoje, apesar de afastadas as memórias de adulteração de um passado longínquo, os vinhos tintos nacionais, e tal-qualmente os internacionais, continuam a amargar com uma autêntica obstinação pelos vinhos de tonalidades sombrias e profundas.

--%>