Fugas - vinhos

Quando a idade é um posto

Por Rui Falcão

Serão os países do Novo Mundo tão inexperientes e imberbes como estimamos pensar? O que fazer quando a realidade se encarrega de rebater os falsos argumentos que fundamentam o nosso sentimento de superioridade?

Nem mesmo com toda a boa vontade do mundo seria possível ignorar a permanente manifestação de sobranceria no discurso vinícola comum europeu, justificada através de tiques recorrentes de afectada altivez, pequenos sinais de menosprezo para com os novos países produtores, invocando estereótipos estéreis que continuamos a associar ao Novo Mundo, zombando discretamente com os países que nasceram sem a fortuna de possuir castas autóctones. Por vezes de forma mais explícita, por vezes de forma mais sorrateira, infelizmente os pequenos indícios de prosápia e pretensiosismo continuam a evidenciar-se em quase todos os discursos e comentários, nos pequenos e grandes gestos de vaidade.

Assumimos, no nosso íntimo, de forma mais ou menos declarada, um leve assomo de superioridade, assente nos princípios ilustres da grande tradição europeia, na longa e profusamente documentada história milenar, na cultura popular e erudita do vinho, na vivência e coexistência de milhares de anos, na originalidade da justificação histórica da demarcação das denominações de origem europeias. Mesmo quando nos avocamos a um papel mais diplomático e politicamente correcto não conseguimos dissimular a indelével sensação de que os países do Novo Mundo continuam a ser catraios, países adolescentes e sem historial, nações jovens e ainda sem pergaminhos.

Desventuradamente, para além de perigosa pelo falso sentimento de superioridade, pela bazófia inerente, tal premissa assenta num pressuposto profundamente falso, num erro grosseiro que urge desmistificar.

Sobretudo quando os factos não ratificam a narrativa, como no caso dos vinhos portugueses, paradigmáticos deste tremendo e pernicioso erro de cálculo, fruto de uma auto-avaliação demasiado condescendente e optimista.

Atentemos, como exemplo prático, no vinho mais ilustre de Portugal, o Barca Velha, o vinho nacional mais aplaudido, estudado e valorizado, emblema inquestionável dos vinhos portugueses, dentro e fora de fronteiras, detentor de história e estórias inestimáveis. Será, seguramente, o vinho mais prestigiado e considerado de Portugal, corolário de um passado e presente tão opulentos, consagrado pela dilatada biografia de colheitas já editadas. Se recuarmos na história, apercebemo-nos de que o primeiro Barca Velha foi anunciado no já distante ano de 1952, testemunho claro do seu longo historial, com quase sessenta anos de história documentada, data relevante para qualquer vinho. Exemplo que atesta de forma elucidativa a superioridade histórica dos vinhos nacionais. quando comparados com a simples puberdade dos vinhos do Novo Mundo, adolescentes e sem passado.

A alegação, infelizmente, não oferece qualquer fundamento, anunciando-se desacertada. e profundamente ilusória! Se invocarmos o equivalente australiano do Barca Velha, aquele que é universalmente reconhecido como o representante modelar da nobreza e tradição australianas, o Grange, da Penfolds (em tempos denominado Grange Hermitage), facilmente percebemos a falta de sustentação da argumentação.

Sim, com a nossa arrogância costumeira poderemos sempre pretender esgrimir que não passa de um vinho nascido nos confins da jovem nação australiana, país sem história e sem tradição, pátria dos Yellow Tail e dos vinhos Coca-Cola, país dos vinhos sem alma e sem distinção.

Porém, e possivelmente para sobressalto de muitos, o entusiasmo esmorece quando nos apercebemos que a primeira colheita do Grange despontou na vindima de 1951, um ano antes da primeira edição do Barca Velha. E o sentimento recrudesce quando distinguimos que, ao contrário do Barca Velha que foi editado unicamente em anos excepcionais, num total de 16 edições, o Grange foi editado de forma contínua, sem ressalvas nem interrupções, com 55 edições aprontadas ao longo destes quase sessenta anos de vida! Seria confortável poder afiançar que o Penfolds Grange não passaria de uma mera singularidade, a excepção que confirme a regra, um vinho histórico no meio de um país sem tradição. Desventuradamente o Grange está longe de ser o vinho mais antigo da Austrália, tal como a Penfolds, o produtor responsável pelo Grange, está longe de ser a casa mais antiga da Austrália. Tais atributos recaem sobre a Wyndham, com mais de 183 anos de crónica ininterrupta, na Olive Farm Wines, com 182 anos de existência, na Houghton, com 175 anos de experiência, na Magill, mais tarde englobada na Penfolds, com 176 anos de vida, na Yalumba, com mais de 162 anos de narrativa, na Morris com 152 anos de presença, e em tantos outros produtores, especialmente no campo dos vinhos generosos que emulam os estilos Porto, Madeira, Moscatel e Jerez. Permanecem actualmente no activo 22 produtores australianos com mais de 150 anos de história contínua, todos eles ainda hoje em actividade.

Mas esta não é uma matéria exclusiva ou monopólio de australianos. Basta pensar nos vinhos de Constantia, da África do Sul, vinhos com mais de trezentos anos de história que nos séculos XVIII e XIX eram amplamente considerados na Europa, reconhecidos nas cortes europeias entre a elite mundial, alcançando preços assombrosos em cidades como Londres, Paris, Berlim e afins. Ou, se quisermos dilatar o espectro de acção, podemos ainda incluir alguns dos vinhos norte-americanos que, apesar da lei seca, da proibição dos anos vinte que quase destruiu a indústria vitivinícola americana, permite anunciar produtores como a Inglenook, que já com 150 anos de história, ou a Beaulieu com 110 anos de vida activa. Afinal, onde estão o Novo e o Velho Mundo?

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