Há muito tempo, no tempo em que os enólogos não eram estrelas mediáticas, já havia homens como António Saramago a fazer vinhos para a posteridade. Conheciam e acompanhavam a evolução das vinhas, organizavam as adegas, lavavam os tonéis, recebiam as uvas, vinificavam, lotavam, encubavam, engarrafavam e depois remetiam-se à discrição.
António Saramago, que por estes dias celebrou os seus 50 anos de vida na enologia, é um homem desse tempo. Por ele passaram grandes tintos da José Maria da Fonseca (JMF) entre o final dos anos 1960 e 2001, ano em que saiu da empresa, os Tapada de Coelheiros, os vinhos intermináveis da cooperativa da Granja, os seus clássicos com nome próprio e, mais recentemente, os solenes Kompassus da Bairrada. Fez vinho na Beira Interior, no Dão, na Bairrada, na Península de Setúbal e no Alentejo no tempo em que os rótulos não mencionavam a região de origem e ostentavam marcas cifradas como AS-64 ou Tinto P. Pela obra, pela persistência ou pela memória, o meio século de vida profissional de António Saramago é um momento especial do vinho português.
Comecemos pela obra. Haverá alguma coisa que a distinga? "Sou daqueles enólogos que gostam de ser clássicos", começa por dizer, infirmando a tese dos que por vezes referem o excesso de madeira nos seus vinhos. "Os meus tintos de topo são vinhos de guarda, um pouco rústicos, com acidez, para poderem ter uma vida mais longa", acrescenta - não é que descuide vinhos mais fáceis, ou comerciais, mas esses não levam o seu nome. Além desta estética, António Saramago afirma-se como um enólogo de causas. A dele é a casta Castelão, uma variedade emblemática da Península de Setúbal (o terreno que, juntamente com o Alentejo, mais trabalhou). "Conheço a Castelão como ninguém, até de olhos fechados. Sei onde estão as melhores videiras", diz.
Ele anda por aí
Numa altura em que Setúbal sente a ameaça de castas internacionais como a Syrah, Saramago tornou-se o paladino da Castelão. "É uma casta difícil de trabalhar, mas tem um potencial fantástico e se queremos preservar a identidade de Setúbal, é nesta casta que temos de apostar", diz. Felizmente, acrescenta, "as pessoas estão a ser sensíveis a esta mensagem". Se não estiverem, que experimentem o AS 50, um vinho comemorativo da vida profissional de Saramago. Com 80% de Castelão no lote, é um vinho opulento, rico de aromas e de sensações, interminável na boca e com uma frescura impressionante.
Até chegar aqui, António Saramago fez um longo percurso na JMF. Entrou lá com 14 anos, teve como mestres António Porto Soares Franco e Manuel Vieira (pai), frequentou cursos de formação em Bordéus com mestres da craveira de Émile Peynaud, mas foi em Azeitão, na sede da empresa, que pôde revelar todo o seu potencial. "Nos anos 1960, a JMF era a grande referência dos vinhos em Portugal. Só a Caves São João, da Bairrada, lhe podia fazer frente", recorda. Foi aí que aprendeu essa escola baseada na criação de vinhos longevos, foi nesses anos que conheceu o país vitivinícola abaixo do Douro. A maior revelação, porém, não a encontrou na vinha nem na adega, mas numa conversa com o enólogo californiano Richard Bolton, por volta de 1977/78. "Disse-me que se seguisse a minha sensibilidade e o meu coração poderia fazer vinhos de classe mundial em Portugal. Aquilo deixou-me a pensar e ainda hoje acho que me ajudou a perceber que a criação de um vinho é como uma pintura: se não seguirmos a nossa sensibilidade, as coisas ficam pelo meio."
Anos mais tarde, em 2001, António Saramago não deixaria de ter esta revelação presente quando decidiu abandonar a JMF após 40 anos de serviço. "Tinha cinquenta e poucos anos e queria dar a volta à minha vida. Mas foi uma decisão difícil", explica. Com as suas marcas e o apoio a quatro projectos (Tapada de Coelheiros, Aldeias de Juromenha, Kompassus e a consultoria na Villagio Grando, no Brasil), António Saramago consegue "estar apenas no lugar" onde se sente. O seu filho António, também enólogo, tem 34 anos e "caminho para caminhar", a empresa é saudável financeiramente e as perspectivas no mercado nacional ou no Brasil garantem a Saramago calma para seguir a Castelão nas vinhas, para verificar se o engaço ficou amarelo e pode entrar na vinificação, se os vinhos evoluem bem. Sente-se e fala com aquele ar de decano que não tem nada a provar, com o jeito de um consagrado que recusa viver sobre os louros. "Eu e os enólogos mais velhos não estamos ultrapassados", lembra a quem suspeitar que a comemoração dos 50 anos é o fim de um ciclo. Na Juromenha ou no Estado de Santa Catarina, no Brasil, com a Castelão ou com a Syrah, ele promete andar por aí. Ainda bem, diremos nós.