Uma mudança de paradigma curiosa mas reveladora de como o vinho também navega nas areias movediças da moda, facto estranho quando até muito recentemente o depósito era encarado como um factor positivo e valorizador do vinho, reconhecido como consequência natural que atestava o estado de "pureza" do vinho.
E, no entanto, por si só o depósito é inofensivo, inócuo e inocente, independentemente de poder ser interpretado ou não como um sinal empírico de um vinho menos sujeito a manipulações. Porém, e independentemente de se gostar da sua presença ou não, os sedimentos não são perigosos, não são consequência de más práticas enológicas, não são um defeito nem um sinal de menoridade, apenas um desfecho natural dos vários procedimentos de vinificação.
O tema poderá parecer estranho ou surpreendente. Para muitos dos enófilos, a presença de depósito na garrafa deveria ser uma matéria pacífica e incapaz de levantar qualquer sobrolho. Infelizmente, a realidade actual encarrega-se de negar esta premissa, confirmando que a restauração e o retalho, distribuição moderna, garrafeiras e grandes superfícies incluídas, estão acostumadas a aceitar devoluções de garrafas em virtude de um falso problema, o depósito... quando este não passa de uma mera questão estética.
Sendo o mercado regulado pelas ambições e vontade dos consumidores, rei e senhor das grandes orientações enológicas, a larguíssima maioria dos produtores nacionais e internacionais dedica uma quantidade apreciável de tempo, esforço e recursos na tentativa de apresentar vinhos claros e límpidos, sem a presença de qualquer vestígio de sedimentos que perturbem a contemplação. Presentemente, a larguíssima maioria dos vinhos comercializados é tratada de forma a não ostentar qualquer presença de sedimentos, verdade que é ainda mais perceptível no caso particular dos vinhos de produção considerável, rotação elevada e consumo rápido. Para salvaguardar que todos os sedimentos são removidos e que o vinho depois de engarrafado não irá precipitar, os produtores recorrem a diversos processos de clarificação, estabilização e filtração dos vinhos.
Por outro lado, vinhos desenhados para um longo envelhecimento em garrafa, vinhos de enorme potencial de longevidade e rotação mais lenta nas prateleiras, tal como alguns vinhos do Douro, Bairrada ou Dão, tal como os vinhos de Bordéus, Borgonha, Côtes du Rhône, Barolo ou o Vinho do Porto, costumam criar e precipitar depósitos de maior ou menor intensidade... dos quais o caso muito particular do Porto Vintage oferece o exemplo mais dramático. Escusado será referir que os vinhos que apresentam tendência para a precipitação ou depósito já formado obrigam a um serviço ainda mais cuidado e/ou a decantação prévia.
Naturalmente, mas não correctamente, a maioria dos consumidores, dos mais encartados aos menos experientes, acredita que o depósito é um processo exclusivo dos vinhos tintos. Com maior ou menor incidência, dependente da região, da casta e da tradição de vinificação, a verdade é que os vinhos brancos estão igualmente sujeitos ao processo de sedimentação, podendo apresentar no fundo da garrafa pequenos cristais quase transparentes de aparência muito semelhante aos cristais de açúcar cristalizado. Não se assuste, eles não representam qualquer ameaça para a saúde nem nenhum defeito do vinho, tal como não são fragmentos de vidro a flutuar na garrafa. São simplesmente tartaratos em cristalização, pequenas concentrações de ácido tartárico que se revelam absolutamente inofensivas para o sabor e integridade do vinho. Curiosamente, o depósito nos vinhos tintos corresponde aos mesmos tartaratos, embora tingidos pela pigmentação do vinho, e a polimerizações fenólicas típicas do vinho tinto.