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O Algarve feito num oito

Por Rui Pelejão (texto e fotos)

A Volta a Portugal em 80 dias prossegue a sul. E é o Algarve feito num oito, porque foi essa a nossa rota, entre a serra e o mar e que não se esquivou ao betão armado, ao turismo de massas, à selvajaria urbanística e à Estrada Nacional 125, mas também andou a monte pelas serras de Monchique e Caldeirão.

Uma viagem que começa onde acaba, sentado à mesa numa quinta em Castro Marim, depenicando uns carapaus alimados e uns tintos num pequeno-almoço tardio que se estendeu pela tarde à conversa com Jacinto Palma Dias, inquieto “Remexido” intelectual, agricultor, polémico e ignorado historiador, autor de várias obras sobre a história e a identidade algarvia. É ele que me vai guiar nesta revisitação do Algarve.

Não há um Algarve secreto, isso é treta para vender loções e revistas, mas há um Algarve desconhecido. Ele começa no promontório de Sagres, ou a antiga Sacrum. Melhor, começa no Cabo de São Vicente, onde podemos apreciar um dos mais belos mergulhos do sol no mar. Há ali uma força mística que Jacinto Palma Dias explica: “O cabo de São Vicente é uma entidade mítica que merece referências desde a antiguidade. Era um local sagrado e de culto a deuses pré-romanos e romanos, como a Baal ou a Saturno. Depois chama-se São Vicente, uma entidade dúplice e sincrética que era venerada por moçarabes e proscrita pela Igreja de Roma.”

Deixo Sagres e a sua fortaleza e meto o Citroën C4 Cactus por maus caminhos à procura das praias selvagens que esta finisterra esconde. Vou até à praia de Ponta Ruiva e dou boleia a Rolf até Vila do Bispo. Rolf é um jovem estudante austríaco que está há três semanas em Portugal acampado com a namorada aqui nesta praia deserta. “Viemos aqui dar e só saímos daqui de três em três dias para ir buscar mantimentos.” Pergunto-lhe se não está a pensar continuar a subir a costa, mas ele só se finge interessado. Acho que vai passar o que resta das duas semanas de férias aqui. A fazer o quê? “Ora, a tomar banhos de mar, a fazer amor e a ler.” Também não me parece um mau plano.

Deixo-o em Vila do Bispo, com paragem para uns percebes a saber a pirolito de mar. Esta é a costa deles — deles e do surf. Como o meu equilíbrio é precário, fico-me pelos percebes.

Vou subindo pela costa, espreitando a aldeia da Pedralva ou a praia do Amado, viveiro do surf, e ao chegar a Aljezur meto para a EN267 que segue para a serra de Monchique. A paisagem, de um verde luxuriante, faz lembrar a serra de Sintra e as estradas que nos levam a Monchique, ao alto da Fóia e ao Alferce são das mais cénicas que corremos nesta Volta. A noite vai caindo e inicio a descida da serra pela estrada das Caldas de Monchique, não sem antes parar para provar os famosos enchidos da serra, também conhecida pela produção de aguardentes de medronho.

Da costa à serra e vice-versa

Quatro dias pela costa algarvia, de Lagos a Vila Real de Santo António, são também quatro dias a andar vagarosamente pela EN 125, a maior avenida e maior centro comercial do país. Esta estrada parece as páginas amarelas — há de tudo: de tascas a sex-shops, de lojas de ferragens a agências funerárias. De vez em quando vou à costa ver o que lá há para ver e há muito.

Há Lagos, incontornável, pela praia Dona Ana, a Meia Praia, ou pelo seu centro histórico — com o edifício da Vedoria ou do mercado de escravos agora transformado em galeria de arte.

Depois há Alvor e Portimão, que para lá da fachada e do mamarracho têm os seus recantos e encantos, e finalmente há Albufeira, a capital do turismo de massas e a sua barulhenta rua dos bares, que por mais que me esforce não consigo deixar de gostar.

Como também não consegui deixar de gostar da exposição de esculturas na areia em Pêra, o FIESA, já na sua 11.ª edição. Pode até ser uma atracção turística, mas é uma boa atracção turística. O tema deste ano é a música e algumas esculturas — como a de Zeca Afonso — quase cantavam.

Do que passei a gostar mais foi de Faro, a capital, ou a antiga Santa Maria de Ossónoba. O seu centro histórico é dos mais bonitos de todo o Algarve e dali se estende a vista e partem os barcos para o maior santuário natural do Sul — a ria Formosa.

Jacinto Palma Dias prefere chamar-lhe maternidades: “O termo reserva não inspira cuidado, lembra condomínio, no fundo o que aquilo é, tal como o Sapal aqui em Castro Marim é uma enorme maternidade, um santuário de biodiversidade que devia estar mais bem protegido da voragem do turismo de natureza, que gasta óleo e gasóleo na mesma.”

Por fim, sigo o curso da ria até Tavira, com passagem por Olhão, orgulhosa capital de pesca da região. Uma terra feia, mas com carisma e cheiro a mar e peixe. Paragem na tasca Sete Estrelas, quase centenária e bastião do orgulho olhanense, como se vê pelas fotos antigas do clube da terra espalhadas na parede. “O Olhanense é dos clubes mais antigos de Portugal e foi o primeiro campeão nacional. Equipam de vermelho e negro, como o AC Milan, porque foi fundado por italianos que vieram para aqui, refugiados, e que ajudaram a montar a indústria das conservas”, explica Eduardo o jovem proprietário.

A indústria das conservas perdeu a sua importância, mas foi uma das razões da antiga prosperidade do Algarve que se extinguiu em 1929, com o crash da bolsa, conforme explica Jacinto Palma Dias: “A economia prosperou com as passas de figo e as conservas, que eram exportadas para toda a Europa e que ganharam forte impulso com a Primeira Grande Guerra. Com o crash de 1929, deixou de haver importações e o Algarve faliu. Houve um grande surto migratório e uma época de pobreza da qual só recuperou com um modelo económico autofágico — o do turismo de massas, que destruiu a identidade da região.”

De Tavira a Vila Real de Santo António a pressão do turismo de massas vai desanuviando e ainda é possível respirar um pouco daquilo que teria sido o antigo e pitoresco Algarve na localidade de Cacela Velha, com vista sobre a praia da Manta Rota.

Deixo o litoral algarvio e regresso ao interior e à serra que lhe serve de muralha e miradouro. Sigo a bela marginal do Guadiana, encostada ao rio que sobe até Alcoutim e daí mergulho na imensidão da serra do Caldeirão, um ondulante mar de montes verdes como carapaças de tartarugas estáticas. Intrigo-me com a estranha toponímia, com nomes de terras como Javali, Passa Frio, Pão Duro ou a alienígena Estragamantens.

É por aqui que a identidade algarvia também se define no rosto e vida das gentes das serras de Mú ou do Caldeirão até ao vasto Barrocal, passando pelas cidades onde a herança muçulmana mais se pressente — como Silves e a sua extraordinária catedral e saborosas laranjas com canela ou Loulé, para beber um capilé no lendário Café Calcinha, onde António Aleixo declamava os seus poemas.

Da serra ao mar, o Algarve ainda não perdeu a sua identidade, anda é meio perdida, como todos nós.   

Guia prático

Onde ficar

Quinta da Fornalha
Uma casa no campo, como numa música de Elis Regina, tendo por companhia um gato residente e umas ovelhas badalando as horas, são o retiro ideal para nos entregarmos à preguiça como uma das belas artes e também para explorar toda a região do Baixo Guadiana, incluindo a Reserva Natural do Sapal de Castro Marim em que a Quinta da Fornalha está parcialmente integrada, ali a três quilómetros do mar e da praia Verde. O projecto de turismo rural é uma das vertentes da empresa familiar que se dedica à agricultura biológica e a recuperar culturas tradicionais agrícolas da região.

Para alojamento, a Quinta da Fornalha oferece oito casas dispersas pelos montes e pomares circundantes. A nossa foi a Casa Amarela e dela guardaremos boas recordações.

Quinta da Fornalha
Castro Marim
Tel.: 281541733
Email: geral@quinta-da-fornalha.com
Preços a partir de 50 euros por casa (época baixa)

Pousada de Juventude de Alcoutim

Uma varanda sobre o Guadiana na mais extraordinária e cénica localização de todas as Pousadas de Juventude em que pernoitámos até ao momento. Este é o melhor cartão-de-visita da Pousada de Juventude de Alcoutim, pequena vila algarvia à beira Guadiana e com vista para Espanha. A pousada dispõe de alojamento em camarata, quartos múltiplos e duplos, com casa de banho privada ou partilhada, e oferece o melhor retiro possível depois de um dia na estrada a explorar a abrasiva serra do Caldeirão.

Pousada de Juventude de Alcoutim
Tel.: 281 546004
Email: alcoutim@movijovem.pt
www.pousadasjuventude.pt
Preços a partir dos 13 euros

Onde Comer

Casa Grande
É uma casa grande e com história, numa rua típica da vila do Ferragudo, que combina tapas e vinhos algarvios, música portuguesa e uma atmosfera calma e envolvente. Uma decoração que evoca a identidade algarvia sem cair na armadilha do very tipical para inglês ver. O enorme pátio, nas traseiras, é o local ideal para desfrutar dos petiscos e dos vinhos do Algarve, que surpreendem pela qualidade e originalidade, sobretudo se nos deixarmos guiar na escolha pelo simpático anfitrião. Recomendo os carapaus alimados, os queijos, as variadas conservas, os enchidos da serra de Monchique e por fim uma sinfonia de doces de figo. A Casa Grande é um pequeno santuário da identidade gastronómica e cultural algarvia que finta o modelo de restaurante para o “camone” e, só por isso, já vale a visita.

Casa Grande
Rua Vasco da Gama, 18, Ferragudo, Lagoa
Tel.: 914570363
Email: casagrande.ferragudo@gmail.com
Preços: Por 15 euros já se come e bebe bem

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