Fugas - Vinhos

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Quando o moscatel assume aromas de irreverência

Por Manuel Carvalho

Há muito que o moscatel de Setúbal serve para fazer brancos ou rosés. Mas, um espumante inspirado nas características do Ice Wine? Sim, esse vinho existe, tem a assinatura de Domingos Soares Franco e proporciona uma experiência tentadora.

A cor, não tem de enganar, sugere-nos um vinho generoso já com alguns anos de oxidação. Os aromas, comprovam a suspeita, com a sugestão de notas de alperce ou de casca de laranja cristalizada a apontarem para a probabilidade de um moscatel de Setúbal. Está desvendado o segredo? Sim, mas apenas em parte. O Alambre Ice da José Maria da Fonseca, de Azeitão, tem como base um lote de moscatel de Setúbal (fortificado, como manda a tradição), mas não é um moscatel de Setúbal nem nada que se pareça. Para as autoridades, arranjar-lhe uma identidade foi “um quebra-cabeças”, reconhece Henrique Soares, presidente da Comissão Vitivinícola Regional da Península de Setúbal. Inspirado numa interpretação rara dos Ice Wine das terras frias do Canadá, o Alambre Ice deu origem a um vinho misterioso, muito original e atraente.

Tão misterioso, original e atraente, que impõe a pergunta: qual é o real potencial da casta moscatel? E, ainda mais, até onde pode ir a inovação nos tradicionais moscatéis de Setúbal?

Na Península que se estende entre o rio Tejo e o rio Sado, há actualmente plantados 520 hectares de moscatel e 40 hectares de moscatel roxo. Há alguns anos, empresas como a Quinta do Piloto e, principalmente, a José Maria da Fonseca com o João Pires e a Bacalhoa com o JP começaram a utilizar a moscatel na produção de vinhos brancos e de espumantes. Essa procura fez disparar o interesse pela casta e actualmente Henrique Soares calcula que metade da produção da moscatel seja utilizada na vinificação de vinhos tranquilos. Com a passagem do tempo (e do interesse dos consumidores por vinhos com forte pendor aromático), as experiências acentuaram-se – a José Maria da Fonseca, por exemplo, insiste em recorrer à moscatel roxo para fazer um rosé delicioso, com aromas a rosa a fazer lembrar os gewurztraminer, e uma secura refrescante. Neste particular, a Península de Setúbal foi uma região inovadora e original - o recurso à casta moscatel Galego no Douro é um hábito bem mais recente.

Mas a ousadia de pegar num lote de moscatel fortificado e daí querer emular não um Ice Wine mas um espumante Ice Wine é de certa forma radical. Porque, se procurarmos semelhanças entre os vinhos produzidos a partir de uvas colhidas depois da neve e do gelo cobrirem os vinhedos das zonas mais setentrionais da Europa e da América, e os Setúbal puros e duros, só encontramos uma: a doçura. É por isso que, para que a experiência fosse lançada e se chegasse ao actual Alambre Ice, era fundamental encontrar um actor ousado com propensão para o politicamente incorrecto. É aqui que entra Domingos Soares Franco.

Domingos, 59 anos, estudou enologia na Universidade da Califórnia em Davis e carrega às costas seis gerações de trabalho na vinha e na adega. Nas suas frequentes visitas ao Canadá tem por hábito indagar nas garrafeiras ou nos restaurantes sobre os espumantes de Ice Wine. Com o tempo, tornou-se um devoto desta bebida que pouca gente produz e quando produz é sempre em reduzidas quantidades. E foi à procura de uma maneira de encontrar um vinho com atributos idênticos na Península de Setúbal.

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