Fugas - dicas dos leitores

Nelson Garrido (Público)

Confusão e sensibilidades em Marraquexe

Por Carolina Albuquerque

Algures onde todos os cheiros se cruzam, onde o pó se confunde com a névoa da manhã e a chuva teima em mostrar a força de uma natureza alterada por uma civilização que, embora pouco civilizada, tem o dom normal de interferir com o tempo, a sensibilidade emerge em tempos e a formas díspares, tão densas como leves, tão profundas como evaporantes...

Não escolhem tempo, nem ruas, nem cores, nem o comboio em que vão seguir, pois certo, quase tão certo como que pode chover, é que qualquer um deles vai atrasar...

Cheira a carne, a peixe, a pó, cheira ao mesmo tempo a uma pobreza e podridão que não se entende, de tão misturada que está na cor desmaiada das paredes quentes, e garrida dos tapetes, dos colares, das contas e de todas as histórias.

Perturba e confunde o som dos tambores, das cornetas, das correrias, das mulheres das motas, do próprio ar que parece que assume ruído próprio... forma de ser e de estar, toda a envolvência assume personalidade, entra por ocidental adentro como que consumindo, mas na verdade está progredindo enquanto se entranha... e natural se torna...

Caril e fumo dissipam-se sobre a luz espelhada de uma praça que muda em minutos, onde do alto se vêem formigas a carregar tábuas, ferros, bancas e comida, por entre ultrapassagens perigosas, de burros, carros de mão, bicicletas e motoretas... As saias e os gritos das mulheres não se definem, umas e outras não têm limites, são como um só misto de línguas entrelaçadas a falar rapidamente como se aquele mundo acabasse amanhã, enquanto num segundo deixam soltar um ou outro som parecido com palavras de uma ou outra língua ocidental...

Cheira a homem em quase todas as ruas labirínticas de uma medida que mal se sabe onde termina depois de se entrar, cheira a sorriso, e toda a mulher ocidental sabe que para ser mais bela pode andar por ali.

Trocam-se os passos com os olhos que em simultâneo se deixam levar atrás do som da corneta, do gemido da oração e da balbúrdia de gente que não pára, e de um tempo que não se conta...

Sensibilidades distintas de pensamentos afogados e a buscar a calma de um ou outro espaço místico pela cor mas com ambiente de calmaria, ou seja, de proximidade ao que chamamos de nossa civilização. Discordo da razão e da emoção de ser ou não ser mais ou menos bom o nosso lado ou o lado de lá, mas misturo em mim a sensibilidade única de ter sentido o medo, o pânico confuso de passar em ruas "iguais" sem saber como voltar a chegar lá, com a emergência de vontades e cores que tão depressa nos fazem voar para sabores ali ou noutro instante qualquer!

A confusão entre todos os sentidos estende-se imagens fora e cores adentro... Não se resume só a estas palavras nem ficará por aqui... hoje no sol de cá, com a maresia que entra pulmões adentro, recordo para mim, com vontade de encerrar numa caixa colorida de metal trabalhado por um marroquino desdentado, pequenino e pouco limpo, o cheiro da mirra, na banca do lado mais à esquerda da praça Djemaa El-Fna, mesmo na entrada principal da medina, ou seja, na primeira de 14 portas, o cheiro a mirra, mesmo ali, logo ao lado de uma das muitas bancas de sumo de laranja.

A sensibilidade de hoje é mirra, quente e penetrante, que faz salivar, diante de uma janela espelhada que nos mostra que há sempre um lado de lá, um estar e ser mais além, um pensar mais à frente e o movimento que, como o próprio tempo, não pára...Mirra que purifica numa praça de folia, alegria, gula e extravagância, onde outrora se erguiam cabeças decapitadas de criminosos e maus exemplos...

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