Fugas - dicas dos leitores

Índia: Há ratos no templo

Por Isabel Braz

Uma "experiência desconcertante": passadas as magníficas portas do templo de Karni Mata, em Deshnok (Rajastão, Índia), descobre-se o "Éden roedor", um lugar onde as ratazanas são sagradas. Por ali, a nossa leitora Isabel Braz passeia-se por entre estes animais, protegidos e adorados no templo. Calcula-se que serão mais de 20 mil...

Rajastão, Janeiro 2006

John tem mais de 60 anos, incontornável sotaque neozelandês e tantas rugas quantas as viagens que já fez ao subcontinente Indiano. Vive como lhe apetece, carregando o olhar sereno de quem sabe o que quer e de quem sabe que não quer quase nada.
É ele quem mete conversa connosco quando nos sentamos na mesa ao lado da sua. Em hindi, pede cerveja para três. O sol põe-se atrás da parafernália de antenas e cabos eléctricos abotoados aos telhados de Bikaner. Pássaros apressados voam para recolher aos ninhos e o burburinho da rua cede lugar a odores de caril e masalas. "Já foram ver os ratos? Não percam, é uma experiência única..." A voz de John prenuncia o acaso encantador que engrandece as viagens sem rumo.

Karni Mata

Na única praça da pequena vila de Deshnok, a 30 quilómetros de Bikaner, uma placa de madeira anuncia "a oitava maravilha do mundo". À nossa frente ergue-se o magnífico templo de Karni Mata, essa mística asceta que, vendo a vida fugir a um dos homens da sua tribo, implorou a Yama, senhor da morte, que lhe restituísse a existência. E diz a lenda que o pedido de Karni Mata estava para além das faculdades de Yama pois o espírito do homem havia já reencarnado. Os dois deuses entram então em acordo: desse dia em diante, todos os defuntos pertencentes ao clã de Karni Mata voltariam à vida sob a forma de ratos e neste templo marmóreo seriam adorados até renascerem novamente.

Descalçamos os sapatos ao lado de um grupo de mulheres rajasthanis cobertas por véus vermelhos. Olham-nos curiosas. Não são muitos os turistas que se atrevem a transpor as enormes portas de prata à nossa frente e basta atravessá-las para perceber porquê. Infimamente trabalhadas, com relevos de ratos e ratinhos em prata maciça, estas portas magníficas são a entrada para uma experiência desconcertante.

Eis-nos chegados ao Éden roedor. Dentro do templo há ratazanas a dormir, aos saltos, à bulha, a comer, a defecar e em sessões de sexo. Ratas e mais ratas. Estima-se que sejam mais de 20.000, todas elas tratadas, protegidas e sagradas. Passam-nos pelo meio das pernas, saltam para os ombros dos peregrinos, dormem-lhes no colo enquanto eles lhe afagam o pêlo. Atravessam a correr o belíssimo pátio de lajes pretas e brancas. Põem-se de pé nas patas de trás e abanam os bigodes. Grunhem, guincham, riem e choram no idioma das ratas.

Ponho-me em bicos de pés. Hesito. "Não tenham medo! Elas não fazem mal!", diz um dos tratadores, emitindo sons de rata por entre as palavras de conforto que me dirige. Atrás dele, avanço. Passamos por enormes tigelas de cobre cheias de leite, orladas por ratas debruçadas. Bebem, banham-se, deliciam-se. "Este leite é muito doce, elas adoram", explica ternamente o tratador. Mais à frente, noutra enorme tigela de cobre, ratas e peregrinos debruçam-se lado a lado. "Dá muita sorte beber do leite que elas beberam, querem provar?" Valham-me os deuses! Não, não queremos provar. Obrigada. Aproximamo-nos do sanctum sanctorum, da imagem da deusa, a Rata Toda-a-Poderosa, ela própria. Adrenalina pura.

Debaixo dos claustros que circundam o pátio ficam os quartos dos tratadores. Entrevejo colchões e almofadas partilhados com as protegidas. Ainda em bicos de pés, caminho para a saída. 

Do lado de fora das portas de prata, há crianças esfarrapadas de mãos estendidas, mendigando umas rupias. Algumas delas não dormirão hoje à noite em colchões nem beberão leite doce, como as ratas de Deshnok. É também destes contrastes incompreensíveis que vive a Índia. Será assim por vontade dos deuses?

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