Fugas - dicas dos leitores

No topo do Kilimanjaro

Por Francisco Cipriano

Conseguimos! Estava confiante que chegaria ao cume, mas não contava com tamanha dificuldade. No passado dia mês de Junho, acompanhei a organização humanitária internacional Concern Worldwide, na subida à montanha mais alta de África, o Kilimanjaro - 5.896 metros de altitude, numa aventura que classifico como uma das experiências mais marcantes da minha vida. A vida está repleta de desafios e nós temos os nossos próprios. Mas a coisa muda de figura quando aos nossos desafios, juntamos causas mais nobres que reforçam a vontade e nos dão ainda mais força. Foi isso que aconteceu.
Um misto de aventura e de entrega a uma causa como são os projectos desenvolvidos pela Concern. A Concern é uma organização humanitária dedicada a reduzir o sofrimento provocado pela extrema pobreza que assola muitos países no mundo e que opera na Tanzânia desde há muito tempo.

O trekking seguiu a magnífica rota Machame que acerca o Kilimanjaro pela parte sul atravessando uma densa floresta tropical até ao topo nevado, já nos 5.896m, onde nos esperava uma vista de cortar a respiração. Até lá, e desde o campo de Machame, já nos 3000m, foram cinco dias caminho com seis a sete horas de marcha diária.

O dia 30 de Junho foi o dia do desafio final: a subida até ao topo. Acordei às 23 horas e, depois de uma refeição ligeira, o grupo estava pronto para começar a subir. Estava muito frio apesar de a temperatura não estar muito baixa. O vento que soprava era cortante e entrava por todos os orifícios da roupa, mesmo da bem apertada. O céu estava totalmente claro e a noite iluminada por uma grande lua cheia. A subida começou de maneira bastante abrupta por entre pedras grandes e escarpas direitas. O grupo caminhava em linha de forma muito, muito lenta. A altitude não permitia um esforço superior.

Contudo, constantemente e aos poucos fomos, ganhando altitude e confiança. Estabelecemos um ritmo de caminhada com pequenas paragens para beber água e comer, a cada 200 metros. Esta altitude pode ser fatal para o ser humano. Ninguém vive permanentemente aqui. Os pulmões expelem mais dióxido de carbono, desequilibrando o Ph do sangue, os rins libertam mais água para corrigir a acidez do sangue, causando sérios riscos de desidratação. A nossa frequência cardíaca sobe em repouso aos 85 e aos 140 em esforço. O nosso cérebro perde lucidez e raciocínio. 

A suave luz da lua iluminava o suficiente para podermos caminhar sem as lanternas e cada um de nós foi-se fechando no seu próprio mundo. O único ruído que ouvia era da minha própria respiração, ora mais ou menos ofegante, consoante a grandeza dos passos. Conforme subíamos e a noite avançava, a temperatura caía cada vez mais fazendo com que nossas paragens, apesar do cansaço, fossem cada vez mais breves pelo insuportável do vento e do frio. As minhas mãos gelavam. Juntei-as ao corpo, como aliás já tinha feito às baterias da máquina fotográfica e á própria máquina. A água do meu camel bag também congelou. Houve um ponto, confesso, que nada parecia estar a colaborar e o objectivo parecia inalcançável. Contei com a inestimável ajuda do meu guia assistente Valerian, que continuamente me deu força provando a cada passo, que era possível continuar e chegar ao topo.

Após cinco horas de caminhada já tínhamos avançado muito, tendo ganho quase 1.000 metros verticais. O cansaço era bastante grande, mas o desejo de chegar ao cume em simultâneo com o nascer do sol mantinha-nos a força e a vontade de fazer caminho. Nos próximos minutos, o céu começou a tingir-se de tons de azul e cor-de-rosa. O dia estava finalmente a nascer. A temperatura subiu um pouco e a energia do sol transferiu-se para o grupo e todos pareciam agora mais animados e com uma vontade reforçada de chegar ao topo. Por entre a penumbra do dia, é agora possível vislumbrar o branco dos glaciares que agora surgem na nossa frente a contrastar fortemente com o escuro do céu. De um lado glaciares azuis com mais de 50 metros de altura, do outro a linha do horizonte, curva pela altitude, e um sol que nascia trazendo o tão almejado calor do dia.

Os últimos metros até ao Stela Point foram esgotantes. Aqui, surge a primeira marca de altitude do Kilimanjaro no marco que assinalava este ponto. O ângulo da nossa subida permite agora a vista sobre a grande cratera do que foi em tempo este enorme vulcão. Deste ponto até ao ponto mais alto, seriam mais 40 minutos de caminhada. Continuei. Tinham sido seis horas e meia de subida quase ininterrupta a uma altitude considerável. Mas ainda tínhamos mais uma etapa até o cume.

Após um pequeno descanso, largadas as mochilas, retirei a minha bandeira de Portugal e prossegui, agora por um trilho mais brando e de inclinação suave, mas onde cada passo continuava a ser uma enorme dificuldade. Durante toda a noite caminhei com o grupo mas agora fiz um esforço para adiantar-me um pouco e fazer o restante caminho sozinho.

Inexplicavelmente, senti uma forte necessidade de estar apenas comigo, de admirar a beleza desta paisagem em silêncio e sem partilha. A emoção do momento foi muito forte e as lágrimas correram-me soltas no rosto mesmo sem saber porquê. Talvez apenas pela emoção de concretizar este sonho e de ter superado todas as dificuldades da subida ao longo de todos estes dias. Afinal estava no topo de África. Senti este momento a ficar dentro de mim. Cada passo, cada cor, cada detalhe da paisagem. Agradeci à vida a oportunidade de viver esses momentos mágicos e a energia que tive para concretizar a subida.

Veio-me à memória o objectivo central desta expedição, o apoio à Concern e às pessoas que vivem neste maravilhoso espaço de terra que é a Tanzânia. Afinal é participando neste "challenges" que podemos fazer a diferença pois com o nosso apoio, estamos vamos ajudar um dos países mais vulneráveis e mais pobres do mundo. O desenvolvimento e a continuação dos projectos da Concern no terreno dependem de iniciativas como esta, a subida ao Monte Kilimanjaro.

Após as fotos no cume e a inevitável celebração estávamos prontos para enfrentar o segundo desafio do dia, a longa descida de volta ao campo base e daí até ao nosso último campo o Milenium Camp a 3800 metros, onde dormiríamos. Foi ao chegar ao Milenium Camp já com a luz do final de dia, que pude olhar para trás e ver o grande Kilimanjaro, já longe e imponente, e apreciar o quanto tínhamos subido naquela madrugada. Nesta noite todos dormiram extremamente bem e eu, novamente, senti o duplo prazer de ter vivido uma aventura inesquecível e de ter ajudado outras pessoas a realizar seus sonhos. 

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