Fugas - dicas dos leitores

Malaca, a fotografia a olhar a insónia

Por Maria João Castro

Existe um ponto a partir do qual o detalhe de um facto, uma situação ou uma história se esvanece, aligeirando os contornos da lembrança e aí reencontram-se farrapos da memória esbatida. Assim foi com Malaca.

No ano de 1403, o príncipe Parameswara decide estabelecer-se na Malásia, tornando a cidade de Malaca na mais importante de toda a região. Um século depois chegam os portugueses, que decidem aí instalar-se, ficando por lá até 1641. Depois seguem-se os holandeses, a Companhia Britânica das Índias Orientais e os holandeses de novo. No ano de 1957, a Malásia conquista a sua independência, ganhando Malaca as rédeas do seu destino.

Sob a humidade intensa da cidade, apanho um dos seus conhecidos riquexós que, com a sua profusão de flores artificiais engalanadas de corações e animais mitológicos, tornam as ruas de Malaca coloridas e vivas. Passamos pelo que resta das muralhas portuguesas de três metros de altura e paramos na Porta de Santiago, resquício da entrada da fortaleza portuguesa A Famosa. Mandada construir em 1512 por D. Afonso Albuquerque, foi reutilizada depois pelos holandeses no século XVII. Assemelhar-se-ia à Torre de Belém como está representado em documentos da época mas é preciso bastante imaginação para a reconstruir a partir do que existe.

Subimos a Colina de São Paulo. Resistindo à voracidade dos séculos - e onde originalmente se encontrava uma capela portuguesa mandada erguer pelo capitão Duarte Coelho - resta um lúgubre uivar do vento mas ruínas habitadas por fantasmas. Permanecem frias inscrições levantadas das sepulturas em noites de tormenta. Um dia, "as velhas paredes viram subir a colina e entrar aqui um homem com um olho a menos". "Chegou, fixou o interior do templo, ajoelhou-se e rezou. Saiu depois e quedou-se a contemplar o mar. Só muito tempo passado, estas próprias pedras saberiam que tinham visto o maior épico do povo que as erguera aqui, o poeta da aventurosa existência que havia de cantar as façanhas dos Lusíadas" .

Deixamos para trás o templo em escombros onde pairam remotas sombras e, já cá em baixo, demoramo-nos na velha porta solitária, altiva na sua decrepitude, a única coisa que sobra da Famosa de Albuquerque.

O passeio continua, agora a pé pela beira-rio. Malaca dominava todo um estreito e durante 130 anos (de 1511 a 1641) a cidade foi portuguesa e centro de especiarias, ouro, sedas e outras riquezas cobiçadas por asiáticos e europeus. Na cálida atmosfera, um leve sopro de perfumes ignorados.

Paramos junto a um galeão português, de nome Flora de la Mar, réplica em tamanho natural do mesmo que Afonso de Albuquerque aqui ancorou em 1511. Entramos e visitamos este museu marítimo, onde a história e o registo das proezas dos portugueses, dos holandeses, dos ingleses.

Os faróis do automóvel cortam de luz a estrada. Malaca é agora uma fotografia que olha a minha insónia, espelho embaciado do tempo que mora na noite do meu pensamento melancólico e irrequieto.

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