No avião, sentados ao nosso lado, um homem alto, magro, olhos azuis, barba e cabelos brancos cuidava de uma criança de uns 10 anos, paraplégica.
Serviram o almoço. Ao reparar no modo como o homem lidava com a criança, as lágrimas caíram-me inesperadamente. A Paula perguntou "Estás a chorar?". E chorou também. Não era o facto de o menino ser deficiente, o que marcava era a maneira como aquele homem cuidava e alimentava a criança. Eu nunca tinha visto o amor revelar-se desta maneira.
Iniciámos a conversa. O menino era seu filho. Chamava-se João e, além de deficiente profundo, não falava e era cego. O João parecia índio, com o cabelo e olhos pretos amendoados e um sorriso que iluminava o mundo! O pai contou a sua história numa mistura de italiano e brasileiro. Tinha entrado ainda menino num convento de frades franciscanos em Itália. Cresceu no meio de Deus e durante muito tempo procurou o sentido da vida nas estantes dos livros. Tornou-se padre, missionário e jornalista. Esteve em várias zonas de guerra, em missões, em locais de extrema pobreza.
Percebo que se apaixonou por uma brasileira, numa das missões de evangelização, e deixou de ser padre. Teve dois filhos. Passou a ser pai. O João é o mais novo e quando ele nasceu virou as costas a Deus. Não conseguiu perceber. "Porquê eu? Porque me deste um filho assim?" Durante anos esteve zangado com Deus. Ele que tinha sido o seu porta-voz a vida inteira.
O João gosta de ouvir os pássaros a cantar de manhã na fazenda lá no Brasil. "Não é João?" E faz-lhe uma festa na cara. Disse que o filho até com a mãe chora mas com ele não. E o João sorri. A minha amiga conta-lhe que perdeu a mãe, o marido e os três filhos num acidente de automóvel mas ainda acredita no amor. E diz-lhe: "Sabe, eu acho que são os filhos que escolhem os pais. Acho que foi o João que o escolheu a si." Ele repete: "São os filhos que escolhem os pais. Nunca tinha pensado assim...
Bolonha vai ser sempre a viagem de regresso porque responde à pergunta: afinal o que é o amor? Se calhar todas as viagens são também o voltar a casa. É quando regressa a Ítaca que Ulisses se torna Homero.
Releio o diário dos dias passados em Bolonha e encontro uma folha de ginkgo biloba por entre as páginas. A árvore desfolhava ao vento de Outono perto da igreja de San Domenico e parece guardar o silêncio de vários séculos. Termino, como acabei o diário: Dizem que trazemos na pele já o sentido/ Que caminhamos numa estrada já marcada/ Mas para que a alma se encha de intenção/ Tens de unir as margens ao coração.