Fugas - dicas dos leitores

Cúria, jóia e resquício dos idos anos loucos

Por Maria João Castro

A porta da entrada range e fecha-se, dando acesso a um filme em cinemascope, parado no tempo, e que faz sobressair um cheiro a antigo que levita sobre o sussurro dos singulares hóspedes.

O grande e teatral átrio alberga um balcão amadeirado em forma de meia-lua, por detrás do qual as chaves dos quartos se encontram depositadas em ranhuras de pau-santo. Todo o espaço se encontra iluminado por uma luz translúcida que se reflecte nos espelhos laterais das portas, ondulados de anos.

Ao fundo, à direita, uma passagem dá acesso à Sala de Leitura, decrépita. Respira-se a cera do soalho, o damasco dos canapés, a cor filtrada pelos vitrais das portas e uma luminosidade que se reflecte nas secretárias de escrever. Por entre os sofás forrados a seda e poltronas drapeadas, desprende-se o murmúrio de segredos levianos. As mesinhas de jogo polvilham o aposento de marfim e preto, condizendo com as teclas do piano gasto.

Do aposento, abre-se um corredor infindável, perdendo-se no ponto de fuga de uma perspectiva enevoada pelo vapor da água da piscina e do spa e com acesso directo aos pisos superiores dos quartos através de um elevador exclusivo.

Regresso à entrada e subo as escadas laterais, de varandim torneado. Uma comprida saleta exibe fotografias do hotel nos tempos da sua inauguração, em 1926. É aí, recolhida num mutismo extemporâneo, que observo cenas roubadas por uma objectiva caduca. Ao lado, repousa outro piano, e adiante sobressai uma gigantesca cómoda, pesada na sua madeira sombria e embutida a madrepérola. As gavetas cheiram a alfazema e lavanda.

Na Salle à Manger, como está impresso no vidro martelado da porta, as paredes apresentam-se pintadas a verde-água, imitando o tecido adamascado que outrora as cobria. Ao fundo do aposento, apresenta-se mais um piano, desta vez de cauda, desafiando um par de mãos a acariciar-lhe as teclas. Debruça-se altaneiro num varandim que se abre para plano inferior, um Salon dançante, onde, os lustres de cristal reproduzem os cortinados floridos que varrerem o soalho tabuado.

A orquestra começa a tocar enquanto a película continua a correr no ecrã. Nat King Cole debita When I Fall in Love. A luxúria embrulhada em colares de pérolas entrelaçados nos pescoços esguios e caídos até ao umbigo das mademoiselles e madames oscilam no ambiente anacrónico do fin de siècle e da Belle Époque. Ecos impressionistas e fauvistas desprendem-se do movimento dos corpos na sua carnal sensualidade. As bebidas escorrem dos copos para as gargantas ressequidas. O riso aflora os lábios carnudos de uma femme fatale. Um homem maduro fita-a, conquistador. Ela deixa cair o pulso vestido a renda e vira o rosto para a porta, ausentando-se.

Os convidados soltam-se da solenidade e da pose aristocrática, à medida que o vinho desce nos copos. Os diálogos fúteis dão lugar a conversas intimistas, os risos contidos são substituídos por gargalhadas sonoras, as conversas de ocasião são apimentadas por palavras audazes, e tudo por culpa exclusiva do néctar dos deuses.

A noite afigura-se de perdição e há agora uma certa ambiguidade do movimento dos corpos. Por entre as luzes foscas de segundas intenções ou embaciadas de pudor, preparam-se memórias inquietas ou nostálgicas no deslize de uma frase que ficou por concluir. O burburinho das conversas ressoa na madeira empenada, numa joie de vivre genuína e colorida.

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