Mais à frente, uma vendedora de artesanato descansa sentada num terreiro que se abre para o mar. Quando me vê chama-me mas já não há fulgor na sua voz: apenas cansaço, desilusão e amargura. A boca, rasgada por dois parêntesis que começavam junto das narinas e seguiam até ao canto dos lábios, pendia inerte e a face simulava um véu escuro, no desalento de travar uma dor insuportável que a consumia. As pupilas eram o tugúrio de uma súplica à qual ninguém queria responder vagueando perdidamente distante, tingindo-lhe a pele com a cor da tormenta.
Pelo caminho, desfilam os bairros degradados, vetustos. Há qualquer coisa de indefinido, que carece de sentimentos concretos, de palavras precisas. O ambiente à nossa volta começa a degradar-se sem que soubéssemos porquê. Aparecem anúncios ferrugentos, ruas esburacadas e prédios com tapumes nas janelas que se despencam para pavimentos sobre os quais os carros se recusam a passar. Uma visão verduga escorrega sobre mim como uma gota de transpiração. A vida pode ser uma festa ou um velório: a pessoa é que decide.
Uma placa meio caída informa: "Dentista, consertador de sorrisos!" Ah!, doce magia da imaginação. Mais à frente, uma rapariga barafusta, bamboleando-se, sem pudores por uma estrada escaqueirada, numa embriaguez inamovível: ah!, vidas precárias e inseguras, mas tão espontâneas e formosas, que se oferecem na paisagem longínqua...
Mais adiante, uma janela térrea entreaberta deixa ver um corpo sobre o outro ao longo da linha irregular onde o preto encontra o branco. O sol vai sugando a cor das habitações num invulgar desassombro de posse e renúncia.
À frente, um casebre estrambólico e descascado de maresia desengonça-se na lentidão das décadas. É um reduto de vida ao retardador, discreta e quase clandestina, muda no meio do tumulto de sensações de Negril.
A um solavanco da carrinha-táxi sou deixada à porta do Rick´s Café, rumo ao sol poente. Pulsão ou vício, o Rick´s é uma instituição afundada no seu hippie-chic: música reggae com fartura, cocktails marados, uma piscina natural e muita, muita animação. Tudo é doce e morno como convém a um bar considerado um dos melhores dez do mundo...
O sol enfraquece mas demora a baixar. O telescópio de Galileu traria o astro-rei para o centro do universo, em detrimentos da Terra. Finalmente o astro decide baixar: a luz diminui e a bola de fogo afoga-se, engolida pelo horizonte escurecido, numa decadência encantada.
À saída, uma adolescente, de ar desengonçado, vem de encontro a mim. O seu rosto encontra-se embebido em todos os líquidos alcoólicos de todas as garrafas vazias. O corpo abandonara-se há muito a uma miséria moral que não se alcança impunemente, sobrando-lhe o riso de uma juventude lembrada mas nunca vivida devido ao torpor do álcool... atormentando-o como demónios tenazes... Desce-lhe sobre o semblante uma cortina de loucura senil, apontando para que já não pise o terreno da realidade...
Uma mulher provocante vende-se indiscretamente a si própria, numa sensualidade sincera, enquanto um gaiato cirandeia, macambúzio mas com desenvoltura, por entre o claro-escuro dos becos. À luz do luar, a noite instala-se sobre o doce e monótono mar das Caraíbas, imperturbável no seu vai-e-vem de ondas, na sua dança compassada e balsâmica, mergulhando-me na perfeita irrealidade da noite jamaicana, diáfana e ilusória como todos os sonhos são...