A porta foi encerrada, calmamente, pelo único assistente de bordo, como se estivesse a fechar a porta de casa. As duas hélices, uma de cada lado das pequenas asas, iniciaram uma inebriante rotatividade. O barulho era ensurdecedor.
Os dois pilotos quase passavam despercebidos na sua minúscula cabine. Antes de os motores terem começado a funcionar, todos falavam numa linguagem incompreensível e aparentavam ser velhos conhecidos. Aquele avião deveria funcionar como uma espécie de autocarro aéreo.
Momentos antes, no aeroporto, a sensação tinha sido igualmente singular. Instalações quase desertas, num único e pequeno edifício térreo. Os funcionários não deveriam ser mais do que meia dúzia, incluindo os seguranças. Todos aparentavam ter dezoito ou vinte anos. Não é muito comum demorar-se tão pouco tempo, alguns minutos, entre o momento em que se entra no aeroporto e o momento em que o avião descola.
Antes do aeroporto, o Hurtigruten tinha ancorado no cais de uma pequena localidade, Kirkenes. O Hurtigruten é um navio imponente, com nove andares e diversos elevadores, misto de paquete de cruzeiros, barco de correio e barco de transporte de passageiros e mercadorias que vai parando em quase todas as povoações, desde Bergen, no Sul da Noruega, até Kirkenes, última paragem, já na fronteira com a Rússia remota, não muito longe da Sibéria, no Mar de Barents, quase junto à cidade russa de Murmansk, numa latitude equivalente ao norte do Canadá e da Sibéria, muito acima da Islândia e do Círculo Polar Árctico.
O Hurtigruten é um expresso costeiro que navega desde meados do século XIX entre o Sul e o Norte da Noruega, para lá do Cabo Norte. Actualmente, existe uma frota de doze navios e as partidas, da cidade de Bergen, são diárias, fazendo trinta e quatro escalas até Kirkenes, no extremo norte. Atendendo aos milhares de fiordes e de ilhas que existem na recortada costa norueguesa, esta é sem dúvida a melhor forma de transporte na Noruega. Não há maneira mais prática de viajar entre o sul mais habitado e o norte remoto, gelado e despovoado.
Honningsvag é uma pequena localidade situada no Norte da Noruega. Talvez seja uma das escalas mais importantes do Hurtigruten. Considerando o percurso do Hurtigruten, Honningsvag está situada quatro ou cinco escalas antes de chegar a Kirkenes, vindo de Bergen. Após o desembarque, observa-se uma cidadezinha de pequenas casas de madeira, junto ao mar, exacerbadamente coloridas, numa estreita faixa de terra, encostadas a altas montanhas quase desprovidas de vegetação. A principal ocupação destas pessoas é a pesca e o turismo. A partir deste ponto, é possível fazer uma viagem de 35 quilómetros, serpenteando lentamente, de autocarro, entre montanhas e falésias rochosas, numa estrada nova que nos transporta ao ponto mais setentrional de toda a Europa, o Cabo Norte.
Neste fim do mundo, a noite polar invernal dura vários meses, mas, como estamos no Verão, o fenómeno é o oposto, ou seja, não há noite. O sol não se põe durante largas semanas. Até aos finais do mês de Julho, é sempre dia. Neste local, é possível assistir ao fenómeno sol da meia-noite: a esta hora o sol aproxima-se do horizonte, que fica com uns tons mais avermelhados, mas depois volta a subir. Assim, é sempre de dia, a noite não existe (esta ocorrência só é possível a norte da latitude de 66,5 graus). No Inverno, é ao contrário. Durante largas semanas, é sempre de noite.
Estamos em pleno Verão mas está vento e frio no Cabo Norte. Setenta e um graus de latitude norte é muita latitude para um latino. Há uns resquícios de neve, pouca. Camisolas e casacos nunca serão em excesso. Os locais afirmam que até se pode tomar banho no mar — se formos suficientemente loucos para isso. Este mar é para os bacalhaus e para os salmões e arenques. Peixes protegidos pela gordura do célebre ómega 3, num mar calmo a perder de vista do alto das falésias do Cabo Norte, com mais de trezentos metros de altura.
Aqui, no Inverno, a noite é eterna e as neves também. Apenas as reluzentes auroras boreais, com as suas luzes espíritas tão esverdeadas quanto irreais, perturbam de quando em quando a quietude das permanentes noites gélidas. Não há uma única árvore, a vegetação é rasteira e escassa — paraíso das renas, nos meses de Verão, pastoreadas pelos samis, povo autóctone desta região do fim do mundo.
No Inverno, as neves são permanentes e cobrem integralmente os escarpados rochedos e suas montanhas. Curiosamente, as águas do mar, inesgotáveis por entre os fiordes sem fim, não gelam. Umas correntes de águas quentes oriundas do Golfo do México permitem que o mar mantenha uma temperatura que faz com que não solidifique. Deste modo, os autóctones podem pescar, navegar, deslocarem-se utilizando os transportes marítimos existentes entre ilhas e fiordes e até deslocarem-se ao sul, a bordo do incansável e permanente Hurtigruten, que lhes fornece mantimentos e correio durante todo o ano, navegando também na escuridão invernal.
Em Kirkenes, última etapa do Hurtigruten, o pequeno avião levanta voo em direcção à cidade de Tromso. Será cerca de uma hora e meia de viagem até uma cidade conhecida como Paris do Norte, situada bastante mais a sul do que o Cabo Norte. No entanto, Tromso ainda fica a cerca de trezentos quilómetros a norte do Círculo Polar Ártico, à mesma latitude que o norte do Alasca. É a maior cidade da região polar de toda a Escandinávia. Daqui partiram inúmeras viagens de exploração do Pólo Norte, mas essa já é outra história.