A 27 de Agosto de 2004 quis o destino que me encontrasse no derradeiro dia de viagem pela Holanda. Era um dia tão bom como qualquer outro para um encontro com essa cidade provocadora e libertina de nome Amesterdão, onde os amsterdamers viram nascer o Calvinismo.
Nesse dia acordámos cedo. Pelas 6h30, talvez até passasse. Levantei-me como um autómato olhando pela janela do quarto. Lá fora, fixada à varanda, ondulava ao vento a bandeira de Portugal que por mim lá fora colocada dois ou três dias antes. Mais em baixo, o rio Amstel brincava de mansinho ao “toca-e-foge” por entre os canais da cidade.
Olhei ainda mais perto pela janela do quarto, e, lá fora, no céu, num recreio azul, o Sol brincava às escondidas com nuvens de prata. Apesar de ser Verão, tombava uma chuva miudinha. Rapidamente se vestiu um agasalho mais outonal e aí fomos nós para o pequeno-almoço. Palavra puxa palavra, vai logo ali de alinhavar o que devíamos visitar naquela manhã. Mais umas coisinhas de chocolate para dentro de umas tostas pequeninas, lá chegámos a um consenso: visitar a casa de Anne Frank.
Na recepção, um holandês sorridente e amável lá nos indicou o caminho para a casa de Anne Frank: Prisengracht, 263-267 – Postbus 730 – Amsterdam. Telegráfico. Melhor que um carteiro.
Saímos para a rua e caminhámos, debaixo de uma fresquinha chuva miudinha, pela zona do Red Light Disctrict, sempre tendo em atenção a circulação das bicicletas. Chegados à rua Prisengracht, uma placa direccional timidamente indicava: Anne Frank Huis.
Pelas nove horas da matina, pusemo-nos na fila para pagarmos a entrada e iniciarmos por nossa conta e risco uma visita pela casa de Anne Frank, uma casa que é um verdadeiro museu para uma história. Anne Frank e a família, de origem judia, foram acolhidas aqui por amigos da família e aqui viveram escondidos durante cerca de dois anos, para fugirem ao Holocausto nazi (1939-1945). Aqui, para enganar a solidão, escreveu ela aquele que provavelmente é o diário mais lido do mundo: O Diário de Anne Frank.
Dentro da casa é proibido fotografar. Tudo é pesado. Inclusive os passos silenciosos dos visitantes. Dou conta de passar por uma estante que serve de porta giratória e damos de caras com o quarto de Otto, Edith e Margot Franke.
Ouvem-se em som de fundo palavras proferidas num alemão imperceptível. Recuamos no tempo. Ouve-se muitas vezes a palavra alemã schnell. Passamos pelo quarto de Anne, onde ainda se sente o seu medo de não poder viver. A cozinha. A casa de banho. Parece que tudo ficou parado no tempo. Tudo ainda está no seu lugar. Os móveis. As roupas. Os canos. Os fios. Tudo foi recuperado e ficou imortalizado no tempo. Parecia que ali o tempo parou. Chegados ao sótão, olhamos pela janela e lá está ele. O confidente de Anne Frank: um centenário castanheiro a quem Anne confidenciava tudo aquilo que via na rua. E que anotava no seu livrinho a que chamou diário. Imagino-a na solidão que a preparou para o mundo, olhando através de uma janela sem saber o que se passava, como iria ser. O que iria fazer. E então… a luz aparecia. A vida fluía e imortalizava-se no seu livrinho diário.
Continuamos a ouvir o som de fundo com palavras alemãs proferidas por imaginários militares da Gestapo. Achtung! Achtung! Juden! Ouve-se o ranger de portas abertas pela força, gritos. Pessoas levadas aos gritos. Descemos ao café do Museu e de pois à livraria.
Tive a felicidade de ainda poder ver o diário original de Anne Frank, do qual uma cópia do mesmo se tratou logo ali de adquirir. E, pasme-se, em versão portuguesa.
Tudo na casa exala melancolia. Tristeza. Solidão. O seu diário chegaria vivo aos nossos dias, mas não pela mão de Anne Frank. Esta, depois de descoberta pela Gestapo, acabaria por ser deportada para o campo de concentração nazi de Bergen-Belsen onde, mais tarde, morreria de tifo.
No regresso a casa senti-me um pouco mais vazio. Não consigo esquecer Anne Frank. Que no legado nos deixou transmitiu uma dura realidade: um dia estaremos sozinhos. Com os nossos fantasmas. E aí teremos de viver com eles.