Fugas - dicas dos leitores

Capitólio

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Havana, sabor a mí!

Por Maria João Castro

Reservo para mim o papel de protagonista numa narrativa improvável e desço do avião, abraçando a humidade pegajosa que se cola de imediato à pele.

Havana Velha é a primeira paragem. Edifícios coloniais, duma solidez plácida, apresentam-se desgastados pela usura de décadas e pela ausência de cuidados mas a cidade possui uma luminosidade que lhe suaviza o declínio, ajudando as casas, descascadas por anos de abandono, a urdirem histórias sem fim.

As horas afagam o humor. Adiante, a Bodeguita del Medio com os seus mojitos, imortalizados pela publicidade do escritor americano. Por ela passaram também Allende e Fidel, e muitos outros anónimos que fizeram questão de inundar as paredes com os seus escritos. À medida que o mojito desce pela garganta, a transpiração sai pela pele. As ventoinhas do tecto afugentam os espíritos inquietos; o rádio, vindo de outra época, debita um bolero lânguido que amacia a alma.

O céu encontra-se pincelado de nuvens imóveis. Entro na catedral e sento-me na esplanada do café El Pátio, desfrutando do Quinteto Habanero. Alongo o olhar na direcção da matriz, em frente. Sentada num degrau, uma avó, descarnada de afectos, solta volutas de fumo. Uma certa nostalgia lírica apodera-se de mim no preciso momento em que o sol brinca com a sombra das arcadas da praça, desfazendo-se como um eco vago.

Os sinos badalam num timbre fanhoso, repicando em uníssono, fazendo sobressair a melopeia do Quinteto. Aproveito o intervalo da banda para reiniciar o passeio. Os olhares de orgulho cruzam-se com os sorrisos rasgados, pano de fundo de uma cidade desconcertante e desconcertada.

Havana é, acima de tudo, uma cidade onde se vive o dia-a-dia com uma certa indolência, própria dos climas tropicais. As Caraíbas amolecem-nos, pegam-se ao corpo, entranhando-se na pele e consumindo-se em comportamentos vagabundos. As ruas descem para o oceano, onde tudo termina. O vento sopra do Atlântico, pulverizando quem passa com uma película viscosa que se cola à pele. Observo as linhas de sombra das casas que se vão alongando em direcção ao mar. A claridade inclina-se em ângulos oblíquos e foscos, perdendo-se na humidade da manhã.

Ao anoitecer, caminho por entre velhos e novos, sentados à porta de casa, deixando passar a vida como quem não quer nada. Nos cafés despidos de tudo, clientes parecem cobertos por uma fina camada de antiguidade, o que os torna, de certa maneira, conhecidos, quase íntimos. Só os faróis dos carros iluminam temporariamente a face desta gente, porque as ruas da cidade nocturna vivem sem luz eléctrica.

Num alpendre, um rádio a pilhas toca uma música romântica. Uma mulher de traseiro farto tagarela com a vizinha, como quem atira um feitiço. Do outro lado da rua, dois miúdos entretêm-se com uma bola velha e furada. No passeio de uma casa, três escanzelados idosos jogam às damas enquanto, na direcção de uma janela longínqua, se acende um clarão alaranjado.

Instalada na escuridão desta cidade exclusiva, ou excessiva, entrevejo, pelas calles habaneras, cortesãs frias e mulheres de bordel de bom coração que, macilentas, escoam o naufrágio de uma vida. Ao som de um cha cha cha vejo as árvores mudas e sigo em frente, adormecendo tardiamente na noite. De um trago bebo o rum e corro a cortina. iHasta siempre Cuba, sabor a mí!

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