Fugas - dicas dos leitores

AFP PHOTO/DESHAKALYAN

Binthabat, uma cerimónia tocante

Por Maria Julieta Henriques

À descoberta de Laos.

Conhecendo já o Camboja, a Tailândia e o Vietname, aventurei-me finalmente a ir conhecer o Laos. Depois de largos anos de isolamento, o Laos escancarou as suas portas para o turismo, oportunidade sem paralelo para quem deseja descobrir a atmosfera da antiga e misteriosa Indochina.

País encantador, com uma magia tocante onde se harmonizam a realidade, o sonho e a serenidade de uma civilização doce e sorridente, com milhares de anos.

Sem costa marítima, o Laos é um país rural que mantém ainda muito exotismo, com uma população de sete milhões de habitantes, tendo por capital a pequena cidade de Vienciana. Grande parte do seu território tem um relevo de montanhas e planaltos onde, com enorme pujança, cresce a floresta tropical. Paisagens de encanto que são como aguarelas de um refinado mestre pintor.

A gastronomia do Laos é uma das mais variadas que se pode encontrar, com caraterísticas de várias outras cozinhas de todo o mundo. É, sobretudo, muito inspirada na cozinha francesa, francamente deliciosa. Recorde-se que o Laos foi, desde 1893, um protectorado francês, tornando-se independente em 1949, preservando ainda edifícios com arquitectura de influência colonial francesa.

Luang Prabang é a segunda cidade do Laos e foi considerada, pela UNESCO, como “a melhor cidade preservada do sudeste asiático”. Daí tê-la classificado, em 1995, Património da Humanidade. A cidade é pequena, com cerca de 100 mil habitantes, mas tem graciosidade de sobra; exibe numerosos templos dourados de telhados, curvos, vermelhos, que se deixam escorregar quase até tocar o chão, com gravura e escultura delicadíssimas e exuberante talha dourada, tudo cuidadosamente preservado. Passam por lá dois rios: o grande Mekong e o Nam Khan.

Antigo centro religioso e político do Laos, a cidade veste-se de cor de açafrão pelas túnicas usadas pelos muitos monges que a habitam.

Vai alta a madrugada. São cinco da manhã e sou despertada por um telefonema vindo da recepção do hotel onde me encontro instalada. Ainda sem o pequeno-almoço tomado, saio apressada do hotel e logo sou acariciada por um ar morno e aveludado. Enveredo por ruelas estreitas. Dormia ainda, silenciosa, a cidade iluminada por uma lua cheia, desmedida, num céu de estrelas, tantas! Passo por casas adormecidas de pálidas fachadas onde trepadeiras nos muros lançam, na noite, um aroma quente e delicioso. Escuto o latir de um cão, a que um outro latido mais lá ao longe, prontamente, deu resposta; pressinto um som de fundo que mais não é que a voz do Mekong, desmanchando o silêncio. Vislumbro, à minha frente, vindas de diversos pontos, sombras indistintas e apressadas que, penso, irão convergir para o mesmo lugar que procuro.

Binthabat é o peditório matinal e diário dos muitos monges da cidade e um ritual sagrado. Dizem-me que o Laos é o único país do mundo que ainda preserva este ritual, desde há séculos. Mesmo durante o tempo que durou a terrível guerra do Vietname, e apesar de o Laos não ter estado directamente envolvido no conflito, foram muitas as bombas americanas que ali caíram, causando inúmeros mortos e deixando muitos estropiados. Contudo, dizem os laocianos que não há memória que um só dia não tenha começado desta forma.

Desemboco finalmente numa rua onde, junto a um muro caiado de branco, população local e turistas aguardam a chegada dos monges. Uma pequena esteira para nos podermos ajoelhar, um recipiente de ratan com uma porção de arroz glutinoso, uma taça com frutos ou algo mais nutritivo que ajude a alimentar os monges, durante o dia inteiro, é tudo o que se me apresenta. A meu lado, todos têm o mesmo cenário. E, tal como eles, também eu me descalço e ajoelho na esteira. É-me colocada, como aos demais, uma faixa de pano branco que, saindo do ombro esquerdo me cruza o peito, sendo depois atada do lado direito.

Aos poucos desaparecem, no céu, as estrelas e vejo espreguiçar-se um sol, ainda pálido, mas já prenúncio do raiar de um belo dia. De súbito, vindo de um dos extremos da rua, ouço um rufar de tambores. Alvoroçados, alguns passaritos pousam nos ramos do arvoredo por detrás do lugar onde me encontro. Escuta-se então um silêncio, só quebrado por um chilreio afinadinho que flutua no ar, de um passarinho, e que foi a banda sonora durante todo o tempo em decorreu a cerimónia.

Em fila indiana, surgem os monges. São cerca de 400 conduzidos, à frente, por um superior. Envergam as tradicionais e coloridas túnicas, cor de açafrão. Caminham descalços, as cabeças rapadas. Recebem, cada um deles, as ofertas que os crentes lhes depositam numa tigela que trazem presa a tiracolo. Entre ofertantes e monges não há, neste ritual, qualquer troca de olhares. É um acto de humildade recíproca. 

A população budista realiza estes rituais de boas acções que a levará até ao seu objectivo religioso. No budismo, filosofia de vida para alguns, religião para outros, uma criança pode tornar-se monge a partir dos cinco anos de idade. Fazem os seus estudos e aprendizagem nos mosteiros e, quando atingem a maioridade, poderão decidir livremente se pretendem, ou não, seguir a vida monástica.

Vivi, naquela manhã e naquele ritual, momentos comoventes e intensos de puro deleite, que me penetraram alma adentro, extravasando paz. Passam os últimos monges da longa fila, esfumando-se ao longe, por entre palmeiras, a caminho dos seus mosteiros e das suas obrigações. E, então, caso curioso: o passarito que sempre cantou durante todo o tempo, emudeceu, não cantou mais…

Viajar é estar sempre em algum lugar e, por vezes, acontece enamorarmo-nos por um país, por um simples acto, por uma cativante paisagem, por um qualquer lugar. Eu perdi-me de amores pelo Laos e pelas suas gentes. Só me faltou tempo para mais me deixar perder.

 

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