Fugas - dicas dos leitores

Miriam Lago

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Sol e Pesca, um Cais do Sodré revisitado

O maior mercado de Lisboa era aqui. Transfigurou-se num conceito de restauração gourmet com mesas corridas onde os clientes se sentam - todos juntos e desconhecidos - para comerem e beberem apressados pela pressão de outros que aguardam lugar. Mantém-se o edifício, o resto é caríssimo, barulhento e trendy.

Os armazéns e os escritórios desapareceram. Não se vendem a turistas aprestos marítimos, cordoarias ou mantimentos enlatados com um prazo de validade prolongado. Já não há escorbuto vai para séculos e cordoame é para barcos que já não existem.

Os armazéns de fardas - dos bombeiros à mais fina das domésticas - fecharam portas. Os patrões já não gastam dinheiro nos atavios das criadas. As patroas encheram-se de coragem, montaram negócio unipessoal e fazem a suas próprias limpezas e serviço de cama e mesa.

Um estabelecimento de finas roupas de homem. Fatos que antes vestiam os donos das agências de viagem e os transitários animam hoje os manequins da montra, todos os dias linda, a ensinar um fato de três peças caríssimo de bom corte e tecido para o qual não olha ninguém.

Das lojas de artigos de pesca restam duas – onde os velhos se abastecem de minhoca. Não se está a ver que outros artefactos possam vender. Os turistas não vão à pesca, as putas mantêm-se, firmes e hirtas, encostadas à parede, totalmente desprovidas de vontade de ensaiarem uma ida à pesca.

Resta o Sol e Pesca.

Na rua cor-de-rosa que mimetiza a cartografia do mundo. Nada mudou, os objectos habitam os mesmos sítios, o odor a mar persiste. Por cima do balcão de madeira maculado com a pátina dos tempos, exibem-se as bóias, de vários tamanhos e feitios, com riscas que dão nas vistas, os objectos mais vaidosos das artes da pesca. Por detrás do balcão a parede está forrada com gavetas de madeira. Gavetas que se expõem desabridamente são provocadoras e misteriosas. Gavetas assim, antes de serem abertas, são segredos que queimam as mãos.

Abrigam o espólio dos anzóis, simples, duplos, triplos; com o olhal em argola, em agulha ou em pata; de hastes longas, comuns, curtas, fechadas; não importa como sejam, sufocam de tédio em gavetas que já não se abrem, o cemitério de um de retorcidos anzóis definitivamente inúteis.

Quadros desbotados e de dimensões generosas estampam a fauna marítima dos mares dos Açores, os bichos de maior envergadura em destaque: espadartes e atuns. Os outros por aí abaixo, por ordem de encurtamento de tamanhos, até à petinga, que mais pequeno não se come, e não tem direito a menção nos quadros tal a irrelevância do tamanho.

Armadilhas – aparelhos - suspensas do tecto, para o polvo e para o marisco, a ganhar ferrugem.

As canas não estão à venda – de bambu, ridículas; fixas numa base de chão,fazem de cardápios. Espetam-nas como estacas em frente dos clientes, oscilam ao lado das mesas, dando a sensação do balançar de um barco.

Contam a história da indústria das conservas de peixe, marcas de outros tempos, lendas, algumas reabilitações e renascimentos inesperados.

O olhar posto nas prateleiras onde piscam estas marcas é um regresso à meninice. Na mercearia do senhor Xico perfilavam as mesmas conservas que íamos em busca a mando da mãe, para salvar um jantar. Enquanto ele aviava, surripiávamos rebuçados.

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