O pequeno aeroporto possuía apenas um tapete rolante para recolher a fria bagagem proveniente do porão do avião. Aliás, na reduzida pista de aterragem encontrava-se igualmente um único avião. Os passageiros que, num minuto, tinham percorrido, a pé, a distância entre o avião e o edifício do aeroporto, aguardavam pelas malas, na companhia de um singular animal, enorme, branco, com ar ameaçador mas imóvel, junto ao tapete rolante que não parava quieto, apesar de desprovido das aguardadas malas. Não é habitual a presença de um urso polar, empalhado, olhando para os passageiros.
O voo oriundo de Oslo, capital da Noruega, demorara cerca de três horas a percorrer os mais de dois mil quilómetros, sempre para Norte, até aterrar em Longyearbyen, capital do arquipélago de Svalbard. Lá fora o dia estava cinzento, pesado, repleto de nuvens e de nevoeiro, sem sol nem céu azul, por vezes chuviscava. Olhando para o relógio, já passava da meia-noite, mas não era de noite.
Svalbard é um imenso arquipélago, pertencente à Noruega desde 1925, com uma área equivalente a uma vez e meia a da Dinamarca. De 18 de Abril a 23 de Agosto não há noite, é sempre de dia, é o período do sol da meia-noite. Entre o dia 28 de Outubro e o dia 14 de Fevereiro é o oposto, não há dia, sendo sempre de noite. Neste período da Noite Polar, as temperaturas podem oscilar entre 30 e 50 graus negativos, dependendo do vento e da intensidade das tempestades.
No aeroporto de Longyearbyen, os passageiros recém-chegados rapidamente perceberam que estava na altura de trocar os calções e os chinelos (em Oslo estavam mais de 20 graus) por roupa de neve.
Neste arquipélago residem cerca de duas mil pessoas, a quase totalidade em Longyearbyen. A população de ursos polares está estimada em cerca do dobro dos humanos. Morsas, focas, raposas do Árctico, renas, baleias e diversas espécies de aves dominam as extensas e inóspitas paisagens, acentuando a insignificância do minúsculo ser humano, que por estas bandas é apenas um hóspede minoritário, frágil e apenas tolerado. Estas montanhas e oceanos não são, definitivamente, território adequado ao homem.
Ninguém pode sair da capital sem estar acompanhado por um guia armado com uma espingarda. É absolutamente proibido. Svalbard é território do urso polar que, ao contrário do ser humano, apenas caça e mata para se alimentar. O seu petisco favorito é a foca, não é o homem. No entanto, a fome ou a impetuosidade de um jovem macho ou a sensação de estar em perigo podem levar o urso polar a atacar. Um macho pode pesar até setecentos quilos e uma fêmea até metade desse peso.
Mais de metade do território deste arquipélago é constituído por glaciares.
Estes gelos eternos, de diversas tonalidades de azuis, existem há milhares de anos, estáticos, como enormes rios congelados por forças sobrenaturais, como um eterno castigo divino, que desaguam no mar, preenchendo vales irreais, por entre espantosas montanhas, carecas, pontiagudas ou incrivelmente planálticas, com neves eternas, montanhas com milhões de anos, esculpidas pela erosão e pela agressividade do clima, sem árvores, sem uma única árvore, sem arbustos, sem nada.
Nalguns desfiladeiros e altos penhascos, apenas alguns musgos e líquenes, algumas manchas verdes, rasteiras, muito junto ao chão, algumas flores minúsculas, efémeras. Apenas em Julho e Agosto, graças à fertilização natural dos milhares de pássaros que por aqui nidificam nos meses de Verão, para desaparecerem e voarem para Sul (Norte da Noruega) nos meses de Inverno. Estes ninhos e respectivos ovos são o paraíso das furtivas raposas do Árctico, nestas paisagens mais assustadoramente infernais do que paradisíacas. Sobreviver neste arquipélago é uma arte que está muito para além do aparecimento do homem na Terra.
Estas montanhas existem há milhões de anos e raros foram os homens que as viram e muito menos os que as pisaram. A natureza no seu estado puro e selvagem. O tempo geológico quase incompreensível para o ser humano, tão frágil e tão efémero, apesar da sua arrogância.
Há milhões de anos a terra de Svalbard ergueu-se e formou as suas montanhas. Por esse motivo, em 2016, encontramos fósseis marinhos no cimo dessas montanhas, pegadas de dinossauros e muitas minas de carvão no interior dessas espantosas, inóspitas e estéreis montanhas. São os vestígios de enormes florestas que desapareceram há milhões de anos.
O homem descobriu Svalbard em 1596 (a presença dos vikings, no século XI, não está comprovada), quando o navegador holandês Willem Barentsz tentava descobrir uma passagem para o Oriente navegando pelo Norte (ao contrário dos portugueses, que navegavam pelo Sul). Nos quatrocentos anos seguintes, no Verão, as águas de Svalbard foram frequentadas essencialmente por caçadores de baleias e de morsas.
Ao longo do século XX, suecos, noruegueses e russos interessaram-se pela exploração do carvão existente no interior das montanhas. Foram construídas pequenas localidades mineiras que extraíam o carvão das entranhas da Terra. As condições de trabalho eram duríssimas. Os mineiros chegaram a ser milhares.
Em 2016, quase todas as minas fecharam. Longyearbyen procura reinventar-se para o turismo e para a ciência, exploração espacial, climatérica, geológica. A universidade recebe cerca de duas centenas de estudantes oriundos de vários países (incluindo Portugal), os museus polares são apelativos e já receberam prémios, a estação de observação do universo possui imponentes telescópios, os cientistas polares permanecem na zona. Turismo e ciência poderão ser o futuro da cidade.
Viajar até Svalbard é uma viagem ao passado longínquo do planeta mas também ao futuro próximo do mesmo planeta. As alterações climáticas, o degelo dos glaciares, o aquecimento climatérico deixam marcas muito visíveis em Svalbard. Arquipélago paradoxalmente inóspito e assustador, mas igualmente frágil e vulnerável aos desvarios da inconsciência e da ignorância humana.
Tantas histórias para contar acerca de Svalbard…