Histórias como esta, de recuperação do património urbano, ouvem-se, felizmente, cada vez mais. É fácil ficar apaixonado — enche-nos de orgulho ver devolvida a glória de outrora aos marcos da cidade e saltamos com entusiasmo ao ouvir falar em estruturas de gaiola pombalina e mosaicos redescobertos. Esta é a história de uma renovação que aproximou o edifício hoje ocupado pelo 1908 Lisboa Hotel às plantas originais do arquitecto Adães Bermudes. Quem lá passar a noite dificilmente ficará indiferente à história recente do hotel, pois a decorar as paredes dos quartos estão fotografias das respectivas divisões durante as obras.
O proprietário original do número 2 da Almirante Reis tinha duas vontades. Queria que o edifício lhe trouxesse rendimento — algo que ficou registado na planta original — e também prémios de arquitectura. Em 1908, a obra de arte nova do arquitecto Adães Bermudes ganhou o prémio Valmor e durante décadas serviu de morada a uma multiplicidade de pequenas lojas. No início deste ano renasceu como hotel, pelas mãos da família Faustino — com as duas irmãs e o pai à frente do projecto.
“Quando começámos a pegar nas plantas originais é que vimos o desenho incrível que existia, que tinha sido pensado”, conta Marta Faustino. “Podíamos voltar a esse desenho e só fazia sentido nessa forma.” Para começar, o piso térreo, que estava subdividido em várias lojinhas — desde uma mercearia à Casa da Boa Sorte — deu lugar a um grande espaço único. Agora é ocupado pelo restaurante Infame, onde o chef Nuno Bandeira de Lima mistura a cozinha portuguesa com sabores asiáticos — afinal, estamos numa zona marcada pelo multiculturalismo. Os pilares de metal e os azulejos originais — que foram reproduzidos — estavam todos escondidos. “Restituímos este formato da galeria, de acordo com o projecto original”, acrescenta o engenheiro Daniel Matias, marido de Marta.
“As janelas foram outra aventura”, continua Marta. Quem se senta hoje no restaurante tem quase uma vista panorâmica do Largo da Intendente e da Almirante Reis — onde, no lado contrário da rua, uma massa de gente enche ao almoço e jantar a entrada da marisqueira Ramiro. As largas janelas que marcam a altura do pé direito são uma novidade. Estavam previstas no projecto inicial, mas nunca se chegaram a materializar. No seu lugar, situavam-se antes gradeamentos metálicos. Em todas as janelas do edifício, aliás, depararam-se com um desafio concreto: respeitar o património, com janelas de madeira, e responder às exigências da actualidade, com isolamento de som. “Felizmente já existem algumas empresas, poucas, que fazem janelas de madeira com a tecnologia actual”, desabafa Marta.
O projecto levou dois anos e meio a ganhar forma, com um investimento familiar de cerca cinco milhões de euros — algo pouco comum num projecto desta dimensão. “Esse tipo de obras costuma ser feito com empresas maiores”, aponta.
“Neste processo de dois anos rodeámo-nos por muitas pessoas que se interessaram no projecto como nós. Mesmo os empreiteiros, os fornecedores, toda a gente tinha um carinho especial pelo edifício e pela obra”, conta Marta. Além do mais, “quando o dono da obra está lá, quando o tratam por tu, é diferente o convívio”. Essa sinergia manifesta-se hoje em pormenores visíveis, tais como as janelas redondas — que mais parecem a janelas de um navio —, no piso das águas-furtadas. Mais uma vez, figuravam na planta original, mas não tinham sido construídas. Para tapar a luz, arquitectaram, com o carpinteiro, uma engenhoca de portadas de madeira, em forma de meia-lua.
Arte nova, história e arte contemporânea
Os 36 quartos partilham a mesma decoração minimalista — agradável ao olhar, sem descurar o conforto em prol do design. Das duas possíveis vistas, calhou-nos a do lado do Largo do Intendente — e ainda bem. A suíte da cúpula e os dois king rooms, na dobra do edifício, são a excepção à regra, com enormes janelas para largo e avenida. Voltando ao quarto 201, onde nos instalaram, é difícil imaginar que o primeiro instinto, ao passar o cartão no leitor, não seja caminhar directamente para as duas grandes varandas, abrir as portadas e fixar o olhar no largo cada vez mais cheio de vida. Há crianças em bicicletas e patins, esplanadas cheias ao máximo — mesmo pela noite fora — e namorados sentados na obra de arte urbana de Joana Vasconcelos, Kit Garden. Quando conseguimos finalmente largar o balcão hipnotizante e fechamos as portadas oscilo batentes, o barulho fica lá fora.
O contraste entre exterior e interior é bem visível — como sempre foi. Lá fora, a fachada de arte nova exige um olho atento — e teoricamente uma grua — para apontar todos os elementos decorativos: as varandas em ferro forjado, os azulejos originais e recuperados, inspirados em elementos na natureza, e dezenas de animais espalhados em detalhes de colunas e encaixados em pequenos espaços. À volta, o Largo do Intendente ganha cada vez mais vida e, mesmo à noite, as esplanadas enchem-se por completo.
Já o interior do hotel tem um estilo bem mais sóbrio, pautado pelas obras de arte moderna que enchem as paredes, escadarias e até o saguão. Foi neste último espaço, onde está foi instalado um elevador, que a ilustradora Vanessa Teodoro pintou um mural inspirado na história secular do edifício e do Largo do Intendente. As palavras “Boa Sorte” e “Lotaria” lembram um dos inquilinos que durante mais tempo lá esteve e, num dos lados, uma figura feminina junto a uma garrafa recorda os tempos boémios desta zona da cidade, durante o final do século XX. Uma desculpa para fazer como as crianças e carregar em todos os botões ao mesmo tempo.
“A nossa fachada está pejada de animais”, observa Marta. Assim, lançaram o seguinte desafio a Bordalo II: “Olhas para os animais que aqui estão e escolhes um para recriares”. Do outro lado ouviram imediatamente “Peixe não quero”. O besouro criado a partir de peças que estavam no edifício é a primeira coisa que se vê à entrada, atrás da recepção. A poucos metros, na parede junto ao bar, está ainda uma libelinha. Pelo hotel há ainda outras obras de arte, como o Homem Aranha suspenso de David Oliveira, nas escadas.
Os 36 quartos partilham a mesma decoração minimalista. A maior preocupação é evidentemente o conforto. O último andar, das águas-furtadas, é uma espécie de apartamento. Oferece uma área privada para grupos grandes, com uma sala de estar comum, mas os três quartos também podem ser utilizados individualmente. Na cúpula do edifício está a master suite The King of Dome. É um duplex, que, no cimo de umas escadas em caracol, esconde uma segunda pequena divisão, com um sofá-cama de casal e um gira-discos. Existe também aqui uma janela redonda, mas, como não foi possível instalar o mesmo sistema de portadas, encontraram uma solução com uma almofada à medida.
A gestão do hotel de quatro estrelas está hoje a cargo da Amazing Revolution, que se juntou ao projecto alguns meses antes da sua conclusão. Margarida Almeida, directora da empresa, diz que sempre houve sintonia entre as duas partes. “Percebi logo a intenção da família: respeitar as origens do projecto original de 1907 [ano de construção] e trazê-lo para o século XXI.”
A Fugas esteve alojada a convite do Lisboa 1908 Hotel
Lisboa Hotel
Largo do Intendente Pina Manique, 6, Lisboa
Tel.: +351 218 804 000
Email: info@1908lisboahotel.com
Preço médio: 200 euros (mínimo 130 em época baixa e máximo 460 em época alta). Actualmente os preços variam entre 150 euros (quarto single) e os 440 euros (King of Dome Complex Suite)