Fugas - notícias

Pormenor da capa de ´O Vinho Mais Caro da História´ em edição brasileira da Zahar

Pormenor da capa de ´O Vinho Mais Caro da História´ em edição brasileira da Zahar

O vinho mais caro da História era uma fraude e vai dar um filme

Por Pedro Garcias

Por aqui, já bebemos desta história. Mas é tão incrível que voltamos a ela. É a odisseia da garrafa de vinho Lafite 1787, tornada em 1985 a mais cara de sempre. Até, 20 anos depois, um jornalista provar que era falsificação, questionando o papel dos críticos mais influentes do mundo. Resultado: uma fraude monumental. Pedro Garcias resume o essencial da investigação, que estará prestes a chegar aos cinemas.

-> MAIS: Iniciais Pouco Recomendáveis por Rui Falcão 26.04.2011


Para o que interessa, esta história começou no dia 5 de Dezembro de 1985, quando a prestigiada casa de leilões Christie`s, de Londres, vendeu uma garrafa de Château Lafite 1787, gravada com as iniciais "Th.J", pela astronómica soma de 156 mil dólares. Nunca nenhuma outra garrafa atingiu valor semelhante. O comprador foi Malcom Forbes, da revista Forbes, que se deixou atrair pela antiguidade da garrafa e por acreditar que esta tinha pertencido ao ex-presidente americano Thomas Jefferson.

O vinho integrava um lote de raridades atribuídas ao terceiro presidente dos Estados Unidos que havia sido descoberto em Paris pelo coleccionador alemão Hardy Rodenstock, antigo empresário de bandas rock. Mais de 20 anos depois, o jornalista americano Benjamim Wallace foi investigar a história, correndo meio mundo, e conta que essa e outras garrafas, vendidas com o aval de Michael Broadbent, o então todo-poderoso director do departamento de vinhos da Christie`s, só podem ser falsas.

No seu livro The Billionaire's Vinegar (O vinho mais caro da História, na versão brasileira, a lida pela FUGAS), Wallace conta que o excêntrico Hardy Rodenstock, conhecido no mundo do vinho por promover degustações milionárias e exclusivas, se chama na verdade Meinhard Goerke e que é filho de um ferroviário alemão e não de uma família rica, como dizia; que Michael Broadbent, visto como a maior sumidade mundial em vinhos, acreditou na origem das garrafas apesar de nunca ter conseguido obter de Hardy Rodenstock a confissão sobre o lugar e a pessoa a quem comprara o lote de garrafas gravadas com as iniciais "Th. J"; e que críticos tão reputados e idolatrados como a inglesa Jancis Robinson  e o americano Robert Parker também contribuíram para a validação dos vinhos e a respeitabilidade de Rodenstock, que os havia mimado com degustações de sonho.

Poucas pessoas saem bem da investigação feita por Benjamim Wallace e cujos direitos foram já comprados pela indústria de Hollywood. O caso dá mesmo um filme, porque não se trata de uma simples falsificação de vinho. Na fraude e no seu esclarecimento estão envolvidos alguns dos mais importantes laboratórios de Física do mundo, inúmeros institutos estatais da Alemanha e dos Estados Unidos, as principais leiloeiras do planeta, os mais renomados produtores de Bordéus, inúmeros milionários e os críticos de vinho mais influentes do sector. Quando a história chegar aos ecrãs de todo o mundo, é de esperar um abalo ainda maior ao provocado pelo filme Mondovino, de Jonathan Nossiter.

Os factos apurados parecem estar do lado de Benjamim Wallace, embora alguns dos envolvidos continuem a negar as evidências e tenham recorrido aos tribunais para se defenderem da insinuação de terem agido criminosamente. Michael Broadbent, por exemplo, conseguiu que a venda do livro fosse suspensa em Inglaterra. Mas a sua reputação ficou seriamente abalada. Antes deste caso, a sua palavra era o selo de garantia de qualquer vinho.

Foi Broadbent que convenceu Rodenstock a leiloar uma das tais garrafas Lafite 1787, apesar de nos arquivos do famoso produtor bordalês, hoje baptizado de Lafite Rothschild, não haver qualquer referência a esse lote supostamente encomendado por Thomas Jefferson. O valor atingido superou todas as expectativas e foi notícia mundial.

As suspeitas surgiram uma semana depois, quando a pesquisadora Cinder Goowin, que passara 15 anos investigando os arquivos de Thomas Jefferson em Monticello (o palácio da Virgínia que foi propriedade do terceiro presidente dos Estados Unidos e onde está reunido o seu espólio), publicou um relatório questionando a autenticidade das garrafas.

Depois de consultar os registos de todos os vinhos comprados por Thomas Jefferson (o político era um enófilo organizado e registava meticulosamente todas as suas despesas), Goodwin descobriu uma carta com uma encomenda de vinhos Lafite do ano de 1784 e não de 1787, o ano da garrafa leiloada. A investigadora notou também que no lote de Hardy Rodenstock atribuído a Jefferson havia garrafas de vinhos de quatro chateaux diferentes gravadas com as mesmas iniciais e da mesma maneira, o que não fazia sentido, uma vez que o político tinha o hábito de comprar o vinho directamente na propriedade. E, sendo assim, cada château gravaria o vinho de maneira diferente. Testes posteriores feitos à técnica de gravação provaram que esta tinha sido feita com recurso a um instrumento moderno, provavelmente uma broca de dentista.

Mas, descartada a propriedade das garrafas, restava ainda provar que o vinho era mesmo daquele ano. Não foi fácil. Depois do leilão da Christie`s, Hardy Rodenstock vendeu duas garrafas do suposto lote de Thomas Jefferson ao coleccionador alemão Hans-Peter Frericks por 9100 dólares. Em 1989, Frericks decidiu leiloar parte da sua adega e contactou a Sotheby`s, cujo responsável pelos vinhos concluiu que uma boa parte dos vinhos, comprada através de Rodenstock, era falsa. Frericks contactou então a Christie`s, que aceitou leiloar as garrafas. Mas, à última hora, Rodenstock exigiu que Frericks as retirasse, argumentando que lhas tinha vendido para serem consumidas e não leiloadas.

Este desenlace levantou as maiores suspeitas e levou Frericks a recorrer a um laboratório de Munique, para averiguar da antiguidade do vinho. O elemento procurado foi o trítio, um isótopo do hidrogénio que só passou a existir em concentrações significativas na atmosfera após a explosão da primeira bomba atómica. A concentração de trítio encontrada no vinho era típica dos anos de 1962 ou 1965, pelo que o vinho só podia ser desta altura. Ou seja, era quase 200 anos mais novo do que constava na garrafa.

Mas Frericks não foi o único a ser enganado. Marvin Shanken, director da Wine Spectator, também comprou uma garrafa com as iniciais de Thomas Jefferson noutro leilão da Christie`s e, em 1988, o magnata americano Bill Koch comprou a intermediários quatro garrafas de Lafite 1787 e 1784 por 500 mil dólares. Esta compra viria a ser fatal para Rodenstock. Porém, nos anos seguintes, o coleccionador alemão ainda viveu tempos de glória, promovendo exclusivas degustações de vinhos raros dos principais chateaux franceses, para as quais toda a gente com nome e interesse no vinho queria ser convidado.

Entre 1994 e 1996, Jancis Robinson e Robert Parker, dois dos mais reputados e influentes críticos de vinhos, participaram em algumas dessas degustações realizadas por Rodenstock e, além de lhe tecerem rasgados elogios, escreveram notas fantásticas sobre alguns dos vinhos provados. A alguns deles, como o Margaux 1900, Parker atribuiu mesmo 100 pontos, a máxima pontuação possível. Os escritos de Robinson e Parker foram um bálsamo para Rodenstock, sobretudo depois de o Tribunal de Munique ter concluído em 1992 que o coleccionador alemão havia vendido ao seu compatriota Frericks vinho falsificado.

A sentença passou despercebida, mas ganhou relevância a partir de 2005, quando Bill Kock decidiu investigar Rodenstock, depois de a Fundação Thomas Jefferson não ter reconhecido as quatro garrafas compradas pelo magnata como havendo pertencido ao antigo presidente dos Estados Unidos. Com recurso a detectives privados, alguns ligados ao FBI, Koch foi somando evidências de que Rodenstock era um impostor e que as garrafas gravadas com as iniciais "Th.J" eram uma fraude, acabando por apresentar uma queixa contra ele no tribunal de Nova Iorque. Ao que se sabe, a acção continua por produzir efeitos legais.

As suspeitas estenderam-se a muitos outros vinhos antigos que o coleccionador alemão havia vendido ou dado a provar nas suas exclusivas degustações, como uma que fez em Munique em 1996, na qual deu a provar durante sete dias 125 garrafas de Château d`Yquem, desde os anos de 1784 a 1991. Eram tantas as evidências e as contradições que até aqueles que sempre defenderem Rodenstock começaram a retratar-se ou a testar uma saída para o seu embaraço. "Talvez eu devesse ter desconfiado de que havia alguma coisa errada", escreveu Jancis Robinson. "Os vinhos que provei eram excelentes, quer fossem autênticos ou falsificados", insistiu Parker.

--%>