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Regresso ao norte de África pelo olhar de Ernesto de Sousa

Por Sérgio C. Andrade

A colecção Literatura de Viagens dirigida por Carlos Vaz Marques e editada pela Tinta da China tem nova e marcante entrada: "Cartas do Meu Magrebe", de José Ernesto de Sousa, com 17 crónicas de viagem escritas nos anos 60, pelo norte de África, O livro é lançado hoje em Lisboa.

Entre Novembro de 1962 e Abril de 1963, José Ernesto de Sousa (1921-1988) publicou no Jornal de Notícias uma série de 17 crónicas sobre a viagem que decidira fazer ao norte de África, intitulada Cartas do Meu Magrebe.

É com o mesmo título que esses textos, e outros reportando essa aventura, mas que acabaram censurados pela direcção do diário portuense, são agora reunidos pela Tinta da China, num livro hoje lançado em Lisboa, na FNAC Chiado (18h30). A apresentação está a cargo de Carlos Vaz Marques, Emília Tavares e Delfim Sardo.

Pouco tempo antes da partida para o Magrebe, em Setembro de 1962, Ernesto de Sousa tinha estreado em Lisboa Dom Roberto, um filme com Raul Solnado e Glicínia Quartim, premiado em Cannes e que viria a ser reconhecido como uma obra precursora do Cinema Novo português, afirmado logo a seguir com Os Verdes Anos (1963) eBelarmino (1964). Ernesto de Sousa chegava nessa altura ao cinema por via do movimento cineclubista, de que fora um pioneiro, como antes tinha chegado à fotografia e às artes visuais, à rádio e ao teatro, à crítica e ao jornalismo.

Nesse tempo subsequente à independência da Argélia, o autor decidiu que queria viajar até ao Norte de África para reportar o estado das coisas. Mas também para inquirir in loco as raízes da cultura portuguesa, cuja relação com a herança árabe era ignorada pelo ensino oficial.

Para concretizar a viagem, acordou com a direcção do JN a publicação (e posterior pagamento) das suas crónicas. Via nisso, também, uma forma de angariar o dinheiro necessário à divulgação internacional de Dom Roberto, nomeadamente o acompanhamento da exibição do filme no festival de Mannheim, na Alemanha.

"Tudo correu bem enquanto o Zé Ernesto esteve e escreveu sobre Marrocos, principalmente sobre a cultura e o contexto social do país, nas cidades de Tlemcen e de Orão", recorda ao P2 Isabel do Carmo, que, nessa altura era companheira do repórter. A médica e ex-militante revolucionária é, de resto, a autora do prefácio deCartas do Meu Magrebe, onde enquadra política, sociológica e culturalmente esse tempo de emergência dos movimentos de libertação do jugo colonial.

E foi quando Ernesto de Sousa atravessou para a Argélia e "conseguiu o furo jornalístico" de entrevistar o então chefe militar (e futuro Presidente da República) Houari Boumédiènne que o director do JN, Pacheco de Miranda, lhe comunicou que não poderia continuar a publicar crónicas relativas a "um país que "tão desfavorável e reprovável atitude" tinha em relação à nossa "soberania nas Províncias Ultramarinas"", recorda Isabel do Carmo no prefácio.

A edição da Tinta da China acrescenta às 17 crónicas saídas no JN seis outras que foram censuradas (incluindo a entrevista com Boumédiènne) e cartas trocadas com Isabel do Carmo e com o director do diário.

O livro contém ainda fotografias da viagem feitas pelo próprio Ernesto de Sousa. É uma edição, que, diz Carlos Vaz Marques, revela "uma faceta até agora pouco conhecida de Ernesto de Sousa, que associa uma grande força visual com uma grande capacidade de observação e de reflexão sobre a realidade que descreve".

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