Nem sempre a fama fala mais alto. Numa altura em que a França ainda anda às voltas com a candidatura de Champanhe a património mundial e em que o Piemonte italiano - de onde saem os igualmente famosos espumantes de Asti - só há dias viu aprovada a classificação dos seus vinhedos, completa-se já uma década desde que a Paisagem Cultural da Vinha da Ilha do Pico consta da lista da UNESCO.
Foi em Suzhou, na China, que o Comité do Património Mundial aprovou a classificação do secular sistema de cultivo da vinha naquela ilha dos Açores, reconhecendo o valor de uma “paisagem extraordinariamente bela e feita pelo homem”. Mesmo que então uma grande parte da zona a classificar estivesse votada ao abandono. O plano de gestão proposto pelo governo regional propunha, precisamente, um conjunto concreto de acções para a sua revitalização, no qual terá nestes dez anos investido já cerca de cinco milhões de euros.
E o balanço é claramente positivo. Quem o garante é o actual responsável pelo Parque Natural do Pico, Manuel Paulino da Costa, no cargo há três anos. “Conseguiu-se aquilo que à partida se apresentava como o mais importante, que era estancar o abandono”, diz, explicando que, “ao mesmo tempo, foi já revitalizada uma boa parte da vinha" o que, em seu entender, terá deixado "garantidas as condições para que a zona se mantenha como paisagem viva”.
Mas não é só o cultivo da vinha. Os programas de incentivo incluem também a reabilitação de muros e construções e, nos dois últimos anos, tem-se verificado uma multiplicação do número de candidaturas aos apoios públicos àquela actividade. Efeitos da crise? “Também, seguramente”, concede o responsável, que aponta ainda para a crescente visibilidade deste património, para a cada vez maior afluência de turistas e ainda para o reconhecimento e valorização crescentes dos vinhos. E os números aí estão para o confirmar. Só no ano passado foram apresentados 50 projectos para revitalização e recuperação, ou seja quase metade dos 116 que surgiram durante os primeiros oito anos de funcionamento do sistema de incentivos. E neste ano, até há um mês atrás, tinham já dado entrada 15 novos projectos. Em muitos casos, incluem recuperação de antigas construções para turismo rural, o que para o director do parque representa a afirmação do projecto e a confiança no futuro por parte das populações.
No que respeita ao turismo os números são, de facto, animadores. Em 2011 registaram a chegada à ilha de cerca de mil visitantes, número que triplicou no ano seguinte a disparou já para os seis mil no ano passado. Não só, é claro, pela paisagem das vinhas, mas também pela observação de baleias e as caminhadas “à montanha”, como por aqui é sempre designado aquele que nos seus 2351 metros é o ponto mais alto de Portugal. Na zona classificada há três percursos pedestres, tendo o da Criação Velha sido recentemente incluído na lista dos dez melhores do mundo, num ranking organizado por uma revista inglesa da especialidade
Beleza secular
No relatório sobre a candidatura, os técnicos do Icomos – o órgão consultivo no qual se apoiam as decisões da UNESCO – deixaram escrito que “a paisagem da Ilha do Pico é reflexo de uma resposta única à cultura da vinha numa pequena ilha vulcânica. Esta paisagem extraordinariamente bela feita pelo homem, composta por pequenos campos limitados por muros de pedra, é o testemunho de gerações de pequenos agricultores que, num ambiente hostil, criaram um modo de vida sustentável e um vinho muito apreciado”.
Um legado que começou a ser construído já no tempo dos primeiros povoadores, no séc. XV. Foram as ordens religiosas, com saber acumulado noutras paragens, que para ali levaram culturas de tipo mediterrânico, como a vinha e a figueira.
A parte ocidental da ilha, inóspita e improdutiva porque dominada por solos de pedra de lava, permanceu, no entanto, praticamente abandonada. Foram, mais uma vez, os monges que aí começaram a erguer protecções para o plantio de videiras. E, com os seus conhecimentos de misturas de castas na fermentação, começaram a fazer vinhos muito apreciados, o que levou ao interesse das populações por essas áreas inóspitas para a produção de vinha.
A singularidade do cultivo resulta do complexo e geométrico reticulado de muros de pedra basáltica, que cria uma espécie de ninho protector onde cresce a videira. É o sistema de currais ou curraletas, que comunicam entre si por aberturas nas extremidades, permitindo a circulação dos trabalhadores. Há uma abertura em cada uma das extremidades da quadrícula, mas sempre desencontradas para assim impedir a circulação do vento e respectivos malefícios.
Foi, precisamente, para proteger a videira dos ventos e do rocio do mar que foram sendo levantados esse muros de pedra solta, uma obra de tal dimensão que, se dispostos de forma contínua, atingiriam duas vezes o perímetro da Terra, medido sobre a linha do Equador. Embora grande parte desta singular e secular vinha permaneça ainda hoje ao abandono, os muros lá permanecem intactos cobertos pela vegetação.
Para lá do singular sistema de produção, resultante da luta do homem contra as adversidades da natureza, a UNESCO valorizou também o facto de se tratar de uma paisagem cujo ordenamento foi, também ele, ditado pelo cultivo da vinha.
As zonas junto à costa foram ocupadas pela produção e às populações só era permitido instalarem-se nas cotas superiores, onde a plantação já era impossível. Dentro dos vinhedos só os conventos, as adegas e os solares dos grandes proprietários.
Também os pequenos cais e ancoradouros, por onde o vinho era escoado em direcção ao porto da Horta, os caminhos traçados na pedra por onde as pipas rolavam em direcção a esses cais - e por isso chamados "rola pipas" - integram o património classificado. O mesmo acontece com as rilheiras - sulcos paralelos cravados na rocha pelos carros de bois em torno dos currais –, com as construções associadas ao cultivo da vinha e com os poços de maré que as abasteciam de água.
Vinhas de pedra
Uma vinha heróica que resulta de um buraco cavado na rocha e onde é introduzida a planta por entre a pedra partida. A própria videira busca depois o sustento penetrando longamente por entre as lâminas de lava, daí resultando vinhos únicos e extraordinários.
Tão raros e apreciados que levaram a um rápido aumento da produção que, no séc. XIX, atingia as 12 a 15 mil pipas. Era, então, exportado para o Brasil, Índias, Alemanha, Inglaterra e Rússia. Diz-se até que era o vinho preferido dos czares, e o certo é que, quando o palácio real foi ocupado durante a revolução bolchevique, ai foi encontrada uma das mais preciosas colecções de vinhos do Pico.
O sonho de prosperidade ruiu com a praga de oídio e filoxera que, a partir de meados do séc. XIX, dizimou vinhas por todo o mundo. A produção rapidamente caiu para as 100 pipas e, com isso, veio o abandono e a emigração. Foi já na passada década de 50 que as autoridades lançaram um plano para a recuperação da vinha do Pico e de todas as tradições culturais a ela associadas - a vivência das adegas, as músicas e as festas populares com elas relacionadas.
À criação da adega cooperativa do Pico segue-se o Museu do Vinho e a organização anual da festa das vindimas, tudo complementado com medidas de protecção ao património. Nos anos 80 é criada legislação que protege a arquitectura tradicional associada à vinha e os núcleos de adegas e uma extensa área costeira passa a paisagem protegida.
Com a classificação da UNESCO é criado o Gabinete Técnico da Paisagem da Cultura da Vinha do Pico, que dá origem ao plano de ordenamento que hoje enquadra e controla toda a actividade na zona. É para debater e analisar o trabalho até agora desenvolvido e perspectivar o futuro que, a partir de hoje, se reúnem no Pico especialistas de várias áreas. Da preservação e recuperação do património ao desenvolvimento turístico e às potencialidades da vinha, tudo será equacionado durante três dias.