O centro de Mértola está prestes a transformar-se num souk. Não haverá uma recriação histórica, com figurantes vestidos a rigor. Haverá um mercado árabe dos dias de hoje, com artesanato, doçaria, tecidos — de Marrocos, da Tunísia, do Egipto, do Espanha, de Portugal, ou melhor, do Alentejo.
Já está a imaginar as bancas de cabedais, de djellabas, de incensos, de chás, de especiarias? E a animação espontânea? Uma dançarina, um poeta, um cantor? Este ano, o Festival Islâmico de Mértola vai de 21 a 24 de Maio e inclui a inauguração de uma réplica de uma casa islâmica, na Alcáçova do Castelo.
A semana temática, que se realiza desde 2001, parte do trabalho da equipa técnica do Campo Arqueológico de Mértola, presidida pelo arqueólogo Cláudio Torres. Quando começaram as intervenções, já na década de 1970, o estudo do período islâmico estava quase a zero. Agora, é ponto assente que a antiga Mértola foi um entreposto comercial do “mundo mediterrânico”.
Muitas ideias falsas foram sendo passadas de geração em geração sobre aquela fase particular da História. Não houve conversão forçada, enfatiza Cláudio Torres. “O mundo cristão justificou a islamização do Sul, fundamentalmente da Península ibérica, com uma invasão militar. Os cristãos não poderiam converter-se ao islão. Seria um retrocesso, do ponto de vista europeu. Era preciso arranjar uma explicação e a explicação foi esta: eram muitos e obrigaram-nos a converter-nos. A ideia de invasão também convém ao islão: éramos tão poucos a invadir que só por milagre de Deus conseguimos. Houve invasões, guerrilhas, mas o fenómeno da islamização foi de conversão.”
O arqueólogo percebe isso ao analisar os próprios locais sagrados. “No mundo rural há sempre uma fase em que a igreja é utilizada em parte como mesquita, até que se transforma em mesquita.” E torna a ser igreja com a chamada Reconquista Cristã, como se pode ver mesmo ali, em Mértola.
“Havia um Mediterrâneo com uma cultura comum”, sublinha. “Houve antes e houve depois. Por que é que a islamização parou a meio da Península, ali por Coimbra? Porque essa é a linha de separação do Mediterrâneo, esse é o limite norte do Mediterrâneo. As zonas islamizadas foram as do Mediterrâneo. Somos a continuação do Norte de África. Temos um povoamento berbere em época pré-romana. Todo este mundo ainda é o mesmo. Foi separado pela reconquista e pela questão religiosa depois, mas pertencíamos à mesma cultura e à mesma gente.”
Ter consciência daquilo parece-lhe particularmente relevante hoje, que “os europeus olham para o Magrebe e têm medo”. “O medo leva a olhar de outra maneira, com curiosidade, a querer sabe o que se passa, o que tem a ver connosco. Se começarmos a puxar o fio, vêm aí coisas interessantes.”
Site: Festival Islâmico de Mértola