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Miguel Manso

Os caracóis do Verão português vêm de Marrocos

Por Alexandra Prado Coelho

São consumidos sobretudo no Sul do país, mas estão a conquistar cada vez mais adeptos. Caracóis e caracoletas há muito que têm o seu próprio festival, em Loures, mas parecem ter desaparecido dos campos portugueses. Os que chegam às nossas mesas vêm do Norte de África.

São oito da noite de uma quinta-feira e a tenda que recebe o Festival do Caracol Saloio (que termina amanhã) está cheia. Quem chega a Loures não tem dificuldade em encontrar o caminho até lá, indicado por cartazes com um simpático caracol de grandes olhos expressivos. 

Mas àquela hora já não é fácil encontrar lugar num dos dez restaurantes que ali servem caracóis e caracoletas das mais variadas formas. Vai ser preciso escolher um, mas a tarefa é complicada. Há de tudo, das receitas tradicionais às que aspiram a ser gourmet: omeleta de caracol, feijoada de caracoleta, caracol à Bulhão Pato, tiborna medieval com caracóis na telha, caracoletas salteadas com migas saloias, chamuça de caracol à moçambicana, revuelto de ovos com farinheira, caracoleta e estaladiços de milho, caracoleta à lagareiro, pataniscas de caracol. 

E muitas outras opções, embora aquilo que se vê sair mais para as mesas seja o clássico prato de caracóis cozidos, que os aficionados devoram enquanto o cantor da noite tenta fazer ouvir os grandes clássicos dos Xutos&Pontapés ou de Rui Veloso. A cerveja sai muito bem, mas tem enorme concorrência dos jarros de sangria bebidos a partir de gigantescas palhinhas que obrigam a complicadas operações de contorcionismo para chegarmos a elas. 

O festival vai já na sua 15.ª edição e é um sucesso garantido. Loures aproveita-o para se auto-intitular a Capital do Caracol. E os restaurantes não poupam na criatividade para se distinguirem. O Apolo 78, por exemplo, apresenta uns pastéis de nata com caracol polvilhados com orégãos — uma aposta polémica e capaz de dividir opiniões. 

Aproveitamos o espaço da empresa de comercialização Que Caracol para tentar aprender mais alguma coisa sobre este animal que parece ter público entusiasta apenas na parte Sul do país. Ali vendem-se caracol e caracoleta e a vendedora dá-nos um minicurso sobre o assunto, apontando os diferentes sacos. “O caracol que se come em Portugal vem de Marrocos”, diz. E tem três qualidades: o do feno, menos saboroso, e os da laranjeira e da oliveira, que, pela alimentação que têm, são mais saborosos. 

A seguir, há uma caracoleta de tamanho médio, que é conhecida como a “mitra ou riscada” — distingue-se facilmente pelos riscos que tem na casca — e a “canária”, que cresce em canas. E, por fim, há a caracoleta grande, que pode ser de criação, e nesse caso há alguns criadores nacionais, ou selvagem, e aí é também de importação. É fácil perceber a diferença: a primeira é escura, a segunda é clara. 



Muito mercado a explorar

Dir-se-ia, à primeira vista, que os devoradores de pratinhos bem temperados de caracóis não estão interessados em saber tanto sobre os bichos que retiram metodicamente de dentro das cascas. Mas, por outro lado, parece haver cada vez mais informação. Ao lado da banca do Que Caracol encontramos folhetos do projecto Helisphera, que promete “momentos caracolíssimos” com visitas pedagógicas destinadas a crianças até ao 9.º ano e também a profissionais que queiram dedicar-se à helicicultura (tem uma unidade de produção em Loures onde criam a caracoleta Aspersa Máxima). O objectivo é dar a conhecer como nascem, como vivem e como se reproduzem os caracóis. 

Apesar de tudo o que entretanto aprendemos, saímos do Festival do Caracol Saloio com vontade de saber mais. Por isso, atravessamos o Tejo e viajámos até Azeitão para conhecer Nuno Caetano, da Francisconde, a maior empresa importadora de caracóis do país e proprietária da cadeia de lojas Casa dos Caracóis. 

São quatro da tarde de um dia de intenso calor quando chegamos às instalações da Francisconde, em Brejos de Azeitão. A temperatura dentro dos armazéns frigoríficos contrasta radicalmente com a do exterior e percebemos então por que é que alguns funcionários andam de casacos e até gorros. É nesse interior gelado que estão as toneladas de caracóis trazidos de Marrocos em camiões também refrigerados com capacidade para 21 mil quilos cada. 

Nuno Caetano salta por cima das paletes para nos mostrar os diferentes tipos de caracol. Este é um negócio que já vem do pai, Francisco, que começou, nos anos 1990, com apenas uma carrinha, a comprar e a distribuir caracóis. Mas isso foi há várias décadas, numa altura em que ainda era fácil encontrar caracóis em Portugal. 

Nuno apresenta-nos um comprador que está no armazém, com o qual faz negócio há muito tempo e que “vem da terra do caracol”, da zona de Budens, no Algarve. E o algarvio confirma que as coisas mudaram muito, não sabe se por causa do clima ou porque “hoje há muito menos campos cultivados, foram substituídos por campos de golfe e o caracol não se dá”.

Seja por que razão for, todos concordam que foi-se tornando cada vez mais difícil arranjar caracóis nacionais, o que obrigou o pai de Nuno a começar a trabalhar com um espanhol que os importava de Marrocos. Com o tempo, as relações foram-se alterando e a partir de certa altura Francisco Caetano passou a importar directamente, deixando de ter intermediários. Foi nesse negócio que os filhos pegaram e hoje o grupo distribui duas mil toneladas por ano para Portugal e ainda exporta para outros países. 

Nuno mostra, no computador, as muitas fotografias que tem tiradas em Marrocos. O que surge no ecrã é um cenário que já não se vê em Portugal: árvores e arbustos e até cactos totalmente cobertos por caracóis ao ponto de praticamente não se verem as folhas. “Noventa por cento do caracol consumido em Portugal é este mais pequeno, o branco”, explica. A caracoleta riscada representa 7% e a caracoleta grande apenas 3%. 

Uma coisa parece certa: o consumo está a aumentar. Nuno confirma que esta é uma tradição do Sul de Portugal. “A partir de Coimbra para cima não se vende nada.” Mas no Sul há cada vez mais gente a comer caracóis e mais lojas a vendê-los. O comprador algarvio, que é revendedor, confirma: “Se dantes eu vendia a 80 casas, hoje vendo a 400.” O negócio está a crescer, portanto. De tal forma que a Francisconde já comprou um terreno próximo do local onde estamos e vai construir “uma unidade três vezes maior”. “Actualmente vendemos perto de 20 mil quilos por dia”, afirma Nuno. 

Voltamos às fotografias no computador. Mulheres marroquinas, de lenços nas cabeças e luvas a proteger-lhes as mãos, apanham caracóis dos arbustos e separam-nos por tamanhos. Algumas fotos mostram o comércio de caracóis em lojas em Marrocos porque este é um petisco que os marroquinos também apreciam. É um trabalho muito duro e mal pago, reconhece Nuno, mas importante para a população das zonas de Marrocos onde os caracóis se multiplicam como uma praga. Além disso, é um trabalho que só dura alguns meses, de Março até Setembro — tal como, aliás, o trabalho da Francisconde, que, terminada a época do caracol, encerra as suas lojas até ao ano seguinte. 

Nuno está muito optimista. “Vejo este mercado bastante virgem ainda, há muito por onde explorar.” Mas, por outro lado, não acredita tanto na produção de caracol de viveiro. Porque, explica, em viveiro só se consegue criar caracoleta, e “os verdadeiros apreciadores de caracoletas não gostam destas porque são alimentadas a farinha e ficam muito mais moles”. Não é um bom negócio, garante. “Se fosse, nós já nos teríamos metido nisso.” O que estão a fazer neste é momento é procurar diversificar os países fornecedores e por isso estão a testar caracóis e caracoletas vindos da Tunísia e da Grécia. 

O Festival do Caracol Saloio é apenas uma montra. A realidade é que um pouco por todo o Sul, mas sobretudo em redor de Lisboa e no Algarve, há, durante estes meses, centenas de casas a vender pratinhos de caracóis cozidos que, todos somados, significam muitas toneladas de moluscos gastrópodes consumidos durante o Verão português.

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