O que nos une e o que nos separa da América Latina? Este é o ano em que Lisboa é a capital ibero-americana da cultura e por isso estas perguntas exigem reflexões. Que passam também pela mesa. O restaurante Elevan, do chef Joachim Koerper, foi o anfitrião que juntou, na sexta-feira ao jantar, vários cozinheiros dos dois lados do Atlântico: os portugueses José Avillez, Ricardo Costa e Leonel Pereira e Elena Reygadas (México), Felipe Bronze (Brasil), Rodolfo Guzmán (Chile) e Jorge Muñoz (Peru).
O menu fala de todos estes países, porque, como diz a curadora do jantar, a brasileira Luciana Fróes, jornalista de gastronomia, “não tem riqueza maior que a mesa. A mesa identifica tudo. Você senta-se num lugar, come, e sabe direitinho onde está”.
Mantemos o sotaque brasileiro. Felipe Bronze sabe onde está a sua cozinha, mas anda sempre à procura dela: passam poucas semanas sem alterações na carta do seu restaurante Oro (com uma estrela Michelin), no Rio de Janeiro. “Há uma organização que permite a improvisação em condições controladas – nunca vai dar errado”.
É um chef-estrela com três programas de televisão e uma cadeia de prémios (mais de 20). Porque gostam tanto dele? “Tenho a essência da cidade, a visão do Rio de Janeiro de um estrangeiro, que é a mais romântica de todas” – isto porque, sendo carioca de gema, estudou e começou a sua carreira nos Estados Unidos. “Faço uma cozinha brasileira com um pé na carioquice”. O que é isso? “O Brasil não tem uma cozinha de unidade, e o Rio menos ainda.” E mais do que um receituário, a cidade tem “uma forma de comer. É mais forma que conteúdo. Há uma informalidade, o comer com as mãos, que é bem carioca. O tacto do alimento é super importante”. Por isso tem todo um menu para comer sem talheres.
O Rio de Janeiro é ainda outra coisa: “Tem um pé na gastronomia portuguesa e na cozinha internacional, porque não é uma cidade que tenha produto. É a influência dos portugueses, com os botequins, e do olhar do carioca do mundo”. Isso significa que Felipe Bronze não se sente amarrado, nem sequer aos produtos brasileiros. “Não tenho essa loucura pelo local.”
Mas a “brasileiridade” repete-se em vários dos seus pratos, que juntos “visitam o país inteiro”. Aquele que traz a Lisboa, costela de porco com goiabada picante e tutu de lentilha preta, tem fortes ecos mineiros (onde o tutu tradicionalmente é de feijão preto). “Cozinha brasileira é um apanhado de cozinhas regionais maravilhosas, com dimensões continentais. Se você vai para o Nordeste e pergunta o que é a cozinha brasileira, vão-te dizer que é moqueca, se for para o Sul vão dizer que é churrasco, se for para Minas é alguma coisa com feijão preto. A do Norte é de produto. São radicalmente diferentes.” E nem os próprios brasileiros dominam essa diversidade. No Oro, todos têm alguma coisa a ganhar: “O que para uns é memória, para outros é descoberta”.
“Cozinhar como chilenos”
Onde estás? O que és? O que está à tua volta? Estas três coisas são fundamentais para se começar a cozinhar. Ao fim de dez anos, Rodolfo Guzmán consegue dar algumas respostas. O que és? “Bem, pelo menos 80% dos chilenos têm sangue mapuche. Mas isto para muitos chilenos é muito indigno. Somos mestiços – é isso que somos e é isso que tentamos aprender”.
É essa herança que faz questão de levar para o seu restaurante, o Boragó (considerado pelo The World’s 50 Best o segundo Melhor Restaurante da América Latina em 2015). No pico das montanhas, com milhares de quilómetros de altitude, encontram-se espécies que não existem em mais lado nenhum; no mar, que mesmo durante o Verão pode estar a dez graus, há peixe que dispensa alegremente o atum e salmão importados do Japão. “São coisas únicas… O Chile é a maior despensa endémica do mundo. É absolutamente diferente do que encontraríamos na Argentina, no Peru, no México…”
Segundo Guzmán, essa especificidade esteve escondida e só agora começa a ser destapada. “Levou-nos imenso tempo para descobrir coisas tão simples como as diferenças entre o início e o fim das estações”. Porquê este afastamento? “Porque a comida não era de todo importante. O Chile tinha uma economia saudável, em crescimento, mas adoptávamos outras culturas, não prestávamos atenção às nossas raízes.”
Rodolfo Guzmán e a sua equipa fazem então uma exploração territorial para descobrir plantas silvestres e animais selvagens, juntando uma rede que já chega às duas centenas de pessoas, com muitos pequenos produtores incluídos. Só assim se consegue compreender como tudo funciona. “Agora já podemos cozinhar como chilenos”. Porquê usar trufas se se pode usar morangos brancos chilenos (“o morango original, na verdade!”)?
A prova desta ligação aos produtos endémicos está na sobremesa que levou para o Elevan: um ice brulée com uma sanduiche de gelado de flor do ano. Nos dois elementos entram plantas do deserto de Atacama que crescem a mais de três mil metros de altitude (rica rica, muña muña, tolilla e tola). No gelado, trata-se de pétalas de tal flor que só aparece uma vez por ano, depois da chuva.
Ao contrário do que acontece no México ou no Peru, o Chile não está agarrado a uma tradição gastronómica, diz o chef. Abre-se aqui um mar de possibilidades, cheio de liberdade, que Guzmán aprendeu a controlar muito por conta da sua formação no País Basco. Foi lá que aprendeu “o respeito pelos produtos”. Uma lição particularmente útil tendo em conta que “a comida chilena não é técnica, é sabor. Sabor da terra”.
As jóias de Elena
Elena Reygadas também leva um produto endémico para o jantar. Do pixtle, o caroço do mamey, um fruto que cresce no México, fez um gelado (com um subtil sabor a amêndoa amarga) a que juntou pinhões rosa e merengue. “Trabalhar com estes produtos é fantástico. É como encontrar pequenas jóias, coisas que ninguém usa”.
A chef do restaurante Rosetta, na Cidade do México, afirma que o seu país tem “uma história [gastronómica] longuíssima que nem a França terá, com um mistura entre tradições rurais e antigas e a colonização” espanhola. Ainda que essa longa ligação esteja estabelecida, “o México vive agora um momento especial da sua cozinha. Há um novo orgulho das gerações mais novas na nossa diversidade. Antes, os restaurantes de topo eram sobretudo espanhóis e franceses e isso agora mudou”. Os sabores do México foram assumidos em força: “São sabores relacionados com terra, os fumados, vindos das áreas rurais onde o gás não chegava e se cozinhava tudo a lenha, e os picantes, os ácidos…”
A cozinha com marca México atingiu um novo nível e Elena é um dos exemplos disso: em 2014 ganhou o Prémio Veuve Clicquot para Melhor Chef Feminina da América Latina, atribuído pela revista The World’s 50 Best.
Leva muitas vezes com a pergunta: “Como concilia a vida familiar com a exigência de uma cozinha de topo?” Uma pergunta que muito poucos se lembram de fazer a um chef homem. Elena Reygadas não parece particularmente incomodada com esse desequilíbrio. “Apesar de muitas vezes trabalhar fora, é quase sempre a mulher quem toma as responsabilidades da casa”, afirma. “As cozinhas estão cheias de mulheres, sobretudo na pastelaria, que é uma área mais sensível, mas raramente passam de um certo nível. O movimento [de igualdade] tem que se dar em casa, não no restaurante”.
Licenciada em literatura inglesa, sempre viveu à volta do fogão. “Cozinhar era uma coisa muito natural, algo que se fazia e que era estranho estudar”. Os livros eram o trabalho, a comida o hobby. Pouco depois de terminar a faculdade deu-se uma inversão. A comida passou a estar lá a tempo inteiro.
No Rosetta quis criar um ambiente informal, onde as pessoas se sentem bem e querem voltar na semana seguinte para comer outro prato. Mistura a sua influência italiana, adquirida nos restaurantes em Londres onde trabalhou, com os ingredientes autóctones. Foi um processo de crescimento: “Aos poucos tornei-me mais mexicana, a ter uma comida mais pessoal. Estou a dar mais possibilidades aos ingredientes mexicanos que não eram tão usados – como tínhamos muita abundância, não procurávamos explorar tudo, algumas partes das plantas, ou certos peixes.” Também tenta mudar a forma de comer certos alimentos. “Porque não comer a papaia com porco? Podemos fermentá-la, ou fumá-la. Tentar ir mais fundo”.
"As comparações são feias"
Jorge Muñoz foi viver para a selva no Norte do Peru entre os três e os cinco anos. Foi suficiente para adquirir experiências fortes que guardou sempre consigo. Não era um terreno plano, mas antes muito acidentado, com produtos únicos e bom peixe de rio. Proliferavam as árvores de mamey, as laranjas silvestres, as goiabas, as mangas verdes, que comia com sal e gotas de limão. Guarda essas e outras recordações de infância a sete chaves, para tirar o máximo partido delas. “Dizem que vivo de memórias”.
No ano passado voltou à selva acompanhado da sua equipa do Pakta, o restaurante com uma estrela Michelin que tem em Barcelona (onde se formou, na escola de culinária CETT). Vive há 17 anos fora do país (tem 31), mas sempre sentiu esta necessidade de regressar anualmente às raízes. “Queria relacionar a minha infância com a actualidade. Foi uma experiência muito bonita e ver como cozinham, com técnicas de cozedura e fermentação muito ancestrais”. Há um fermento, o masato, que resulta numa bebida e que no Brasil se chama tucupi. “Todos os fermentos são ácidos e usámos o do masato para fazer um ceviche com corvina”.
A cozinha peruana é produto também, como a maior parte das cozinhas latino-americanas. Há um conjunto de produtos que eram comuns na alimentação diária mas que entretanto desapareceram e agora são resgatados, afirma Muñoz. “Começamos a dar-nos conta de que não sabíamos quase nada. A história da cozinha peruana não tem um fim. Nunca chegaremos a conhecer todos os produtos que há no país.”
“As comparações são muito feias”, adianta o chef, “mas se compararmos as cozinhas europeias com a cozinha latino-americana de há 10 ou 15 anos, os latinos estavam atrás, porque foi na Europa que apareceu a nova cozinha, as novas técnicas. Depois quisemos aplicar essas técnicas na América do Sul, e fizemos isso com os nossos produtos. E esta é uma mais-valia sobre a Europa: a quantidade de produtos novos que podem aparecer aqui não é tão grande como a que pode haver apenas no Brasil, ou no Peru, ou no México.”
Há também pontos de encontro: “Somos culturas latinas, amamos a comida, anda tudo à volta da comida, o dia todo. Acabamos de almoçar e perguntamos: o que vamos comer ao jantar?”
No Eleven fez uma versão doce da humita, um bolo de milho que é também adocicado mas que nunca é comido como sobremesa, mas com porco ou galinha. Trocou a consistência pesada desse bolo por um creme leve, mas serviu também nas folhas, como se faz tradicionalmente.
Não há pureza na utilização dos ingredientes, e nem tudo o que cozinha tem de vir necessariamente do Peru – até porque a gastronomia japonesa contaminou fortemente a peruana, e esse encontro dá-se igualmente no seu Pakta, onde trabalha com uma chef nipónica. “O Peru, o Chile, o Brasil, Portugal tiveram muita emigração. Se há uma fusão de culturas há tantos anos, porque não continuar a fundir com outras culturas, ou a manter este fluxo de aprendizagem entre uns e outros?”