Fugas - restaurantes e bares

  • René Redzepi, aqui fotografado no seu restaurante Noma, é o fundador do MAD, que acontece em Copenhaga
    René Redzepi, aqui fotografado no seu restaurante Noma, é o fundador do MAD, que acontece em Copenhaga JOACHIM LADEFOGED/VII/CORBIS
  • “Pretendo ensinar-vos a ter medo. Nunca somos velhos para o ter”, disse Albert Adrià
    “Pretendo ensinar-vos a ter medo. Nunca somos velhos para o ter”, disse Albert Adrià MIKKEL HERRIBA
  • Futa Feia, projecto português inspirador
    Futa Feia, projecto português inspirador MIKKEL HERRIBA

O “Cirque du Soleil” da gastronomia regressou a Copenhaga

Por Miguel Andrade

O mais influente simpósio gastronómico mundial voltou a reunir grandes figuras da cozinha e cultura numa tenda de circo. Na 4.ª edição do MAD, reflectiu-se o crescente papel do chef estrela e da sua preponderância na sociedade. Na capital dinamarquesa, pela primeira vez, Portugal entrou para as bocas do mundo com a apresentação do Fruta Feia, projecto pioneiro na luta contra o desperdício alimentar.

Mal entra em palco para a sua apresentação, Ron Finley, o agricultor urbano que transforma canteiros e jardins de bairros desfavorecidos de Los Angeles em hortas de legumes e verduras, pôs a plateia de braços no ar, como protesto pacífico pela morte, em Agosto passado, de um jovem negro por um polícia branco em Ferguson, nos Estados Unidos.

O antropólogo brasileiro Renato Meirelles, co-autor do livro Um país chamado favela, da editora Gente, e director do Data Popular, um instituto que faz investigações sobre os cerca de 12 milhões de pessoas que vivem nas favelas, falou sobre como naqueles ambientes ser gordinho é um sinal de saúde. Apontou para uma fotografia de uma modelo da elite brasileira, descrevendo-a como triste e magra e referiu que as mulheres das favelas não percebem por que é que só comeriam frango e salada se tivessem dinheiro.

O chef David Hertz, da organização Gastromotiva, que usa a cozinha como veículo para melhorar a vida das pessoas no Brasil, subiu ao palco com Jayme Santos Junior, juiz do Tribunal de Execução Penal e Controlo de Prisões de São Paulo. Ambos falaram sobre o uso da gastronomia como um “utensílio potente para a integração social” ao iniciarem um programa em prisões locais para ensinar as mulheres a cozinhar. Esses cursos, a maioria dados por cozinheiros vindos da Gastromotiva, estão a ensinar presos a trabalharem e a verem-se como parte de um grupo. “Estão a cozinhar a transformação da população presa”, concluiu o Jayme Santos Junior, numa palestra emocionante.

Estes foram alguns dos momentos que marcaram o MAD, o simpósio gastronómico mais importante do momento, que vai muito para além da comida. Durante dois dias, 600 chefs, cozinheiros, cientistas, produtores, escritores e pensadores e diversas figuras da gastronomia e cultura, como Albert Adrià, o irmão de Ferran Adrià, ambos ex-restaurante elBulli, na Catalunha Paola Antonelli, curadora sénior de Design e Arquitectura do Museu de Arte Moderna (MOMA), em Nova Iorque, ou James Murphy, músico e produtor, mais conhecido pelo projecto musical LCD Soundsytem, reuniram-se numa tenda de circo, em Refshaleon, nas margens de Copenhaga. E a ideia que deu origem a esta conferência, em 2011, é simples: os chefs e cozinheiros de hoje têm de encarar desafios e responsabilidades que vão muito para além das paredes da cozinha.

“O papel do chef está a evoluir e a desenvolver-se para uma posição de influência, que tem impacto na forma como as pessoas e os profissionais consomem e se ligam à comida”, afirmou René Redzepi, fundador do MAD e chef do Noma, eleito como o melhor restaurante do mundo pela revista inglesa Restaurant por quatro anos (2010, 2011, 2012 e 2014). Como tal, o simpósio anual, que se tornou obrigatório e que já foi apelidado de TED ou G-20 da gastronomia, reúne no mesmo espaço apresentações de oradores de diferentes disciplinas, para que se exponham inúmeras perspectivas sobre a comida e cultura. É um espaço de reflexão, imaginação e conhecimento. Mas também de convívio e um local onde estrelas são, afinal, terra-a-terra. Tanto se recebe as boas-vindas de René Redzepi com um aperto de mão à entrada, como se comenta a palestra anterior nos urinóis com Albert Adrià. Ou até se chega a beber um gin destilado com formigas (leu bem, dizem que dá um gosto cítrico), criado pelo Nordic Food Lab, um centro de investigação gastronómica com sede em Copenhaga, com Matt Preston, o que parece ser temido, mas, no fundo, simpático jurado do programa MasterChef Austrália (transmitido em Portugal na SIC Mulher).

O nome não podia ter sido melhor escolhido: MAD significa comida em dinamarquês e louco, em inglês. Nos intervalos das palestras, bebe-se cerveja artesanal, criada especialmente para o evento pela marca dinamarquesa Mikkeller, come-se gelado de buttermilk (leite desnatado) e ao almoço moqueca preparada pela equipa da Gastromotiva ou tacos mexicanos confeccionados por Roy Choi, de Los Angeles, pioneiro do movimento actual de comida de rua.

O que é cozinhar?

Depois do tema “Apetite” na primeira edição, seguido de “Vegetação” e “Garra” nas seguintes, em 2014 foi a vez de se perguntar “O que é cozinhar?”. “Este é o momento ideal para se ser cozinheiro. Mas quanto mais atenção a nossa indústria recebe da televisão, filmes, jornais, revistas e Internet, cada vez é menos claro o significado de cozinhar. Um caminho para o estrelato, uma forma de fazer fortuna — a última década levantou muitas percepções que nós sabemos que não significam cozinhar”, afirmou René Redzepi no início do MAD.  Este ano, a co-curadoria ficou a cargo de Alex Atala, chef do restaurante D.O.M., em São Paulo, e o brasileiro convidou 29 oradores, desde escritores, artistas, produtores e activistas, para discutirem o tópico e lançarem ideias sobre o que é cozinhar, neste momento. Para o chef David Hertz, significa uma arma para tirar as pessoas da pobreza. Para a lendária escritora e actriz indiana, Madhur Jaffrey, cozinhar é a nossa identidade cultural. E para Chris Ying, editor da revista de gastronomia Lucky Peach e fundador do projecto Zero Food Print, que pretende tornar os restaurantes em espaços de zero emissões de carbono, até pode significar lutar contra as mudanças climáticas. 

Nas palestras, foram vários os chefs que mostraram a sua visão do que é cozinhar através das suas experiências pessois. Podem ser nervos, pressão e suor. Exaustão até ao osso e, apesar de se trabalhar em equipa, ter uma vida solitária.

Solidão e exaustão foi o que desvendou ter passado Chris Cosentino, chef de cozinha em São Francisco, e que mostrou que a cozinha não é a vida cor-de-rosa que se vê em programas de televisão. Em 2007, o americano começou por ser um dos participantes no Iron Chef America, mas acabou por ser convidado para entrar no programa Chefs vs City, no canal de televisão Food Network, onde viajava e comia com outros chefs. Acabou por ser um desastre. “Não era aquilo que eu esperava quando assinei o contrato”, confessou Chris, uma vez que era obrigado a participar em concursos de comida que eram menos testes de sabor cegos e mais comer pizzas de três quilos ou malaguetas inteiras, consideradas das mais picantes do mundo. “Cheguei a um ponto que me senti envergonhado e desapontado por estar a destruir a vida das pessoas e estar a ensinar maus hábitos aos meus próprios filhos. Contudo, não havia forma de parar. Tinha assinado um contrato”, revelou o americano, ao acrescentar que falou com a produção, mas esta ignorou-o.

Em 2009, o chef ficou extremamente doente e após cinco anos de testes médicos descobriu que desenvolveu um distúrbio da motilidade intestinal, na qual a comida no estômago não consegue descer para os intestinos. Teve de fechar o seu restaurante, em São Francisco. Agora, já recuperado, disse sentir-se arrependido e com vergonha. “A única coisa que queria era dar mais oportunidades à minha família, aos meus empregados e à minha carreira. Ter ficado doente foi o preço que paguei pela fama”, afirmou. Uma longa caminhada solitária que serve agora para prevenir jovens chefs de quererem ter fama fácil, naquela que foi uma das palestras mais emocionantes do simpósio.

Humildade e medo

A cozinha de um restaurante também é um lugar que testa ao máximo a personalidade de uma pessoa, seja em Lisboa, Chicago ou Copenhaga. Por isso, para se ser cozinheiro é preciso uma receita que envolve muita coragem, empenho e determinação. Mas, acima de tudo, é necessário perseverança e humildade, até mesmo quando se chega ao topo. Modéstia essa que teve Olivier Roellinger. O chef bretão cujo estilo de cozinha foi fortemente influenciado pelo comércio das especiarias devolveu as três estrelas do restaurante Maisons de Bricourt, aberto em 1982, e conquistou a plateia com as suas frases-chave sobre o que é para ele o papel da figura do chef. “Os chefs devem comprar produtos respeitando a diversidade das espécies animais e a biodiversidade e diferenças culturais no planeta.” Palmas. “Os chefs devem apoiar o comércio justo e lutar contra o desperdício alimentar.” Palmas. “Os chefs devem proteger e promover a diversidade de cozinhas e hospitalidade em todos os locais.” Ovação de pé.

Mais jovem do que o chef Olivier, mas não menos determinada, Tatiana Levha desmistificou ainda a ideia de que, hoje, qualquer pessoa pode abrir um restaurante com toda a facilidade. Quatro meses após ter aberto o seu próprio espaço, o Le Servan, em Paris, e depois de ter trabalhado com nomes como os chefs Pascal Barbot e Alain Passard, Tatiana falou sobre o que apelida de “dor gratificante” que isso acarreta. A jovem chef falou sobre o “medo de receber uma enorme atenção dos media desde o início” — apesar de ser bom, tudo está a começar e os pratos estão a evoluir —, tocou também na mudança do staff e na necessidade de aprender a reagir a mudanças repentinas na ementa. Tatiana terminou a sua palestra com um “é assustador saber que vamos ficar com medo nos próximos dez anos”. Redzepi retorquiu: “Aprendemos a viver com isso.”

Bem o pode dizer Albert Adrià. A apresentação do chef catalão foi inteiramente dedicada a demonstrar a importância do medo como engenho criativo. “Pretendo ensinar-vos a ter medo. Nunca somos velhos para o ter”, disse, explicando que quando, ultrapassamos os sustos, alcançamos os sonhos. Para ilustrar o seu ponto de vista, Albert percorreu a sua carreira pós elBulli, considerado pela revista inglesa Restaurant como o melhor restaurante do mundo em 2002 e de 2006 a 2009, e os medos que tem tido com cada novo projecto pessoal. Quando abriu o 41º, o primeiro de vários espaços em Barcelona, tinha receio de não se conseguir separar do nome do seu irmão, Ferran Adrià, e copiar o conceito do elBulli. Seguiram-se o Tickets (restaurante a que o chef José Avillez foi buscar inspiração para o seu Mini Bar, em Lisboa), o Pakta e o Bodega 1900, e aqui o problema era os clientes não perceberem o conceito.

Nos novos dois espaços, o Nino Viejo e o Hoja Santa, a abrir já em Setembro, a apreensão é que os mexicanos não gostem ou pensem que não é cozinha autêntica. Contudo, por agora, Albert aprendeu a lidar com os seus medos. “O receio, controlado positivamente, é o meu engenho criativo. Torna-me humilde, ponderado, respeitoso, honesto e ousado”, concluiu, sob um forte aplauso da plateia. Lições de chefs que são ensinamentos de vida.

Fruta Feia: o projecto português que inspira a plateia e o mundo

No MAD, além dos chefs, houve espaço para ideias que podem mudar a forma como olhamos para a comida no futuro, já que o simpósio também dita tendências, como foi o caso de comer insectos, uma das apresentações no primeiro ano.

“Ela deve estar entre aqueles que podem moldar o futuro da cozinha.” Foi desta forma que o chef René Redzepi anunciou a oradora Isabel Soares, co-fundadora do projecto Fruta Feia. Em inglês, a engenheira ambiental deu a conhecer a sua cooperativa não-lucrativa e explicou a uma plateia repleta com os mais importantes chefs, escritores, cientistas, produtores e pensadores do mundo que, “na Europa, 30% dos produtos hortícolas são deixados apodrecer nos campos só porque as dimensões da fruta e dos legumes não estão de acordo com a legislação imposta pela União Europeia.” E até ela seria descartada se fosse fruta. “Sou baixinha, fora do padrão”, brincou Isabel.

O papel da cooperativa é ligar os produtores aos consumidores através da venda de cabazes a baixo custo (um cabaz de 4kg por 3,5€ ou 8kg por 7€) com dois pontos de entrega (Casa Independente e Ateneu Comercial, ambos em Lisboa). Segundo dados apresentados, desde que o projecto nasceu, em Novembro de 2013, o Fruta Feia já salvou 41 toneladas de comida em Portugal. Actualmente, a cooperativa está à procura de investidores, porque, apesar de ter o apoio de 18 voluntários, trabalhar com 32 produtores e vender a 420 associados, a lista de espera não pára de crescer e, hoje, são mais de dois mil interessados em comprar frutas feias. A ideia já inspirou uma cadeia de supermercados em França e o objectivo de Isabel é agora levá-la a outras cidades do nosso país.

Destemida, Isabel terminou com uma pergunta para a plateia: “Porque é que todos os pratos têm de ser iguais nos restaurantes? Não seria engraçado usar as formas que a natureza nos dá?”. Uma enorme salva de palmas.

O presente e o futuro do MAD

Em grande parte, o que diferencia o MAD de outras conferências de gastronomia é não haver apresentações de receitas, nem chefs a cozinharem como se faz, por exemplo, no festival Peixe em Lisboa.

No simpósio também ninguém recebe cachet, enquanto noutros eventos o pagamento sobe conforme a popularidade do chef. Não há patrocinadores, nem marcas visíveis e a equipa que ajuda nos dois dias do MAD são cozinheiros que trabalham ou estagiam no Noma.

Se nos anos anteriores os bilhetes para entrar na tenda de circo eram concedidos aos mais rápidos a comprar, este ano a organização abriu candidaturas para um lugar por um período de um mês. De 5000 candidatos, foram escolhidas 600 pessoas, que pagaram 2500 coroas dinamarquesas (cerca de 300€) para estarem presentes nesta quarta edição. Todas as apresentações estão disponíveis online no site do MAD e vai ser lançado um documentário de cinco minutos sobre o evento, em meados de Setembro.

Enquanto isso, o MAD 5 já está a ser pensado. À Fugas, René Redzepi adiantou que irá haver uma conferência no Japão, quando o Noma e a sua equipa se mudar durante dois meses para terras nipónicas no início de 2015. Contudo, no final dos dois dias, o chef dinamarquês antecipou a próxima edição: “Já se falou muito. Agora é tempo de agir.”

Informações

Famosos pela herança viking, os dinamarqueses modernos são tudo ao contrário do que aparentavam ser naquela época. Segundo as Nações Unidas, são o povo mais feliz e dos mais pacíficos a nível mundial. No coração da mentalidade dinamarquesa, Copenhaga é uma cidade encantadora, que balança na perfeição as vantagens, facilidades e atracções que se esperam de uma capital, enquanto mantém uma sensação acolhedora, segura e amigável de uma pequena cidade. Copenhaga é jovem, vibrante e harmoniosa.

Como ir
A TAP tem dois voos diários para Copenhaga, com saídas de Lisboa (desde 236€/ida) e a viagem tem a duração média de três horas e meia. (As simulações foram feitas para os dias 13 e 20 de Setembro)

Onde comer
Sendo um dos destinos do momento em termos gastronómicos, Copenhaga é uma atracção só pela sua comida. Desde restaurantes mais tradicionais a estrelas Michelin, uma coisa é certa: o foco é na qualidade, em ingredientes sazonais e numa visão desprentensiosa de comer fora. Algumas moradas a reter são o Atelier September (Gothersgade, 30), para um pequeno-almoço ou almoço mais leve, o Manfreds (Jægersborggade, 40) para almoço, o bar Mikkeller (Viktoriagade, 8) para experimentar uma das várias cervejas artesanais e o restaurante Amass (Refshalevej, 153) para terminar com um menu de degustação para jantar.

Onde dormir
Os hotéis em Copenhaga não são baratos, por isso não espere encontrar muitas opções por menos de 100€ por noite (duas pessoas). As opções mais económicas são os hostels e os apartamentos. O ideal é encontrar o equilíbrio entre a localização e o preço, uma vez que, sendo Copenhaga uma cidade relativamente pequena, é possível caminhar ou pedalar entre grande parte das atracções turísticas. O metro está aberto 24 horas e a rede de autocarros é muito eficaz. As zonas de Frederiksberg ou Norrebro são as melhores apostas para se ficar.

O que fazer

Se é a capital do país mais feliz do mundo, não será por acaso que é talvez a melhor cidade do mundo para se andar de bicicleta. Copenhaga está inundada de ciclovias e metade dos habitantes pedala para o trabalho. Esta é a melhor forma também de conhecer e passear pela cidade. Por toda a cidade há lojas onde se pode alugar uma. Os preços começam nas 110 coroas dinamarquesas por dia (15€).

Os dinamarqueses são conhecidos por terem inventado muitas coisas que não sabíamos que eram necessárias. Uma dessas ideais geniais foi a Lego (até se pisar um quando se está descalço) e é obrigatório visitar a enorme loja da marca, com sets exclusivos de peças (Vimmelskaftet, 37).

Outro local a não perder é o Rosenborg Slot (Øster Voldgade). Este castelo do Renascimento pode ser visitado no centro de Copenhaga e tem parte da colecção de jóias da família real, incluindo uma coroa do rei Christian IV, o seu fundador. O jardim atrás do castelo é o parque público mais antigo da cidade e é bom para piqueniques.

A capital dinamarquesa é rica em lojas de design que vendem candeeiros, talheres e facas de cozinheiro inovadores, mobiliário doméstico alegre e cerâmicas e copos requintados. Com onze anos de existência, a loja Hay (Pilestræde, 29-31) tem mobília e acessórios básicos, mas vistosos, e resume o sonho dinamarquês do sólido, simples, alegre e funcional.

Pode, ainda, dar um salto ao canal Nyhavn, à Cidade Livre de Christiania, uma comunidade independente e autogerida no meio da cidade e espreitar a Pequena Sereia nas margens de Copenhaga.

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