A Estação Central do Pacífico é um lugar estranho e por mais do que uma razão. Começa na fachada, típica de um edifício Beaux-Arts (1919), que resulta quase alienígena numa Vancôver na maior parte construída nos últimos vinte anos. É também esquisita por dentro, uma vez que a recente remodelação reteve pouco mais que o esqueleto do antigo edifício ferroviário, transformado numa asséptica estação intermodal.
Temos tempo de sobra para apreciar o contraste, quando passamos uns bons três quartos de hora de pé, à espera que os únicos dois clientes à nossa frente na bicha sejam atendidos. Depois passamos só nós tanto tempo ou mais a fazer perguntas. Somos dois casais adultos mais um rapaz de 8 anos e temos um monte de dúvidas sobre a viagem que planeamos realizar a bordo do Canadiano. Este comboio lendário percorre 4467 quilómetros de distância, ligando Vancôver, a metrópole em franca expansão, à beira do Pacífico, com Toronto, centro económico e maior cidade do país.
O Canadiano demora três noites e quase quatro dias a cumprir o itinerário transcontinental, seguindo em paralelo à fronteira com os Estados Unidos. Atravessa cinco estados, quatro fusos horários, e hoje ainda dimana um perfume a aventura, que remonta à abertura da linha, nos inícios do século XIX (o traçado era diferente e mais longo, mas essa é uma história também muito comprida). Já a opção de fazer o percurso no sentido Vancôver-Toronto, no lugar do inverso, não obedeceu a nenhuma razão especial. No balcão da Pacific Station descobrimos, porém, que foi a decisão mais acertada: nesta altura do ano, em finais de Junho, acaba o ano lectivo canadiano e os comboios estão a abarrotar de famílias de Toronto a caminho de férias nas Montanhas Rochosas.
O nosso dilema é diferente o que nos falta não é espaço, é papel. Não é preciso fazer muitas contas para concluir que os 1600€ por adulto e 975€ pelo rapaz colocam fora do nosso orçamento as cabines de luxo nas carruagens-cama do Canadiano. Vamos descendo a parada, até batermos no fundo da tabela: 400€ por adulto com a criança a viajar à borla, nas carruagens de bancos reclináveis de segunda classe. Como nos aviões, as bagagens maiores seguem à parte e gratuitamente (porque não excedem os 30 quilos por pessoa). Pelo menos viajamos mais leves e não temos de nos preocupar com mais essa despesa.
O espectáculo mais desejado
O problema dos banhos e das refeições fica adiado, uma vez que vamos fazer uma paragem de alguns dias em Jasper, a pouco menos de mil quilómetros e um dia de comboio de Vancôver. Partimos à tardinha debaixo de uma chuva miúda, que é mais regra que excepção no litoral da Colúmbia Britânica. Mal avançamos para o interior, no entanto, as nuvens desvanecem-se como por encanto e é já um pôr do sol multicolor que brinda o avanço do Canadiano por vales sulcados por cursos de água, entre baixas montanhas cobertas de florestas de coníferas.
É como assistir a um documentário de natureza, filmado em tempo real, particularmente deslumbrante, quando contemplado do primeiro balcão. Porque é assim mesmo que funcionam os salões panorâmicos de telhados envidraçados, a coroar os vagões-bar de cada uma das secções em que se divide a composição. O espectáculo merecia uma comemoração, mas temos os sacos cheios de comida de supermercado. Acabamos por recusar muito a contragosto a tentação de ir comer fora, que é como quem diz, ao vagão-restaurante. Nada de mais despesas, o nosso primeiro jantar no Canadiano será servido frio.
Serve-nos de consolo não estarmos sós na contenção orçamental. Toda a gente ou quase na nossa carruagem de segunda veio também munida de farnel e isso permite-nos uma quase chocante revelação sobre os hábitos alimentares dos canadianos fora de casa: sandes de carne com vários dedos de espessura, hambúrgueres king-size, toda a espécie de fritos e salgadinhos, gelados em balde e por aí adiante. Chega a ser notável que não haja enfartes em plena viagem.
Vem depois a distribuição de almofadas e cobertores e com ela uma constatação mais tranquilizante. Visto que o comboio não vai cheio, cada passageiro de segunda tem direito a dois assentos e pode ainda esticar as pernas nos da frente, privilégio que permite passar a noite em muito razoável conforto. De manhã, mal levantamos as cortinas das janelas e mesmo antes do pequeno-almoço, é uma correria em direcção à carruagem panorâmica. O comboio poderá deslizar como todos em terrenos de fraco declive, mas à sua volta as montanhas vão crescendo e agigantando-se, antecipando o espectáculo mais desejado.
Surgem os primeiros picos nevados, o que só pode querer dizer que estamos a entrar nas Montanhas Rochosas. Os olhos ficam suspensos na magia das alturas, até que outros passageiros, eventualmente mais calejados nestas paisagens, nos obrigam a descobrir outras maravilhas: os ursos pardos e outros mamíferos de grande porte que procuram comida à beira da linha, as dezenas de cataratas altíssimas e dramáticas, que se sucedem com tanta frequência que depressa se tornam banais.
A chegada a Jasper não deixa de ser surpreendente: a principal estação ferroviária das Rochosas é pouco mais que um apeadeiro. A própria cidade resume-se a meia dúzia de ruas largas e paralelas à linha de comboio, que existem apenas por causa dela. Voltamos costas à estação, para mergulharmos nos encantos naturais das Rochosas, sem sequer nos despedirmos da linha. Bem guardados no fundo da mochila vão os bilhetes para o próximo Canadiano, que aqui passa dentro de cinco dias.
Um namoro é sempre a três
Agora é a sério. Esperam-nos quase três dias seguidos sobre carris, a verdadeira experiência de reclusão ferroviária à moda canadiana. Aproveitamos o ar fresco e o sol morno de fim tarde, na esplanada da gare de Jasper, enquanto esperamos a carreira de Vancôver. A chegada do comboio em câmara lenta permite apreciar o que escapou quando primeiro viajámos lá dentro: a elegante imponência da locomotiva diesel-eléctrica à cabeça da composição, numa versão actualizada da mítica F40PH da General Motors (desde 1974), atrelada a uma segunda locomotiva com um Homem Aranha gigante, que parece acabado de aterrar em voo picado das Rochosas. Segue-se a cadeia de vagãos Renaissance, importados pela Via Rail depois de terem servido no Canal da Mancha, formando uma sinuosa serpente de ácido inoxidável, que se alonga até se perder na curva das montanhas.
Na hora do desembarque há um batalhão de gente com pinta de turista, mas também muitos canadianos de volta a casa, ou que pelo menos têm a família à espera. É evidente, em qualquer dos casos, que o Canadiano está longe de ser só para inglês ver. Mais à frente, em Hinton, uma vilória de bairros sociais, nas proximidades de Edmonton, uma pequena multidão de índios concentra-se na plataforma para se despedir de meia dúzia de adolescentes, que vêm a sair 24 horas depois em Sioux Lookout. Depois, em Saskatoon, embarca um matulão estilo Rambo acompanhado de dois miúdos, todos de cabelos à escovinha e vestidos de camuflados. Percebemos o visual, quando um dia e tal depois se despedem em Armstrong, um lugarejo que nem chega a ser uma aldeia, anunciado aos altifalantes do comboio como “um paraíso de caça e pesca”.
Não chegamos a sair do comboio em Edmont (23h), nem em Saskatoon (8h), duas das cidades maiores e mais emblemáticas do Canadá Central. O país é imenso, mesmo de comboio não se pode ir a todas, há capelas que têm que ficar para outras romarias. É com esta resignação que subimos à carruagem panorâmica para ao menos contemplarmos as silhuetas dos arranha-céus que iluminam a baixa de Edmont ao cair da noite. É um “postal” bonito, mas monótono, e depressa desviamos a atenção para a conversa entre um trintão de origem asiática e uma quarentona norte-americana, duas filas de cadeiras mais à frente.
Ele confessa que abandonou a namorada porque a dita era demasiado ingénua e tinha-se deixado levar por más companhias. Ela responde-lhe que um namoro deve definir-se como uma relação a três, porque há sempre Deus pelo meio. Os filhos adolescentes dela coram e riem à socapa, nós fazemos de conta que só ali estamos para ver passar os comboios. Cá em baixo, na carruagem-bar, o ambiente é mais carregado: uma mulher branca e cadavérica, de idade indefinida e olhar vítreo, avia latas de cerveja umas atrás das outras. Sentado em frente dela, do outro lado do compartimento, um rasta mulato de cabelos brancos e óculos escuros impenetráveis tamborila um ritmo no xadrez da mesa, respondendo com vagos “sim” ou “não” às súbitas explosões verbais da alcoólica.
De regresso à carruagem de segunda, por esta hora transformada em acampamento, reparámos noutros passageiros inusitados: um rapaz com o rosto todo crivado de borbulhas a ler mangas em voz alta, um tipo de meia-idade a debitar fórmulas de Matemática num caderno de duas linhas, um casal de góticos sem malas, com todos os seus pertences depositados numa rede de pesca. À noite o Canadiano é também um lugar estranho, mas não destituído de poesia: numa altura em que meio mundo já ressona nos assentos, um miúdo começa a tocar guitarra (com um braço engessado) e a cantar baixinho o que soa como uma dessas baladas de Neil “Harvest” Young que parecem conter toda a imensidão das Grandes Planícies.
Banjos e ukeleles
Acordamos justamente com a visão dessas planuras a perder de vista, cobertas de plantações de trigo, centeio e girassóis, uma horizontalidade apenas interrompida aqui e ali por silos de cereais, tão grandes que até parecem arranha-céus. Lá fora não se passa grande coisa, mas cá dentro, pelo menos nas carruagens da classe económica, é uma animação. Já toda a gente se conhece, mete conversa, ou no mínimo sorri de passagem. Poucos são os que ainda se dedicam à leitura, filmes só mesmo nos portáteis e para os miúdos, que também não demoram a ultrapassar a barreira da língua. O nosso está a fazer os melhores progressos no inglês, arranha inclusive algumas palavras em francês (o país é bilingue) e em contrapartida há uma turma inteira de garotos canadianos que vão sair desta viagem a saber uns rudimentos de português.
De manhã, no entanto, passo por um dos raros dissabores da viagem. Peço um café, só para fazer companhia aos amigos na carruagem-restaurante, e levo com um indiano que me grita em inglês macarrónico. Ou saio já ou pago cinco euros por uma mísera chávena de água suja. Explico-lhe calmamente que venho da Europa, onde é normal os estabelecimentos de comes e bebes terem livros de reclamações. Isto parece acalmar o empregado, que oferece ao miúdo uma esplêndida reprodução para montar do Canadiano, além de não me deixar pagar o café. Fico convencido, decido voltar para almoçar, até porque só custa 9€, em comparação com os 15€ em que fica o jantar.
A cozinha não está mal à base de pratos caseiros canadianos, grelhados de carne, truta e salmão fumado, empadões e crepes de vegetais mas a refeição vale sobretudo pelo ambiente. A carruagem-restaurante tem oito mesas cobertas de toalhas de branco imaculado, iluminadas por grandes janelas e enquadradas por biombos de vidro fosco trabalhado com motivos florais. Apesar do preço económico, usufruir de uma refeição neste espaço privilegiado produz uma sensação de luxo à moda antiga.
De regresso à classe económica, somos informados de que há um concerto prestes a acontecer na carruagem-bar. A banda é constituída por três jovens universitários com ukeleles e banjos, o cantor é tão alto que tem de se curvar para poder cantar de pé. Já se vê que este trio roots não está condenado ao sucesso, mas as canções são ternas e pueris, casando-se na perfeição com a paisagem de infinito rural. Em jeito de remate da sessão, o rasta mulato arranha um blues e, isso sim, é um momento inesquecível.
Invasão australiana
A cordialidade de estranhos, a embalagem do comboio, a serenidade da paisagem -às tantas já nem apetece voltar a pôr os pés em terra firme. Mas é isso mesmo que toda a gente deve fazer durante quase quatro horas, em Vinipegue. Ninguém é autorizado a permanecer no comboio, ninguém sequer na plataforma, para que o Canadiano possa ser reabastecido, limpo por dentro e lavado por fora, antes de atacar o último grande troço do percurso.
Os encantos da capital da província de Manitoba, no centro geográfico do Canadá, depressa nos resgatam à inércia, produzindo mesmo a adrenalina típica do que pena-não-conseguirmos-ver-mais. O primeiro espanto é a própria Union Station (1911), jóia Beaux-Arts desenhada por Warren e Wetmore, os mesmos da Central Station de Nova Iorque. Mais impressionante é o hall de entrada, forrado pelo célebre calcário dolomita da região, acabadinho de restaurar. A gare corta a baixa de Vinipegue mais ou menos a meio, abrindo de um lado a ocidente e no outro a oriente. A porta Este conduz a The Forks, principal espaço público da cidade, na confluência dos rios Assiniboine e Vermelho, onde ela foi fundada.
Os restaurantes do antigo mercado e os museus que cresceram em volta já fecharam, mas em contrapartida a malta das bikes e dos skates está a aproveitar os últimos raios de sol para dar espectáculo. Voltamos a atravessar a gare em sentido inverso, em direcção a Exchange District, o antigo centro económico e financeiro da cidade, constelado de arranha-céus, bancos e armazéns dos inícios do século XX. É uma paisagem urbana que lembra estranhamente Chicago e que está a passar por uma fase de renovação, com galerias de arte, teatros e sítios da noite a injectarem-lhe novo fôlego. Despedimo-nos de Exchange District, justamente quando as coisas se começam a tornar interessantes, mas, claro, temos um comboio para apanhar.
Quando abrimos as cortinas de manhã, somos brindados com nova mudança da paisagem. Continua tudo plano, mas os campos de cereais dão lugar a um terreno pedregoso, coberto de taiga ou floresta boreal, profusamente salpicada de lagos e charcos de todos os tamanhos e feitios. Não parece viver ninguém ao longo de centenas de quilómetros de linha, a maior parte das paragens não conhece estações, mas num sítio qualquer no cu de Judas entra uma turma inteira (mista) de miúdos australianos. Todos de sweats com capuz, calções e chinelos, a maior parte também com uma pedrada de caixão à cova. Metade larga logo a bater uma sorna, mas os que resistem não param de fazer e dizer disparates, havendo um inclusive que cai redondo com a cabeça dentro do caixote do lixo do vagão-bar.
Lá se vai o sossego e o romantismo do Canadiano, tanto mais que a paisagem também deixa de colaborar, tornando-se mais suburbana à medida que nos aproximamos da grande cidade. A última noite é a única a doer: paragens sucessivas com muitas luzes e barulho, alternando com acelerações radicais e safanões do veículo, certamente justificadas pelo par de horas que o comboio leva de atraso. Quando nos soltam na Union Station de Toronto (mais Beaux-Arts, aqui em colheita monumental de 1927) é para nos misturarmos com as falanges de executivos que saem dos comboios suburbanos a correr, a caminho dos escritórios. Tudo se passa como se a nossa longa viagem no Canadiano já se tivesse passado há eternidades.
Na Internet
Via Rail Canada