Fugas - Viagens

Nuno Oliveira

Salgas de peixe, sepulturas e uma basílica entre as dunas de Tróia

Por Alexandra Prado Coelho

Declaradas Monumento Nacional há 100 anos, as ruínas romanas de Tróia reabrem parcialmente ao público, valorizadas e com um percurso de visita. Alexandra Prado Coelho descobriram cruzes paleocristãs no meio das dunas e espreitaram para os tanques onde no passado se fez o célebre molho de garum, apreciado por todo o Mediterrâneo.

Caminhamos pela praia deserta com o mar à nossa esquerda, a deslizar suavemente sobre a areia. À direita, por entre as dunas, vão surgindo pedras, pequenos muros que em tempos terão delimitado espaços que hoje já não conseguimos identificar claramente. Casas? Tanques de salga de peixe? Uma necrópole? A entrada para um mercado?

As ruínas romanas de Tróia - cuja parte escavada vai, a partir do final de Julho, reabrir parcialmente ao público com um percurso de visita que permitirá conhecê-la em muito melhores condições do que até aqui - são provavelmente muito mais vastas do que a zona que acabámos de visitar antes de descemos até à praia. Todos estes muros que despontam entre as dunas e a vegetação são histórias por desvendar sobre o tempo em que os romanos aqui se instalaram para salgar o peixe e fazer o famoso molho de garum.

Inês Vaz Pinto, uma das arqueólogas ligadas ao projecto de valorização das ruínas (da responsabilidade do Troiaresort, que explora a zona), convida-nos a descer uma duna, em equilíbrio instável e agarrados aos arbustos (este é um desvio ao percurso da visita), para nos trazer até à praia e mostrar uma das descobertas mais recentes da equipa que aqui tem trabalhado. 

Passaria desapercebida a qualquer um, e durante muito tempo também aos arqueólogos. Era uma pequena mancha vermelha numa pedra muito tapada por areia e vegetação. Mas agora, depois do trabalho de limpeza e consolidação, vêem-se claramente duas cruzes vermelhas escuras, com braços que alargam nas pontas, pintadas sobre a pedra. Entre elas um pequeno nicho escavado. 

"É uma pintura mural paleocristã", explica Inês Vaz Pinto. "Estava sobre uma sepultura, possivelmente de alguém bastante importante. É possível que este local fosse um pequeno mausoléu, ou até uma pequena basílica. Não sabemos exactamente." Poderia ter continuado escondida, como provavelmente muitas outras estarão escondidas mesmo em frente dos nossos olhos. Seria preciso escavar muito em Tróia para perceber a dimensão do que um dia ali existiu. 

Mas, mesmo que não se escave mais (neste momento a prioridade não é essa e sim a valorização e preservação do que já está à vista, depois de um longo período de encerramento ao público), é já possível para os arqueólogos afirmar que as ruínas romanas de Tróia - que celebraram esta semana o centenário da sua classificação como Monumento Nacional - são "o maior complexo de produção de conservas e molhos de peixe conhecido no Ocidente romano".

Antes de termos descido à praia, Inês Vaz Pinto levara-nos precisamente a conhecer esses grandes tanques de salga de peixe, uma verdadeira oficina de produção para os romanos, que exportavam o peixe e o molho de garum para todo o império. O garum era, aliás, considerado uma das maiores delícias do tempo, e vendia-se caro para os banquetes de Roma. 

O clima de Tróia era ideal por causa do calor. "Julga-se que na época romana aqui fosse uma ilha", conta a arqueóloga. "Pessoas com meios terão instalado aqui estas oficinas. Não há outro centro conhecido com esta capacidade de produção". À nossa frente estendem-se os tanques fundos onde o peixe ficava em sal, sob o sol impiedoso. Vestígios encontrados em alguns deles parecem indicar que teriam mesmo servido para o garum, uma mistura de vísceras dos peixes com pequenos crustáceos deixada a marinar até se transformar no molho de sabor intenso. 

Tróia foi certamente um centro habitacional - a grande quantidade de necrópoles encontradas é prova disso. Mas descobriu-se apenas uma zona residencial, um pequeno núcleo de casas, possivelmente dos trabalhadores das salgas - chamam-lhes a Rua da Princesa, porque as primeiras escavações foram feitas por ordem da Infanta D. Maria, futura D. Maria I, ainda no século XVIII. 

Muito desapareceu entretanto. Nos séculos XVII e XVIII, vários estudiosos e curiosos passaram por Tróia (a "Pompeia de Setúbal", chamou-lhe o escritor Hans Christian Andersen) e os arqueólogos acreditam que terão desaparecido do local estátuas, colunas, inscrições, que teriam ajudado a saber o que era realmente esta zona. 

O que se sabe é que as salgas terão tido um primeiro período de funcionamento, nos séculos I e II, depois uma fase de paragem, e um segundo período a partir da segunda metade do século III, altura em que os donos dividiram os grandes tanques em unidades de produção mais pequenas.

Será então, no século III, que é criado um mausoléu, que hoje pode ser visitado, com várias sepulturas no seu interior. "Não tem muita lógica a construção de um mausoléu aqui, mas a verdade é que havia uma apetência para enterrar os mortos próximo". E, confirmando isso, as pequenas sepulturas espalham-se pelo topo de uma duna, junto às salgas. 

Do outro lado estão as termas, abastecidas com água de um poço, conduzida por um pequeno aqueduto, e com uma dimensão considerável, incluindo uma grande sala de entrada (a "palaestra"). Mais à frente há uma necrópole com sepulturas de mesa (comuns no Norte de África, mas raras na Península Ibérica), com as formas arredondadas onde as pessoas se reclinavam a comer junto aos seus mortos. 

Mas se as salgas são mais antigas e de uma dimensão impressionante, o que deixa muitos visitantes de Tróia deslumbrados é uma construção um pouco mais recente, mas mais rara - Inês Vaz Pinto diz mesmo que não há na Península Ibérica outra deste tipo com o mesmo grau de conservação: escondida por detrás de um palacete, por debaixo de uma estrutura de protecção, e impossível de ver a olho nu, está uma basílica paleocristã. 

Entramos e, apesar da estrutura de protecção (que no futuro irá ser retirada) não nos permitir perceber todo o espaço de uma vez só, vemos imediatamente as paredes que nos rodeiam, cobertas de frescos. Que espaço era este, quando surgiu, como surgiu? Também aqui ainda se sabe muito pouco. Justino Maciel, autor de "Antiguidade tardia e paleocristianismo em Portugal", datou-a de finais do século IV, inícios do V, em parte devido ao estilo das pinturas, e em parte à orientação e à ausência de inscrições nas sepulturas. 

"O chão por baixo dos nossos pés está cheio de sepulturas", diz Inês Vaz Pinto. Por enquanto foram novamente cobertas por terra, mas a ideia é colocar sobre elas um estrado de vidro para que possam ser vistas. As paredes estão cobertas de formas geométricas - octógonos, círculos, símbolos. Vê-se claramente um cântaro de onde jorra água, e que ajuda a identificar o espaço como cristão. Mas o símbolo mais evidente - um crísmon, que se usava na época de Constantino - acabou por desaparecer, depois de ter sido registado em desenho pelo arqueólogo A.I. Marques da Costa (1857-1933).

No final de 2006 as marés estavam a ameaçar a basílica, mas um projecto de enchimento de areias conseguiu travar o processo. Encostada ao Palácio Sotto Mayor, com as paredes assentes nos velhos tanques de salga e aproveitando parte de uma habitação dos séculos II ou III, a basílica (que para já pode ser visitada a pedido, e com grupos relativamente pequenos) irá renascer numa próxima fase da revalorização. 

Numa colina logo atrás ergue-se a pequena capela de Nossa Senhora do Rosário de Tróia - a prova de que, diz a arqueóloga, "há uma continuidade nos lugares sagrados". Podemos não saber porquê, podemos já não ser capazes de dizer quem ali viveu ou de que forma. E, no entanto, continuamos, séculos depois, a vir rezar aos mesmos sítios.

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