Fugas - Viagens

Mauricio Lima/AFP

Do Brasil ao Peru: Welcome to the jungle

Por Cristina Ferreira

Pode uma viagem maravilhosa pelo lado menos conhecido da Amazónia ficar marcada por uma derradeira imagem de uma tartaruga esventrada numa banca do concorrido e nauseabundo mercado peruano de Belen, em Iquitos? Poder, até pode, mas não devia. Cristina Ferreira explica porquê

Quando entrei no avião em direcção a Manaus, no Brasil, com escala em Fortaleza, tinha uma vaga ideia do trajecto que iria percorrer nos sete dias seguintes. Integrava uma comitiva de jornalistas convidados pelo grupo Douro Azul para visitar a Amazónia. A empresa, que explora cruzeiros no rio Douro, pretendia dar a conhecer o percurso fluvial (dois mil quilómetros) entre Manaus, Brasil, e Iquitos, no Peru, onde projecta iniciar actividade em 2011 com três navios orientados para o turismo.

Sabia que não era uma exploradora genuína daquelas que se embrenham na floresta, não era uma viajante de espírito aventureiro, e, também, não estava ali como turista. Sendo jornalista de temas económicos, sensível aos números, procurei assumir o papel de cronista. Preparei-me, assim, com grande afinco, para coligir informações, desenhar detalhes, anotar sensações. Munida de repelente, protecção para a chuva e mapa plastificado, não larguei o meu caderno de capa preta.

Viagens a outras civilizações servem para aprendermos. Será que conseguiria? Chegámos a Manaus já de madrugada. A expectativa era grande, pois trata-se da capital da Amazónia brasileira, edificada nas margens do rio Negro, onde dezenas de afluentes se juntam ao Solimões (designação do Amazonas entre Manaus e Tabatinga), formando um labirinto de ilhas, canais e pequenas penínsulas.

Esperava a cidade a fervilhar de espírito tropical. Ainda assim é engraçada. Situada a três graus da linha do equador, Manaus funciona como um grande entreposto entre os oceanos Atlântico e o Pacífico, ambiente que se respira no grande e movimentado Hotel Tropical, uma antiga construção militar.

O primeiro contacto com a realidade amazónica ocorreu no centro de instrução de guerra na selva equatorial. Protegido no seu território do zoo militar, o maior felino das Américas sentese observado. Mexe a cabeça em sinal de alerta, levanta-se e, num enorme e enfadado bocejo, abre as mandíbulas, deixando à mostra o seu instrumento predador. De seguida, altivo e solitário, espraia-se no chão, para logo depois regressar à posição inicial. É o Cabral, a onça preta baptizada com o nome do navegador português que descobriu o Brasil.

Nos jardins luxuriantes do quartel chefiado por George da Silva Divério vivem 170 espécies exóticas, muitas em risco de extinção e na sua maioria apreendidas a negociantes ilegais de animais tropicais. À solta vêem-se frangos e galinhas a cacarejar. Vão servir de jantar às anacondas e aos jaguares.

O zoo é um dos pólos da cidade que remete o turista para a biodiversidade da flora e da fauna equatorial. O coronel explica que um dos seus objectivos é “sensibilizar os soldados para a necessidade de preservar os animais que vivem na selva”.

Perseguir o narcotráfico e os contrabandistas da fauna tropical faz parte da missão do batalhão chefiado por George Divério, que tem como mascote a onçapintada. Em todo o caso, muitos ambientalistas acusam os militares de serem um braço protector dos madeireiros.

Estamos agora em trânsito por um canal do rio Negro, o grande afluente do rio Solimões, onde avistamos um pequeno hotel de charme flutuante. A dada altura, Marco, o nosso guia brasileiro de ascendência portuguesa e sefardita, aponta para uma palmeira amazónica: “Estão vendo como é bacana!” Empoleirado nos ramos de um açaí está um tucano. Marco nota que quando ele canta é porque vem aí aguaceiro: “O tucano não bebe água do rio, só mesmo da chuva.”

De volta a Manaus, somos surpreendidos pelas margens do rio em escarpa, descarnadas pelas grandes cheias e pela precipitação diária. À mostra fica o solo de argila vermelha, rico em ferro, mas pouco fértil.

No dia seguinte dirigimonos à zona alta de cidade, a 30 minutos de distância do centro, e onde se encontra o Museu de História Natural. A vedeta é o Arapaima Gigas, conhecido por pirarucu, o maior peixe de água doce do mundo (chega a pesar 400 quilos), e uma especialidade gastronómica da Amazónia. Mau sinal! Os investigadores estão preocupados, pois cerca de 80 por cento do pirarucu consumido pela população é ilegal.

Pouco depois encaminhamonos para o frenético mercado de Manaus, que tem porta aberta para o porto da cidade. Um local de trânsito de todo o tipo de mercadorias e de passageiros, pois vastas zonas da Amazónia só são alcançadas por via fluvial. Estamos em hora de ponta e os velhos navios ancorados no cais estão tão próximo uns dos outros que vemos as tripulações a jogar às cartas entre si sem necessidade de abandonarem os postos de trabalho.

A visita à capital do Amazonas está a terminar. E, ao terceiro dia, dirigimo-nos para a fronteira. Estamos ansiosos por chegar a Tabatinga.

Partida para Tabatinga

A bordo de um bandeirante (um Embraer 110), de 14 lugares, conhecido pelo “jipão” da selva, preparamo-nos para sobrevoar o cume da floresta amazónica. O trajecto levará apenas 3h30. Em linha recta, são 1105 quilómetros. Mas o rio é cheio de meandros e a distância fluvial entre Manaus e a fronteira é de 1607 quilómetros. O barco de carreira demora entre cinco e seis dias. De avião avistam-se lagos escuros, que no preíodo da seca funcionam como refúgios seguros do pirarucu e do peixe-boi, mamífero aquático herbívoro de 2,5 metros. Nessa altura, o caudal do rio diminui e as águas dos pântanos evaporam-se, deixando sem abrigo os pequenos peixes.

À medida que nos afastamos de Manaus percebemos como a paisagem é grandiosa, mas monótona e claustrofóbica, pois as folhas das árvores formam um enorme manto verde que não deixa ver nada para baixo.

De avião temos uma perspectiva única do que pode acontecer à selva se não for defendida. As estreitas veias de asfalto e de argila que desembocam no Solimões não são mais do que estradas de devastação da fauna e da flora, a que os locais designam de espinhas de peixe.

Como é que se trava o “desmatamento” da Amazónia? “Olha, já está a acontecer”, diz Marco. E, sem responder explicitamente, conta uma pequena fábula sobre um beija-flor que, ao aproximar-se de um incêndio florestal, abriu o bico e cuspiu para cima das labaredas. “Se todos cumprirmos a nossa parte, o mundo ficará melhor.” A meio da viagem, em plena selva, a aeronave aterra na pista de Tefé para se abastecer. O calor aperta e aproveitamos para beber café num pequeno bar com porta aberta para a pista. Há no ar um silêncio florestal, como se nada acontecesse de importante. Nada de mais errado. Na véspera, um barco de carreira, que levava a bordo 74 pessoas, naufragou ali perto. O jornal O Solimões informa ainda que na véspera as populações indígenas foram para a estrada do aeroporto reclamar a demarcação das suas terras.

Uma passagem pela Isla de Los Micos

Faltam 10 minutos para chegarmos ao nosso destino. O Solimões, que se alimenta do degelo dos Andes e da precipitação diária, está prestes a recuperar o nome de baptismo.

O avião estremece. Lá fora o céu está limpo. Mas àquela hora a temperatura é alta e a subida do ar quente muito húmido dá origem a turbulência. São 13h50 quando o “jipão” aterra no pequeníssimo aeroporto internacional de Tabatinga. Mais do que uma povoação de fronteira, é um posto militar. Na sua única pista de asfalto, está pousado um aparelho a jacto da força aérea brasileira. “Vê aquela saliência, em baixo? É uma sonda que serve para detectar o narcotráfico”. Os aviões patrulham a selva à procura de negociantes ilegais que, muitas vezes, usam as rotas dos madeireiros.

Eis-nos no centro do trapézio amazónico, conhecido por triângulo da coca, por ser a porta de entrada de estupefacientes e de todo o tipo de negócios ilícitos. É também uma zona onde a guerrilha colombiana opera. Motivo para alarme? Nem pensar. O grupo combina vontade de aprender com experiência. A viagem foi planeada por Mário Ferreira, da Douro Azul, com a ajuda do seu número dois, o norte-americano Alberto Albertini, treinador da primeira equipa portuguesa de futebol americano.

O ex-marine desempenhou funções de chefia militar no Panamá no tempo do ditador Noriega, que já este ano foi extraditado pelos EUA para França, acusado de vários crimes. Por isso, se havia riscos, esperava-os controlados.

Passamos pelos guardas brasileiros e dirigimo-nos para o lado colombiano. A passagem de Tabatinga para Letícia fazse sem procedimentos, com os dois países a partilhar a mesma avenida. Apenas um marco de pedra branca indica que deixámos para trás o Brasil. Dá para ver que Letícia é uma cidade movimentada, tipicamente latinoamericano.

As casas são baixas, com lojas e restaurantes, e as ruas perpendiculares vão desembocar ao rio. À primeira vista, Leticia até parece mais organizada que Tabatinga. Mas na alfândega não há ninguém para nos receber. Acabamos por partir deixando os passaportes ao guia local que nos vai acompanhar. Os documentos? “Foram para o Peru”, informa Elvis, um índio colombiano de 27 anos, que fala português.

Bastam cinco minutos para chegarmos ao porto de Letícia. Numa balsa de fibra de vidro aberta de lado e coberta com um toldo de plástico, dirigimo-nos para o parque natural de Amacayacu, património do Estado colombiano.

Com 293 mil hectares, a reserva natural ostenta uma enorme diversidade de fauna (jaguares, anacondas, antas, entre outros animais) e de flora. Até lá são duas horas a navegar pelo maior rio do mundo em extensão e caudal. Uma serpente de água doce.

Não me apercebo logo, mas, à medida que nos desviamos de Letícia, afastamo-nos da urbanidade. Ao fim de alguns minutos escrevo no meu caderno de capa preta apenas uma palavra: incrível! Ao lado desenhei dois rapazes indígenas, de pé, numa jangada de troncos de madeira e usando como remos duas varas.

Tão tranquilamente! Dá para sentir que os nativos são gente de silêncio. Ou por não falarem as línguas oficiais dos seus países, ou, simplesmente, porque é da sua natureza.

A caminho de Amacayacu paramos na Isla de los Micos para almoçar. E era aí que eu julgava que se encontrava o posto de controlo peruano onde recuperaríamos os nossos passaportes. Em vez do guarda somos recebidos por araras de penas coloridas. Os documentos? “A ilha é colombiana, não pertence ao Peru”, corrige Elvis. Como? No mapa o ilhéu surge desenhado do lado peruano do rio.

Fico a saber que foi comprada por um colombiano, razão pela qual, por aquelas bandas, pode ser factor de atrito. E os passaportes? “Serão entregues no dia seguinte em Santa Rosa, na alfândega peruana.” Ao almoço temos a companhia de grandes papagaios de papo encarnado e asas azul-turquesa e de um tucano de bico amarelo. Passeiam-se pelas mesas à espera de um momento de distracção para atacarem o que sobrar da refeição.

À nossa frente, pequenos macacos movem-se impacientes, mal pondo os pés no chão. Surgem de todo o lado, pois aguardam a oferta de bananas. São ginastas acrobatas que saltam de galho em galho a grande velocidade. Por vezes, desatinados, chocam entre si. Mas ali o comediante principal é mesmo o forasteiro que se faz fotografar na sua companhia.

As populações indígenas ribeirinhas estão já contaminadas pelo espírito mercantilista do turista e à saída uma tribo local despede-se dançando e cantando. A ilha é engraçada. Mas a actuação dos indígenas sai forçada.

Amacayacu, a selva colombiana

Vamos agora em direcção à margem colombiana do Amazonas, para deixar as bagagens no lodge em Amacayacu. Vinte minutos depois entramos numa barcaça a motor de madeira. A tarde vai ser passada num braço do rio à pesca de piranhas.

É-nos entregue uma cana de bambu com um fio de nylon que leva preso no isco pedaços de carne de frango e de vitela. Agitamos as canas com vigor, mas a aventura não nos paralisa os músculos, pois por ali não se vislumbra rasto de peixes comedores de homens.

Ao entardecer, o leito do maior rio do mundo parece mais largo e luminoso e, nalguns pontos das margens, a floresta reflecte-se na água. Chegou o momento de aves de muitas cores saírem das copas das árvores, aonde se abrigaram durante o dia, e, em bandos, partirem em busca de alimento. A cacofonia é total. Junto à orla do rio, solitário, um gavião de bico branco aguarda também o momento de caçar.

A barcaça muda de direcção para regressar ao lodge. A meio do trajecto encontramos na brincadeira golfinhos cor-derosa (botos), que ocupam um lugar nos mitos locais. Elvis, da tribo Ticuna, acredita em botos namoradeiros, que surgem nas festas da comunidade na figura de um desconhecido, “que vai seduzir a mulher mais bonita da aldeia”.

Na Amazónia o dia tem 12h00, tantas quanto a noite, que cai subitamente. As matas afundam-se na escuridão total. São 18h00 e o rio está iluminado pela lua. Os sons são exuberantes. Há assobios agudos no ar, há pirilampos a brilhar no arvoredo, cigarras a cantar.

O guia propõe que antecipemos o safari nocturno, previsto para depois do jantar, e partamos em busca de jacarés. A piroga desliza bem na água e revelase ágil a passear entre canais.

Pára. Levantado na proa, Elvis movimenta a luz do foco em círculos, ao mesmo tempo que dá indicações precisas ao piloto para este manejar o leme. Um instante.

O que se passa? Em silêncio, o índio faz sinais repetidos indicando um dos lados do pantanal. Depois, debruça-se... Há emoção no ar e ruído na proa. Desaparece do nosso radar. Pronto, caiu à água! Puro engano! Ergue-se ligeiro e presenteia-nos com uma cria de crocodilo com pouco mais de 70 centímetros de cumprimento. Elvis ergue o “troféu” preso com firmeza pelo rabo e pelo pescoço. Os flashes das máquinas encadeiam-no. O pequenote resiste. Mas é ele o actor em actuação e passa de mão em mão. No final é devolvido ao habitat natural. Ao jantar, já no lodge de Amacayacu, Elvis diz que foi na sua esteira porque os olhos do animal são cor de laranja fluorescentes e cintilam no meio da escuridão. Para a maioria de nós, estar em terra firme na selva equatorial é uma originalidade.

Depois da refeição, sentamo-nos cá fora e percebemos que ali as noites são mesmo especiais. O céu nocturno tropical parece veludo negro, salpicado de constelações. Lá em cima gira, gira a Via Láctea.

Bem-vindos ao mundo delirante dos insectos! Os nossos olhos e ouvidos de pouco servem na escuridão da mata, um território dominado por animais noctívagos bem apetrechados de radar e visão nocturna. São mosquitos, besouros, moscas, percevejos, libélulas, mariposas e cigarras, alguns com mais de vinte centímetros.

Já passaram mais de quatro horas depois de o sol se ter posto. Finalmente vamos dormir. O grupo reparte-se por duas cabanas de tectos altos, construídas em madeira e assentes em estacas, o que as protege das cheias do Inverno, quando as águas do Amazonas galgam as margens e se espalham por centenas de quilómetros, alterando completamente o leito natural do rio. As janelas, tal como as camas, estão protegidas por redes mosquiteiras, que antes de nos deitarmos vaporizamos de repelente. No tecto há ventoinhas.

Acordamos às 4h30 do dia seguinte para assistir ao nascer do sol tropical que nasce daí a uma hora. À saída do lodge, os índios que trabalham no parque colocam-nos capacetes e cintos com ganchos de segurança.

Eis-nos chegados ao complexo de desportos radicais de Amacayacu. À nossa frente há uma castanheira amazónica com 45 metros de altura escalada por lianas. A meta é alcançar o topo. Ou subindo a pique por uma escada de metal fixa no tronco rectilíneo com mais de dois metros de diâmetro, ou trepando por uma corda. No cimo há passadeiras instáveis protegidas por redes grossas, que se ligam a um outro tronco igualmente gigante e centenário. Estamos cheios de adrenalina e dispomo-nos a galgar até à copa da castanheira. Eu tento subir as escadas. Chego a meio do percurso e olho para cima, não vejo fim à vista. Olho para baixo e a cabeça roda. Grito: “É melhor virem buscar-me!” Quem me segue resmunga, mas não tem outro remédio e recua. Uma índia alcança-me e solta os ganchos de segurança presos a cordas. Quando ponho os pés no chão tenho náuseas. Só me resta tirar a conclusão: não estou apta. Uma aventura exige preparação.

Já se sabe que os mosquitos não são uma espécie em declínio. E, àquela hora, ameaçam os forasteiros. Ao contrário das primas abelhas, que se levantam pela manhã, lançam-se em aventuras desde o crepúsculo até ao amanhecer. O ambiente quente e húmido é propício à doença transmitida pelo irrequieto animal.

Ali não há lugar para desleixos: tomar o anti-palúdico e a vitamina B, besuntar com repelente as partes do corpo descobertas, usar chapéu de dia ou de noite, beber água engarrafada, nunca pedir gelo, não pôr os pés no charco para evitar a entrada do candiru. Um peixe minúsculo, de 22 centímetros, mais temido que a piranha. Atraído pelo odor da urina, ferra os dentes no corpo do forasteiro descuidado, a quem provoca danos irreparáveis.

Dentro da selva, o ambiente é quase hostil, com a temperatura a rondar os 34 graus e a humidade os 100 por cento. O ar é abafado e pegajoso. Já sabemos que a manhã nasceu radiosa, mas as copas das árvores de grande porte estão tão juntas que impedem a passagem da claridade.

Ao contrário do que acontece na savana africana, no interior equatorial não há espaço nem luz para a vegetação rasteira prosperar. Por ali não todos os animais são de médio e de pequeno porte.

A flora é densa e dispõe-se em estratos. Há orquídeas (plantas epífi tas), que se fixam nos troncos, nos galhos e nas folhas sem as parasitar. Um cenário pintado em tons de verde e de castanho. Acontece que, inesperadamente, uma enorme borboleta azulturquesa reluzente vem quebrar a monotonia. É de novo uma sensação incrível.

Mais à frente, o resto do grupo estás prestes a deslizar em rappel até ao chão Dirigimo-nos para o local da descida, procurando evitar enterrar os ténis na lama e tropeçar nos sulcos formados por grandes raízes (a decomposição das matérias minerais e orgânicas é tão acelerada que é na camada exterior do solo que encontram alimento).

Em simultâneo debatemo-nos com um labirinto de troncos de vários diâmetros ligados por grossas cordas de fibra (lianas), iguais às usadas pelo Tarzan para se agarrar e voar pela floresta. Por aqueles lados há uma verdade quase indesmentível. Na selva, mesmo os mais distraídos estão atentos a todos os detalhes.

Quem assobia? O índio estica os pés, levanta a cabeça e aponta para um galho. Ela ali está, parcialmente escondida na ramagem, sem se deixar ver completamente. Emproada, uma pequena ave castanha de pernas longas e pés compridos parece ignorar-nos. No topo da folhagem, no meio do silêncio, alguém chama. Um dos nativos puxa pela corda e começa a trepar. É mestre da escalada! Eis senão quando se ouve um toque. Inesperadamente o índio interrompe a subida e atende o telemóvel.

Elvis diz que os índios ribeirinhos acreditam num espírito protector a que chamam Curupira, que os conduz na floresta. “A selva dá-nos tudo o que precisamos para vivermos, mas tem de ser respeitada.” Por volta das sete horas estamos a tomar o pequeno-almoço e prestes a partir para o Peru.

A caminho da amazónia peruana

Manaus, Tabatinga, Letícia e Amacayacu ficam para trás. Navegamos numa lancha rápida, de motores potentes na popa. Uma cápsula, longa, estreita de tectos baixos. Tem duas fileiras de bancos forrados com panos de algodão de flores amarelas e castanhas. Se abrir a janela chego com a mão à água.

Apresentam-nos um novo guia. Diferente dos anteriores, o brasileiro é meio português, meio latino-americano, o colombiano é nativo, o peruano tem traços filipinos.

Aproximamo-nos de Santa Rosa do lado do Peru onde estão as autoridades. Carlos informa: “Aqui viveu Che Guevara quando andou pelo Amazonas.” O coração pula! Nuns escassos 150 metros, o rio toca em três países, o Brasil, a Colômbia e o Peru. Os guardas e o guia trocam palavras de circunstância.

A povoação é, como as restantes, muito pobre. E apesar de o solo ser pouco fértil, vêem-se junto ao cais vendedoras de bananas, de cocos peludos e de outros frutos. Mas o que por ali há mais são crianças a brincar. Algumas meninas distinguem-se das outras por usarem saias compridas e um lenço preto atado à volta da cabeça e solto atrás. O guia explica que pertencem a uma seita que desceu dos Andes, e que procura seguidores entre os nativos. Os seus membros, conhecidos por “israelitas”, vestemse como personagens bíblicas e são alvo de desconfiança por parte das autoridades. Já dentro da lancha, pergunto: Então, os passaportes? O novo guia informa: “Vão recebê-los em Iquitos.” Quem diria?

Até à povoação de Pevas são seis horas sem paragens. Trezentos e oitenta quilómetros a subir o rio ondulado, 120 quilómetros em linha recta. Esqueço o cafezinho da manhã. Num momento de distracção, calço as havaianas, volto a colocar repelente, e sento-me na proa à conversa. Em plena luz do dia não há mosquitos, pois não? Engano! Por triste ironia, só a mim me são fiéis.

De vez em quando a lancha pára para limpar a turbina, pois a água está suja de galhos, de capim e de detritos. Na Amazónia os rios e os seus canais são as únicas frechas naturais da floresta por onde se movimentam os seus habitantes.

Ao longo do percurso fluvial o céu limpo vai assumindo várias tonalidades. De quando em quando vê-se um índio a remar na sua piroga e uma palafita isolada.

Estamos em trânsito em frente da povoação de San Pablo do Loreto. O guia volta a assinalar: “Nesta vila trabalhou o Che numa leprosaria.” E foi quando aqui viveu que o futuro médico ganhou ânsias de revolucionário.

Navegar na maior auto-estrada fluvial do mundo inspira respeito e admiração, mas não receio. O rio é largo e nele domina a verticalidade, o que provoca relaxamento. Assim é o Amazonas.

Mas quando olhamos para as margens engolidas pelo rio e pela vegetação cerrada imaginamos a selva escura e abafada, o que nos desencoraja. Nalguns trechos da viagem, parecem mesmo manter-se há séculos impenetráveis.

Há tribos no meio da selva, que nunca se cruzaram com outros povos. São as guardiãs das tradições antigas. Antes da chegada dos navegadores, os índios eram reis na Amazónia, onde então viveriam cinco milhões de nativos. Hoje não ultrapassam os 300 mil.

Já lá vão muitas horas desde que deixámos a Colômbia e a paisagem está a mudar, pois a floresta é agora menos densa e há bosques de palmeiras inundados. Estamos a aproximar-nos do Pacífico, o que pode conduzir a alucinações. A meio caminho de Iquitos, paramos na localidade de Pevas. Uma enorme construção, a fazer lembrar um pagode japonês, revela-se no topo de uma colina. A casa cinzenta de estruturas sobrepostas, de madeira e zinco, tem múltiplos beirados e varandas.

Que edifício é aquele? “É onde vive o pintor Grippa, com quem vamos almoçar.” Subimos por um atalho estreito de argila lamacenta, entre porcos e vegetação. No interior, há grandes mesas de madeira, cadeiras, estantes e, claro, telas penduradas. Confortável e estrito em mobiliário. O almoço é delicioso. Há jacaré frito, pirarucu, tomate e palmitos. Tangerinas à sobremesa.

Entretanto, a meio da refeição, chega a tripulação do hidroavião da Força Aérea peruana que nos irá transportar até à capital do Loreto: Iquitos. Um ponto de passagem do Atlântico para o Pacífico. Antes de levantar voo, com as portas ainda abertas, o aquecimento dos motores eleva a temperatura para níveis sufocantes.

A maior cidade da Amazónia peruana

Finalmente, Iquitos. Finalmente, entregaram-nos os passaportes. Estamos agora no centro urbano da amazónia peruana, aonde só se chega de barco ou de avião. Até Lima, capital do Peru, são nove dias a navegar. À primeira vista, e apesar dos seus cerca de 400 mil habitantes, a cidade parece pequena, com a maioria dos edifícios a não exceder os dois pisos.

Mal chegamos a Iquitos há um dado que salta à vista: a quase ausência de automóveis. Nas ruas encontramos uma espécie de riquexós asiáticos, de três rodas, puxados a motor, todos eles com matrículas japonesas. Barulhentos e coloridos, cumprem a função de moto-táxis, e circulam a grande velocidade, transformando o trânsito num caos e o ar irrespirável. Mal o sinal fica vermelho, posicionam-se na linha de partida de modo desordenado.

Ainda é de dia mas já se começa a ver a lua. É tempo de convergir para o Malecón Tarapacá, a avenida com varanda para o rio, com muitos restaurantes e esplanadas onde se come jacaré frito, ceviche (peixe cru cozinhado com limão e picante), ou palmito desfiado em tiras finas e largas como se fosse fettuccini.

Quando a noite cai, a primeira sensação é de estarmos numa metrópole cheia de luz. As casas edifi cadas no auge da era da borracha fazem lembrar os tempos coloniais. Mas a cidade é tax-free, com casinos de máquinas de porta aberta e um deles chamase Macau. O ambiente é relaxado e faz lembrar Saigão. No mapamundo encontramo-nos agora mais próximo do Japão do que de Portugal.

O isolamento a Iquitos imposto pela bacia do Amazonas e pela cordilheira dos Andes favoreceu o cruzamento dos imigrantes com as populações indígenas, o que explica os rostos exóticos que ali se vêem.

Carlos conta que após a II Guerra Mundial se fixaram na cidade muitos japoneses, mas autoridades peruanas “recusaram a ida dos alemães”. Em Iquitos, diz, vive ainda uma grande comunidade chinesa, que justifica a existência de mais de 100 restaurantes asiáticos.

Quem vai a Iquitos não pode deixar de visitar o mercado de Belen. À entrada existe um pequeno bazar onde se vende uma pomada laboratorial à base de enxofre e que é utilizada por quem vive na selva para secar os ferimentos. Um unguento espesso e branco que coloco abundantemente nas picadas dos mosquitos depois de salpicar os braços e as pernas de anti-séptico.

O que é mais procurado na sua banca? “Os afrodisíacos”, responde a vendedora, indicando uma vasta variedade de garrafas expostas nas prateleiras. Levanta-se e aponta. “Destinam-a a curar a impotência masculina.” E funciona? “Ah, sim, claro!” Os nomes são sugestivos: “Siete veces sin sacarla”,”Levántate pájaro muerto””, “Rompe Calzón”. Muitos fregueses? “Sim, a maioria é de cá.” Há ainda sacos com sementes, raízes e ervas medicinais, amuletos feitos de dente ou de unha de bicho tropical.

O mercado é um grande labirinto de passagens estreitas, cobertas com bocados de plástico colorido, e cheia de pequenas bancas. Noutro corredor, estão duas mulheres a enrolar tabaco tropical em mortalhas. Logo depois vemos os vendedores de peixe, de carne e de fruta, que, sem pudor, atiram os despojos para o chão. Em cada esquina há lixeiras a céu aberto e o cheiro é nauseabundo. Por isso, a meio da manhã já pairam abutres no ar, bem à vista de quem passa.

É verdade que é bom passear com companhia, mas quando viajamos pela Amazónia encontramo-nos connosco próprios. As minhas amigas tartarugas, parceiras de brincadeiras em criança, que eu imaginava abrigadas em santuários, estão afi nal à mercê de predadores. Subtraídas das suas carapaças protectoras, esventradas, ali estão sem vida.

Os investigadores têm alertado para o comércio descontrolado da carne de tartaruga, um pitéu rico em proteínas e em ácidos insaturados, que delicia os povos tropicais. Uma espécie que dentro de 100 anos pode desaparecer. Camilo Valenzuela, no seu livro Amazónia, denunciou que o mercado esconde animais enjaulados, destinados ao comércio ilegal.

Ao lado do mercado existe o bairro fluvial de Belen, um intrincado de canais onde se erguem quatro mil palafitas, conhecido pela Veneza peruana. Mas não é mais do que uma grande favela onde vivem cerca de 10 mil habitantes que se movimentam em canoas.

Para além da Igreja e da junta de freguesia, também as escolas e os restaurantes foram construídos sob estacas. Há habitações de dois andares (cujo uso depende das cheias), que convivem com outras mais baixas, e que a subida da água coloca ao mesmo nível. É ali que tudo se passa. Nos braços do rio há vendedores ambulantes a negociar produtos locais e barcaças/restaurantes com mulheres a cozinhar em panelas de alumínio em cima de fogareiros acesos.

Chegou o momento de visitar os Bora. Até à aldeia caminhamos por um trilho lamacento, ladeado de vegetação, onde se vêem plantações de mandioca, que é a base da alimentação dos ameríndios, e uma das poucas culturas que prospera no terreno ácido e pouco fértil da Amazónia.

Somos convidados a entrar na maloca, a grande cabana oval onde a tribo faz vida comunitária. Uma estrutura de madeira com duas entradas, sem divisórias, coberta de folhas de palmeira ligadas entre si por lianas e sustentada em quatro troncos com figuras desenhadas a preto e branco. Também os Bora veneram a anaconda, ali representada num tronco disposto no chão.

O chefe da aldeia distingue-se por ostentar na cabeça uma coroa de penas coloridas. No seu dialecto, traduzido pelo guia, explica que a tribo vive da pesca, da caça, e, mais recentemente, da venda de artesanato e das visitas dos turistas. Recebem-nos em trajes tradicionais: um pano à volta dos quadris, colares feitos de penas e de sementes a tapar o peito. O dia passou depressa, mas ainda há tempo para uma visita a um pequeno zoo, onde é possível agarrar em viscosas anacondas e abraçar preguiças indolentes.

O fim da viagem

Estamos a chegar ao fim da viagem. Mas antes impõe-se a ida à livraria local, o que nos leva ao acaso ao Centro de Estudos Teológicos da Amazónia (CETA) dirigido pelo padre Joaquin Garcia. No hall está pendurada uma tela de pano com imagens que reproduzem uma paisagem minhota. Um trabalho oferecido há 100 anos por uma família portuguesa que ali viveu, quando Portugal era o terceiro parceiro comercial de Iquitos. Rosa, de traços indígenas, é funcionária do centro, e revela ser neta de portugueses de Ovar. No cemitério da cidade há uma zona reservada a portugueses.

Poucas horas antes de embarcar para Lima, para apanhar o avião para a Europa, há quem pondere se devo visitar o hospital. Não há problema, vou telefonar para Lisboa. Mas não escapo ao antibiótico, ao anti-histamínico e anti-inflamatório, pois temos pela frente muitas horas de viagem.

Foram sete dias vividos intensamente. Mas regresso com perguntas sem resposta. Podese gerar riqueza na floresta de terras pouco férteis sem quebrar o equilíbrio do habitat? Pode-se melhorar a vida das populações locais sem esmagar as tradições? Para o padre Joaquin, que chegou a Iquitos há 42 anos, só há uma maneira de o fazer: não incorporar nos ameríndios o modo de vida ocidental e adoptar um modelo de desenvolvimento endógeno, que não arrase com a memória antiga e a auto-estima dos nativos.


INFORMAÇÕES

Rio Amazonas
O rio Amazonas é o maior rio do mundo em extensão e caudal. Tem 6.937,08 quilómetros, mais 140 quilómetros do que o Nilo. A área da bacia hidrográfica é de 7.000.000 quilómetros quadrados. Atravessa o norte da América do Sul e a grande floresta amazónica e toca em três países, Peru, Colômbia e Brasil. Nasce no sul do Peru, na parte ocidental da cordilheira dos Andes, no rio Apurimac, e vai desaguar ao Oceano Atlântico, no norte do Brasil. Na época das cheias, a distância de uma margem à outra chega a ter 50 quilómetros. Ao longo do seu percurso assume várias designações: no Peru é baptizado de Amazonas, nome que perde quando entra no Brasil, onde passa a ser o Solimões. A designação mantém-se até chegar a Manaus, quando se encontra com o seu afluente, rio Negro, e volta a chamar-se Amazonas, nome com que vai desaguar no Atlântico.

Manaus
Capital do Estado do Amazonas e da amazónia brasileira. Tem 1,7 milhões de habitantes.

Teatro da Ópera - Teatro Amazonas
Inaugurado em 1896, sob proposta do deputado Fernandes Júnior, é o edifício mais emblemático da cidade de Manaus. Projectado em 1883, foi elaborado pelo gabinete de engenharia e arquitectura de Lisboa. Um edifício grande, cor-de-rosa e branco, com uma grande cúpula forrada a azulejos multicolores. No apogeu do ciclo da borracha, Eduardo Ribeiro, governador de Manaus, ambicionava dotar a cidade de um centro de espectáculos (com 701 lugares) capaz de receber as companhias de Teatro e de Ópera estrangeiras. A decoração interna coube a Crispim do Amaral, enquanto a do Salão Nobre, de traços barrocos, foi entregue ao italiano Domenico de Angelis.

Encontro das Águas

Nos arredores de Manaus, as águas escuras do Rio Negro encontramse com as águas barrentas do Rio Solimões, mas ao longo de seis quilómetros não se misturam, correndo lado a lado.

Iquitos
Capital do Estado do Loreto e capital da Amazónia peruana. Tem cerca de 400 mil habitantes.

Casa Eifell

Uma das atracções turísticas de Iquitos, a capital peruana do Amazonas, é a Casa de Ferro, desenhada e construída por Gustavo Eiffel em 1887. Localizada na Plaza de Armas, foi projectada para a Exposição Internacional de Paris de 1889. Uma estrutura de dois andares, com varandas e tecto em pirâmide de quatro águas. Os pilares de ferro forjado, que sustentam as varandas, estão assentes na estrada, fora do passeio. No final da exposição de Paris, o edifício foi vendido a um milionário que a enviou por barco, desmontada, para ser entregue no localidade peruana de Madre de Dios. Problemas de transporte obrigaram à venda da carga e a casa acabou por ficar em Iquitos.

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