Nem uma nuvem no céu, nem uma árvore na terra. De um lado da língua de asfalto a planura estende-se a perder de vista, do outro corre uma cadeia de colinas, baixas e ondulantes. Dos dois lados da estrada a vegetação prima pela ausência. É só terra árida e rochosa, aqui e ali interrompida por montículos de areia e tufos envergonhados de vegetação rasteira. Chamam-se hamadas a estas paisagens lunares que ocupam 70 por cento do Sara, arruinando os clichés de dunas douradas associados aos desertos.
Eram 10 da manhã, mas o termómetro já rondava os 30 graus centígrados, quando cinco 4X4 resolveram estacionar em fila indiana à beira de um desses descampados, a hamada de Kem-Kem, no sudeste de Marrocos.
De dentro das viaturas saíram 20 pessoas com pinta de exploradores, caminhando em passo decidido para as colinas mais próximas.
Chegados à primeira bancada rochosa, detiveram-se a revolver o solo, como crianças à procura de vida à beira-mar. E estavam mesmo, a diferença é que os organismos marinhos que este pessoal colecciona estão fossilizados e rondam 400 milhões de anos. Mais extraordinário, porém, é encontrar relíquias tamanhas, ali mesmo no meio de nada.
Foi numa etapa extraordinária de uma excursão ela mesma extraordinária. Na verdade, a primeira além-fronteiras organizada pelo Centro Ciência Viva de Estremoz, em colaboração com o Pavilhão do Conhecimento, em Lisboa, e a Escola de Ciências e Tecnologia da Universidade de Évora. Decorreu entre 7 e 13 de Junho e chamou-se Marrocos...e os eXtremos aqui tão perto, título que remete para a exposição sobre os extremos actualmente a decorrer no referido Pavilhão. O propósito é lançar um programa de turismo científico, análogo às viagens culturais organizadas por Serralves.
De futuro será mais para os leigos, mas quem se inscreveu nesta viagem inaugural, coordenada pelo geólogo Rui Dias, foram sobretudo outros docentes, em especialidades como a sua, mas também a Física e Química. Gente que em vez dos usuais apetrechos de viagem não dispensa na bagagem um martelo para partir pedra e só fica feliz quando regressa a casa com as malas cheias de calhaus. Gente que, por outro lado, é como outra qualquer em férias, o que em Marrocos significa comprar uma pilha de bugigangas e provar uma mão-cheia de prazeres exóticos.
Acabou por ser entre as duas coisas que decorreu a expedição de Rui Dias, professor do departamento de Geociências e de Tecnologia da Universidade de Évora, mas também um apaixonado por Marrocos. Uma paixão que o levou a descobrir lugares fantásticos não apenas em termos científicos, mas também turísticos, ou melhor, para além do turismo.
Ali onde ninguém vai
Marraquexe não era para ver, mas para servir de ponto de encontro. Um jantar de espetadas de carne e peixe frito, nos estaminés montados na emblemática praça Djemma El Fna, comprimiu as despesas de lamiré. O programa arrancou a sério no dia seguinte, em Al Medinat, uma aldeia 80 quilómetros a sul da cidade, já incrustada nos contrafortes do Alto Atlas. Excursões de montanha são comuns em qualquer programa de festas no sul de Marrocos, mas não por estas bandas. Sobretudo quando o alcatrão acaba no quilómetro 55 e daí para cima só se avança por uma pista mais frequentada por burros e cabras. Al Medinat é o género de terriola rural e singela que lembra o Portugal profundo de há meio século.
Lugares assim, em que as crianças sorriem para as câmaras sem pedirem moedas em troca, também já não restam muitos no Marrocos do século XXI. Um bónus de calor humano, sem dúvida, mas o que nos trouxe a Al Medinat foi a promessa de prazeres mais cerebrais, que começaram por ser servidos à sobremesa de um almoço, improvisado num pomar de nogueiras. O Alto Atlas, como outras cadeias de montanhas, nasceu onde antes havia um oceano. A sua génese é, no entanto, bem mais complicada: a região de Gibraltar é uma zona de choque entre placas tectónicas, que produz os relevos do Rife, em Marrocos, e das Béticas, em Espanha. Mas as forças de compressão que se fazem sentir nessa fronteira são capazes de se propagar nas respectivas placas, o que explica a subida do Alto Atlas e do seu equivalente na Península, que são as serras da Estrela, Lousão e Gredos.
Acontece que estas serras ibéricas estão cobertas de vegetação e já muito alteradas pela mão humana, ao passo que as suas homólogas marroquinas são mais áridas e mais bem preservadas, permitindo observar as estruturas geológicas em melhores condições.
Ou seja, o Alto Atlas é um paraíso para amantes de Geologia e nada ilustra melhor essa pretensão que este lugarejo poeirento no cu de Judas. O que Rui Dias e companhia descobriram em Al Medinat foi um desses afloramentos-chave, que exibe à vista desarmada o contacto de três formações rochosas de idades muito diferentes (Cretácio, Neogénico e Paleozóico).
É uma clara demonstração do metamorfismo que está na origem da cadeia e do princípio de intersecção de camadas sobrepostas, que é um dos alicerces do trabalho geológico.
O afloramento de Al Medinat permite mostrar o que noutros lados turva a compreensão de uma ciência pouco popular, que fala de coisas tão impossíveis de ver quanto o crescimento das unhas.
Mesmo com este nível de evidência, é ainda assim pouco provável que o leigo, ou sequer o especialista, viesse a descobrir o afloramento pelos seus próprios meios. Voltamos a Rui Dias: o professor português conseguiu uma bolsa da Fundação das Descobertas para quatro alunos marroquinos, um dos quais acaba precisamente de se doutorar com uma tese sobre granitos desta região. Mas porquê Al Medinat e não outro ponto qualquer no extenso território marroquino? Esta poderá soar surpreendente: os geólogos não costumam trabalhar na base do exame directo do território, pelo menos em Marrocos, mas consultando velhos mapas de geologia, para neles assinalarem zonas pouco estudadas ou não cartografadas em pormenor. É aí que começa o trabalho de campo, a procura dos afloramentos-chave, aqueles mesmos que contam a história da Terra.
Os ventos não explicam tudo
O caminho mais rápido de Marraquexe a Ouarzazate é a estrada que atravessa o Alto Atlas via Tizi n’Tichka (que em berbere significa o colo das pastagens). São cerca de duzentos quilómetros para cima e para baixo sempre aos esses, que na circunstância levaram quase um dia inteiro a percorrer. Parámos onde toda a gente pára, umas barracas plantadas a 2200 metros de altitude (ponto mais alto da estrada), que além de bebidas frescas vendem fósseis e minerais de toda a forma e feitio.
As advertências de que as ametistas laranja e mais cores berrantes não são conhecidas da ciência foram tomadas a sério. Já ninguém ligou ao anúncio dos fósseis mais baratos em sítios menos concorridos e ao fim de 15 minutos quase toda a excursão estava de volta aos carros com provas de vida na terra há centenas de milhões de anos.
A paragem nas alturas do Tizi n’Tichka tinha outro propósito, mais sintonizado com o tema dos extremos. Em Marraquexe, apesar de se estar já nas vésperas do Verão, o ar apresentava-se fresco e o céu com algumas nuvens, que se foram adensando, enquanto o ar esfriava à medida que escalávamos a montanha virada a norte, de resto, ainda decorada com manchas de neve. Atingido o alto da montanha, no entanto, as nuvens e a neve eclipsaram-se como por magia e o calor foi-se acentuando à medida que descemos para sul, em direcção a Ouarzazate.
A explicação chegou depois de jantar, servido numa belíssima estalagem do oásis de Skoura, 30 quilómetros a sudeste da grande cidade do sul de Marrocos. As correntes de ar húmido ascendem no Equador, onde produzem chuvas abundantes, antes de migraremm para norte, cada vez mais densas e secas, até se afundarem nas proximidades da latitude 30, que é onde fica Ouarzazate. Mas este processo de circulação da atmosfera não é suficiente para dar conta da acentuada diferença de clima em relação a Marraquexe, e é aí que é preciso entrar em linha de conta com o factor topográfico.
Na circunstância o Alto Atlas, que culmina a 4167 metros em Toubkai, funcionando como uma barreira onde esbarram as nuvens vindas de norte.
O Alentejo não tem nada que se pareça com o Alto Atlas, recordou um dos participantes, para classificar de disparate o alarmismo que preconiza o avanço da desertificação em Portugal. O que, por sua vez, levou outros a desmistificar o degelo das calotes polares, fazendo a conversa inflectir para o famoso artigo de Claude Alegre denunciando o lobby do aquecimento global, as manipulações de dados do escândalo científico conhecido por “Climagate” e o fracasso em que redundou a Cimeira de Copenhaga.
Foi aí que os cientistas da expedição se queixaram daqueles que os querem forçar a soluções simples para questões complexas, e os não-cientistas aproveitaram para se queixar dos cientistas que falam uma linguagem que ninguém entende. Especialistas e não especialistas a discutirem se a ciência diz a verdade e se alguém entende o que dizem cientistas só por isso já valeu a pena entrar nesta expedição.
Astronomia a laser
Próxima paragem Merzuga, ou melhor, o vizinho Erg Chebbi, lençol de areias famoso pelas suas dunas, ditas as mais altas e fotogénicas de Marrocos. Mas uma expedição científica (mesmo em versão turística) sem percalços não é uma expedição científica e nesta altura do campeonato os imprevistos sucederam-se. Primeiro os carros atolaram numa antiga pista do Paris Dakar, atrasando a chegada ao erg, agendada para o meio da tarde.
Depois o acampamento não estava montado aos pés das dunas, como prometido, mas ao lado de uma das estalagens nas imediações. O esperado passeio de duas horas de camelo teria de ser adiado para a manhã seguinte.
Contrariedades logo esquecidas num jantar à moda berbere, servido em tendas à volta da fogueira e com tam-tams pelo meio. Com os olhos postos no céu estrelado, a discussão inflectiu para as grandes questões da astrofísica e porventura para a maior delas todas: será que o nosso universo continua em expansão? Bom, há pelo menos duas teorias: aqueles que acreditam no Big Bang, dizem que sim, recorrendo a conceitos como os de energia negra e matéria negra para justificar a aceleração das estrelas mais distantes, ao passo que os descrentes não falam em expansão simplesmente porque consideram o universo infinito.
Teorias mais recentes impugnam a existência de energia negra e de matéria negra, preferindo reavivar o antigo conceito de fluído, mas isso já é uma história que fica para outras núpcias. O que ficou claro na noite escura, ou melhor, constelada de estrelas de Erg Chebbi, é que os adeptos do Big Bang podem estar em maioria na comunidade científica (90 por cento), mas não há certezas a esse respeito e continua tudo a ser uma questão de fé e de paradigmas. Para além das dúvidas, ficou a sessão nocturna de astronomia improvisada pelo espanhol Joseph Pedro, uma aula dada com o esclarecimento próprio de quem está habituado a leccionar Física num liceu de Badajoz.
Munido de um ponteiro laser (www.laserlince.com), uma verdadeira varinha mágica que permite ver as estrelas com a aparente proximidade de pontos de giz num quadro negro, Joseph explicou como se idêntica a Estrela Polar a partir da Ursa Maior, apontou para o Triângulo de Verão, a Via Láctea e constelações como a de Escorpião, difíceis de ver com tanta distinção em latitudes mais urbanas.
Toda a gente acordou por volta das quatro da manhã para passear de camelo, ver o nascer do sol do alto de dunas e depois vir lá de cima a rebolar de volta aos camelos. À diversão seguiu-se uma vez mais a instrução, desta feita servida com sumo de laranja e croissants franceses. As dunas são uma paisagem comum, mas afinal como são formadas? Se fosse uma receita teria três ingredientes: areia, vento e (pelo menos) um obstáculo. O vento começa por varrer as areias, que se vão acumulando contra o tal obstáculo e na sua sombra.
De seguida o vento empurra as partículas do flanco mais longo e menos inclinado da duna, partículas essas que, chegadas ao ponto mais alto da duna, se lançam sobre o precipício, formando outra duna e assim sucessivamente. Só ficámos sem perceber qual o obstáculo que se esconde sob as dunas onduladas de Erg Chebib.
Um deserto dos fósseis marinhos
A hamada de Kem-Kem, que começámos por referir, foi a primeira de uma série de paragens de regresso a Ouarzazate. Sempre em lugares fora do mapa, algures no planalto desértico e rochoso de Alnif. O calor apertava logo de manhã, a falta de sono também já pesava, mas nada impediu a excursão de partir à caça do tesouro. Na circunstância, de fósseis da chamada Era Primária (Paleozóico, -542-251 milhões de anos), que também se encontram na Península Ibérica (por exemplo em Arouca), mas não com a facilidade e a quantidade que se testemunham nesta região marroquina.
Os seres vivos que se conhecem do Paleozóico eram animais marinhos, um sinal inequívoco de que o oceano (o Reic, anterior à formação da Pangea) outrora ocupou o presente deserto. Pelo caminho ganhámos Mohand Ismadi, guia local e vendedor de fósseis, que basicamente foi partindo pedra para oferecer aos portugueses vestígios da fauna marinha do Paleozóico, constituída por goriatites, ortoceras e trilobites, Estas últimas eram astrópodes ou seja, animais invertebrados de membros rígidos e articulados, tal como aranhas ou os caranguejos e são hoje os fósseis mais populares, logo a seguir aos dinossauros.
O guia e membros da expedição encontraram fragmentos fossilizados desses animais marinhos de carapaça rígida, bem como os seus negativos gravados na rocha. Faltam os exemplares completos e perfeitos, carência que acabou por levar meia excursão a fazer compras na loja do guia marroquino. A abundância de Alnif em fósseis do Paleozóico justificará que seja legal levá-los para casa, ao contrário das gravuras rupestres que também já abundaram na região. Ainda pudemos ver duas ou três aliás belíssimas, representando antílopes e elefantes e lavrados em rochas há cerca de 5000 anos. Mesmo ao lado, porém, também pudemos constatar que outras gravuras foram arrancadas (mais provavelmente para venda ilegal), na ausência de vigilância adequada.
De regresso a Marraquexe o bombardeamento de informação abrandou, naturalmente, mas não a vertente mais radical desta expedição sob o signo dos extremos.
Primeiro foram as sensações fortes produzidas pela travessia do trilho precário que liga Ait Benhaddou e Telouet, 30 quilómetros sempre à beira do abismo na antiga rota dos kasbah. Depois, mesmo na hora da partida, e para não perder o avião, foi a adrenalina de avançar a abrir e em sentido inverso, numa pista onde estava a decorrer um rally ligando o Estoril a Marraquexe. Quem disse que os cientistas não gostam dos extremos?
Como ir
A TAP liga Lisboa e Marraquexe às terças, sextas e domingos, a partir de 99€. O programa Marrocos...e os extremos aqui tão perto custou 1300€ por participante, em regime de alojamento duplo.
Onde ficar e comer
La Pause
www.lapause-marrakech.com
Tel. : +212 661306494
Dorme-se em tendas berberes, come-se à luz das velas, as casas de banho são comuns e não há electricidade. Este novo santuário do desert chic fica num míni-oásis entre colinas rochosas, 40 minutos a oeste de Marraquexe. Duplos desde 120€.
Dar Isselday
Tisselday
Tel. : +212 666174881
www.dar-isselday.com
Riad de matriz tradicional e muito bom gosto, acabado de inaugurar numa aldeia em pleno colo do Alta Atlas (50 km de Ouarzazate, 150 km de Marraquexe). Duplos a 40€.
Rose Moire
Ouarzazate, bairro da Mesquita
Tel.: +212 524882016
www.maisondhote-rosenoire.com
Casa de hóspedes decorada à maneira de um caravanserai por um casal singular, formado por um francês e uma berbere divorciada.
A cozinha feita por ela é também uma das melhores de Ouarzazate (duplos a 85€, jantares a 25€)
Le Petit Riad
1581/1582 Hay Al Wahda
Tel.: +212 24885950
www.lepetitriad.com
Riad moderno, dirigido por uma académica berbere que gosta de ouvir Madredeus. Barato para a qualidade. Duplos a 59€.
A Fugas viajou a convite dos organizadores da expedição, que se prende com a exposição “Extremos: viver no limite” (esteve patente no Pavilhão do Conhecimento. Lisboa, em 2010).