Fugas - Viagens

Luís Maio

NEVE: Os encantos remotos das Dolomitas Orientais

Por Luis Maio

As Dolomitas Orientais são um lugar fantástico para esquiar. Mas a sua fotogenia é tal que às tantas apetece trocar a rotina das pistas por outros desafios de montanha. A Fugas mergulhou numa das paisagens nevadas mais extraordinárias dos Alpes italianos

Montanhas equipadas para a prática de desportos de neve, mas não reduzidas ao circo desses desportos. Montanhas com mais para ver que a dança dos teleféricos, onde o para além do esqui não se limita a circuitos de lojas de luxo e restaurantes medalhados. Onde, para resumir tudo, a prática de desportos de neve rivaliza com a fruição da natureza, permitindo inclusive aos acompanhantes dos esquiadores trazerem melhores recordações de viagem do que eles das suas acrobacias. Os Alpes terão vários recantos que andam lá perto, mas as Dolomitas Orientais são um espécie de jackpot nesse tabuleiro de excepções. São certamente um destino mais remoto, económico e menos concorrido que a maior parte das estâncias alpinas.

O magnete principal é, em qualquer caso, a beleza excepcional destas montanhas situadas no extremo nordeste de Itália, especialmente encantadoras quando cobertas de vários centímetros de neve. Nelas se concentram algumas das paredes calcárias mais altas e dramáticas do planeta, boa parte das quais se elevam a mais de 1500 metros de altitude. Lá em cima dominam os tons rosa matinais, que depois inflectem para o laranja-amarelado, contracenando com o verde profundo das colinas cobertas de bosques. Mais abaixo há penhascos e ravinas, lagos e vales sulcados por rios, emoldurados por aldeias, prados e parcelas agrícolas.

Este talhão de paraíso montanhoso ocupa o norte da região italiana Friuli Venezia Giulia, que faz fronteira com a Caríntia (Áustria) e a Eslovénia. É parte da cordilheira das Dolomitas, secção sudeste dos Alpes caracterizada pela extraordinária diversidade de calcários, onde sobressai o mineral de carbonato de cálcio e magnésio conhecido justamente por dolomite. Ora as rochas dolomíticas, de que estas montanhas são o paradigma, são rochas solúveis e como tal especialmente permeáveis aos fenómenos cársticos, que consistem na dissolução química das rochas. A carstifi cação é responsável pelas formas esculturais e coloridas que as rochas corroídas vão ganhando, bem como pela formação de cavernas, dolinas, lapiás e todo o sortido geológico pertencente à família dos relevos cársticos.

A riqueza mineral é naturalmente uma das razões aduzidas na classificação das Dolomitas como património da UNESCO, em 2009. Essa classificação é, no entanto, bastante parcial (141 mil hectares) e centrada na província de Belluno, só integrando um talhão relativamente pequeno da região friulana. Esta subdivide-se, por outro lado, numa zona alpina, que é mais alta e setentrional, incluindo o Monte Canin, que se eleva a 2587 metros, e uma zona préalpina, mais baixa e meridional, formada por uma longa cadeia de montanhas que se escalona em anfiteatro na direcção esteoeste, até ao Adriático. O mesmo território é ainda dividido pelo rio Fella na metade oriental dos Alpes Julianos, designação que reenvia para o explorador Juluis Kugy, e na metade ocidental, a que os romanos chamaram Cárnia. Para além da parcela distinguida pela UNESCO, uma parte substancial da Cárnia e dos Alpes Julianos cai na categoria de parque nacional, suplementado por toda uma rede de parques regionais. Daí resulta que quase tudo (à excepção dos vales urbanizados e agrícolas) nas Dolomitas Orientais é paisagem protegida.

Nas pistas e para além delas

Esquia-se em grande estilo, quer dizer, em domínios bem equipados, longe das multidões e sobretudo com um enquadramento paisagístico extraordinário. O destaque cabe, para começar, a Sella Nevea, a estância a maior altitude dos Alpes Julianos, já paredes meias com a Eslovénia. O centro, que se resume a meia dúzia de hotéis, fica no planalto aos pés de Mont Canin (2587), colosso vertical ao colo do qual se encontra o único glaciar prevalente na região. Está a recuar a olhos vistos, mas mesmo assim no Inverno oferece um espectáculo prodigioso.

De Sella Nevea parte um teleférico até ao Rifugio C. Gilberti, pitoresca estalagem alpina, erguida a 1850 metros de altitude. Desde Abril passado está conectada por um novo teleférico com Bovec, já do lado esloveno, e há agora um forfait que permite circular livremente entre as pistas dos dois lados da fronteira. Mesmo para quem não esquia, a ascensão aos terminais desses dois teleféricos recomenda-se, quando oferece vistas prodigiosas sobre um majestoso anfiteatro de montanhas com vários picos acima dos 2000 metros. Já para os desportistas, há 30 quilómetros de pistas serpenteando entre espessas manchas de coníferas, mas também uma infinidade de outras possibilidades para quem prefere aventurar-se off piste. O novo teleférico foi contestado, aliás, com toda a razão pelas associações ambientalistas, e é seguro que não fica bem na fotografia. Mesmo assim, não passa de um mal menor numa paisagem que se mantém de uma grandeza e beleza transcendentes.

Outro domínio esquiável, na verdade o mais extenso dos Alpes Julianos, é Di Prampero, com 80 hectares de pistas, a mais longa das quais oferece uma descida contínua de quatro quilómetros. De novo a beleza da moldura é excepcional, aqui sobretudo porque o ponto de partida da descida é Monte Lussari, uma aldeia alcandorada a 1760 metros de altitude. A povoação, que não deve ter mais de duas dezenas de casas, desenvolveu-se em torno de um santuário, no local onde foi reportada uma aparição da Madonna. Hoje é local de romagem estival partilhado por italianos, eslavos e germânicos e no Inverno as suas esplanadas com mesas corridas de madeira funcionam como espaço de confraternização internacional (bem regada) para as várias tribos dos desportos de neve. Apesar do assédio turístico, Monte Lussari, com a sua elegante torre de igreja e casario singelo, sitiada de montanhas nevadas por todos os lados, persiste de uma formosura intemporal, do mesmo estofo que se fazem os postais de Natal.

Menos turísticas são seguramente as estâncias de neve da Cárnia, caso por excelência de Forni de Sopra, no vale de Tagliamento, mais frequentada por turmas das escolas da província, que aqui vêm ensinar aos miúdos o bê-a-bá do esqui. A pista de Valmost-Crusicales, situada a noroeste da cidade, tem uma rede de telecadeiras que atinge vários patamares de altitude e de dificuldade. Mas o seu principal atractivo é funcionar como balcão panorâmico, proporcionando vistas esplêndidas sobre a cadeia de montanhas a sul, que já se encontram integradas no Parque Natural das Dolomitas Friulianas. No vale de permeio, seguindo o curso do rio Tagliamento, há 10 quilómetros de pistas de esqui de fundo, que também servem de ponto de partida para os mais experimentados se embrenharem nas florestas e nos trilhos do parque natural.

Dos carros de neve aos cães de trenó

As pistas nevadas podem ser soberbas, mas estão longe de ser os únicos atractivos locais. Há muito mais para ver no cenário na maior parte montanhoso das Dolomitas Orientais que, por isso mesmo, requerem outro tipo de esforço físico para serem devidamente exploradas. Uma dessas modalidades é o trekking, de preferência conjugado com o uso de raquetes na metade do ano em que a neve cobre quase tudo. É seguramente a melhor maneira de explorar os lagos que se sucedem a pouca distância, na ponta nordeste da raia fronteiriça junto à Eslovénia. São tão bonitos quanto gelados, destacandose com frequência nos boletins meteorológicos como os pontos mais frios de Itália (-15 ºC, quando lá estivemos, numa manhã de meados de Janeiro).

Atinge-se os lagos de Fusine através de um ramal da estrada que liga a cidade fronteiriça de Tarvisio à Eslovénia (SS 54). O asfalto acaba num parque de estacionamento junto do lago inferior, que está situado a 724 metros de altitude, tem uma forma sinuosa e ocupa 13,5 hectares. A única maneira de chegar ao lago superior, que é um pouco mais pequeno (9 hectares) e se situa a uma altitude de mais cinco metros, é mesmo a pé. O trilho, que é circular, sobe e desce por pequenas colinas cobertas de abetos, aveleiras, castanheiros e faias, que ganham formas escultóricas (no género fantasmagórico) quando cobertos de neve. É um passeio fabuloso, muito pouco concorrido, não admirando, por isso, que nos cruzemos a todo o instante com pegadas de lebres, veados, raposas e ursos, por vezes até os próprios animais.

Quando finalmente se atinge o lago superior é o deslumbramento, sobretudo se o lago estiver congelado, funcionando como luminoso espelho do anfiteatro de montanhas circundante, coroado pelo Monte Mangart (2643 metros), já do lado esloveno. Uma dezena de quilómetros mais a sul fica Predil, outro lago de origem glaciar, que é como quem diz, formado pela coroa de morena depositada ao fundo do vale. Situa-se a 969 metros de altitude, tem um quilómetro de extensão, sendo maior e porventura menos elegante que os lagos de Fusine. Mas a envolvente, a meio caminho entre Mont Mangart e Mont Canin, torna-o igualmente fotogénico.

As silhuetas verticais e dentadas dos Alpes Julianos não são destituídas de semelhanças com as Rocky Mountains canadianas, ar de família que se acentua na pista de trenós puxados por cães (sleddogs), que se encontra na planície de Fusine. Chama-se Escola Internacional de Mushing e a maior parte da sua clientela são principiantes que vêm para guiar, ou melhor, serem guiados por cães da raça husky. Os trenós, puxados por equipas de quatro cães, conseguem atingir velocidades impressionantes e dar aos condutores ocasionais um lamiré do que será empregá-los como meios de transporte através de desertos gelados.

Outro local excelente para caminhadas com raquetes é o Parque Natural das Dolomitas Friulianas, de que a supracitada Forni de Sopra é a principal entrada superior. Aqui se encontra a quintessência da paisagem préalpina com densos bosques de coníferas, adaptadas aos acidentes de um relevo dominado por formações cársticas, incluindo lagos, cataratas e gargantas. O trilho mais popular arranca das imediações da pista do esqui de fundo da cidade e escala o barranco sulcado entre Monte Cridola (2453) e Cima Urtisiel (2264). Em meio dia atinge-se o belíssimo Rifugio Giaf (só aberto na metade mais quente do ano), mas com mais tempo pode-se cruzar as montanhas pelo alto de Forcella Scodavacca e daí progredir até às planícies friulianos, que se desenham a sul.

Uma modalidade mais cómoda e certamente mais original de explorar o parque natural consiste em comprar uma excursão no "gato da neve" (snowcat), o carro que ao princípio da noite faz a limpeza da pista de esqui de fundo de Forni de Sopra. Aceita dezena e meia de passageiros e leva cerca de hora e meia a alisar a pista, iluminando pelo caminho paisagens que à noite ainda ganham mais fantasia. Nos meses de Inverno é quase seguro: surpreendem animais que aproveitam a pista para chegar próximo das hortas e quando o passeio se faz com neve a cair até parece que a terra fica coberta de cristais cintilantes.

Informações gerais

Agenzia Turismo Friuli Venezia Giulia
Piazza Manin, 10, Loc.
Passariano (Codroipo)
Tel.: 0039 0432734100
www.turismo.fvg.it

Informações locais

www.carnia.it
www.tarvisiano.org
O principal posto turístico dos Alpes Julianos fica em Tarvisio (via Roma 14, tel.: 0039 04282392). Vende-se aí um Holiday Card que custa dois euros e dá acesso livre aos museus e reduções na maior parte das atracções locais.
Passamos a especificar:passeio na neve com raquetes (sábados): 10€; passeio em sleddog: 17,50 (25€ normal; curso básico de alpinismo: 80€; teleférico Monte Lussari: 8€ (12€ normal); teleférico Mont Canin: 6,50€ (7,50€). O posto de turismo de Forni di Sopra fica na Via Cadore, 1 (tel.: 0039 0433886767) e é o melhor lugar para reservar trekkings com raquetes.


Como ir

Forni di Sopra fica a 154 quilómetros do aeroporto de Veneza via Belluno e a 213 quilómetros via Udine (capital da província que, por sua vez, fica a 90 quilómetros). Tarvisio situa-se a 102 quilómetros a oriente de Forni di Sopra, quase colada à fronteira eslovena. A TAP voa todos os dias para/de Veneza, sendo que em Janeiro as passagens mais baratas de ida e volta devem rondar os 150€.

Onde ficar

Não há grandes hotéis, nem sequer hotéis de charme nas Dolomitas Orientais. Na Cárnia o povoamento concentrou-se em pequenas aldeias à beira-rio, onde agora se fica em habitações rurais e pequenos hotéis de família. Tarvisio, a maior cidade dos Alpes Julianos (6 mil habitantes), tem um passado militar ainda recente e bem patente na sua arquitectura de caserna.

Sella Nevea, em contrapartida, assemelha-se mais a uma aldeia turística; mesmo assim, não tem mais de umas centenas de camas, em contraste com as mais de três mil do lado esloveno. Sugestões:

Schene Welde Passo Del Pura (Ampezzo) Tel.: 0039 03394178914 Pitoresca casa rural em madeira aos pés da montanha (1400 metros) com as vacas leiteiras e o vale de Sauris mesmo em frente. A partir de 40€ com meia pensão.

Edelweiss Via Nazionale, 19 (Forni di Sopra) Tel.: 0039 043388016 www.edelweiss-forni.it O Edelweiss é limpo, barato e kitsch, do melhor que se encontra por estas altitudes. 165€ por adulto para uma estadia mínima de três noites, na época alta de neve.

Edelhof Via Armando Diaz, 13 (Tarvisio) Tel.: 0039 0428644741 www.hoteledelhof.com Uma espécie de fantasia medieval, onde se dorme em quartos espaçosos com vista para a montanha e se come excelente cozinha regional. Duplos desde 90€.


Onde comer

A especialidade local é uma combinação de salsichas frescas, polenta e queijo fundido, prato de resistência perfeitamente adequado aos desportos de neve e aos rigores de Inverno. Os restaurantes nos abrigos de montanha não são melhores nem piores que aqueles que se escalonam à beira da estrada.

Centrale Piazza del Comune, 9 (Forni di Sopra)
Tel.: 0039 043388062

Dal Gris
Via Nazionale (Fraz. Cella, Forni di Sopra)
Tel.: 0039 043388091

Valle Verde Via Priesning (Tarvisio)
Tel.: 0039 04282342

O que fazer

As Dolomitas Orientais não são propriamente uma bandeira do esqui chique, dessas onde se passa mais tempo nas compras do que nas pistas. Para além dos encantos naturais, o que fica para fazer é provar produtos da terra (queijos, licores) e descobrir pequenas pérolas patrimoniais, valorizadas pelos locais e pouco mais. A lista inclui todo um ramalhete de igrejas e palacetes, em estilos que vão do Românico ao Barroco, sempre com fortes semelhanças com as suas homólogas eslovenas e sobretudo austríacas. Um pouco por toda a Cárnia, mas sobretudo no centro histórico de Forni Di Sopra, encontram-se notáveis exemplos da arquitectura popular: casas de três e quatro andares com balcões de madeira no último piso, as mais ricas com balaustradas decorativas e pórticos de arcos rebaixados, reminiscentes dos palacetes venezianos.

A Fugas viajou a convite da Câmara de Comércio Italiana em Portugal e da região Friuli Venezia Giulia 

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