"Os livros têm essa vantagem", nota Carlos Vaz Marques, "é o meio de transporte mais barato que eu conheço. Nós não podemos ir a muitos sítios, mas os livros levam-nos a sítios onde nunca poderíamos ir de outro modo. Nesse sentido é um meio de transporte muito acessível e ao alcance de todas as pessoas que queiram usá-lo". Por isso, quando foi convidado pela editora Tinta-da-China a organizar uma colecção de livros, o autor de Pessoal. e Transmissível, na TSF, não hesitou em juntar as duas coisas de que mais gosta, ler e viajar. "A literatura de viagens conjuga as duas vertentes e, acho, é talvez a ligação mais feliz que eu posso imaginar para essas duas coisas."
Viajar é uma das acções mais antigas da humanidade, uma deslocação geográfica que actualmente se pode desdobrar em inúmeras tipologias à medida de cada estudioso. A viagem iniciática, a viagem de descobrimento, a não viagem e a viagem de turismo ("Toda a gente quer ir de férias, não é?", nota Francisco Guedes). E contar as viagens, seja oralmente ou através da escrita, espontaneamente ou com mais cuidado literário, é um impulso quase irresistível. Depois, enquanto uns se fazem à estrada, outros não saem de casa. É uma viagem, são duas viagens é a magia da literatura de viagens. É a magia da viagem na literatura.
É verdade que a massificação do turismo, o advento da televisão e da Internet tornou mais pequeno e familiar o mundo que a expansão ultramarina dos séculos XV e XVI imensamente desvendou. No entanto, ainda há espaço para deslumbramentos. Carlos Vaz Marques lembra as suas experiências em Veneza. "Achei aquilo extraordinário, porque é uma cidade que está sobreexposta em termos de imagem, mas eu cheguei e aquilo surpreendeu-me como se não tivesse visto nada, como se não soubesse nada. E eu pensava que já sabia exactamente tudo e já tinha visto as imagens todas". E, por causa dos livros, tem uma viagem de sonho. "Os livros do [V. S.] Naipaul fizeram-me ‘ir' à Índia e a querer lá voltar, de corpo inteiro."
É o sortilégio da literatura de viagens. "A que nos leva a imaginar que também podemos viajar", sublinha Francisco Guedes. Por isso lemos, e, quando podemos, viajamos. E se viajar tem tipologias diversas -por exemplo, numa sessão anterior do LEV, o escritor angolano Ondjaki falou de uma viagem que fez entre a casa e o galinheiro da avó, e Xavier de Maistre escreveu "Voyage autour de ma chambre" -, a viagem na literatura não as tem menos.
É desde logo difícil distinguir satisfatoriamente "literatura de viagens" de literatura que viaja. Na verdade, "literatura de viagens" é uma designação de fronteiras voláteis, que transgride géneros literários e se define mais "pelas suas incaracterísticas do que por traços inconfundíveis e fronteiras estanques", nota Mário Matos, director do Departamento de Estudos Germanístico e Eslavos da Universidade do Minho (UM), via e-mail.
Fernando Cristóvão, docente da Faculdade de Letras da Universidade Lisboa (FCUL) e coordenador da obra Literatura de viagens Da tradicional à nova e à novíssima, crê que ela deve englobar sempre as componentes de história, antropologia e, claro, literatura. Mário Matos aponta o "pacto de leitura" que ela insinua, uma vez que "pressupõe tratar-se de um relato ‘autêntico' de uma viagem ‘realmente' feita". "Mesmo que, na realidade, essa nunca tenha passado de uma mera "viagem ‘de poltrona' e a figura textual do sujeito viajante não seja equivalente ao autor": Karl May, escritor alemão de aventuras e viagens popularíssimo na segunda metade do século XIX, nunca viajou.
Por isso, Mário Matos exclui da categoria de literatura de viagens os romances, mesmo os "de viagem", que são lidos como ficções criadas pelos autores, ainda que muitas vezes alimentados por "vivências, situações, personagens e paisagens factuais". No entanto, não deixa de reconhecer como assunção mais ou menos consensual entre os estudiosos actuais que, sendo um "género híbrido ou andrógino", vacila "entre a ficção e o ‘real'", misturando-se "os mais diversos estilos de escrita e discursos oriundos de múltiplas áreas disciplinares". O que significa, na prática, que um livro de viagens pode ser narrativo, poético, epistolar, de reportagem.
É deste modo que Carlos Vaz Marques analisa a literatura de viagens. "Tudo o que fala de locais, tudo o que possa eventualmente ter a geografia como personagem. Acho que pode caber lá tudo". Os Lusíadas?, queremos saber. "Também. Mas se o conceito fica tão lato, também fica lasso". A verdade é que Dublin pode ser conhecida, com muito fôlego literário, com "Ulisses", de James Joyce na mão; e quem lê "O Ano da Morte de Ricardo Reis", de José Saramago, não deixa de "perceber" Lisboa, por exemplo.
Não são literatura de viagem, mas não deixamos de viajar neles e podemos viajar com eles, quase que como de um guia turístico se tratasse. E, não obstante a colecção que Carlos Vaz Marques coordena só incluir livros de não-ficção, de modo algum o repugna o que estenda o território das viagens para as áreas de ficção. Aliás, um dos livros que gostaria de editar é de ficção. "O Hav", de Jan Morris (de quem a Tinta-da-China já publicou "Veneza"), onde a autora galesa inventa um território e depois escreve o livro de viagens. "Há uma intertextualidade, um jogo que ela estabelece entre a literatura de viagens e a literatura de ficção."
Viagem no tempo
Houve um tempo em que essa distinção não se fazia claramente. Há muitos séculos que o mundo viaja na "Odisseia", de Homero, que Mário Matos considera constituir o arquétipo da representação literária da viagem. Na epopeia de Ulisses encontra-se o que ainda hoje se espera encontrar na literatura de viagens "o espírito aventuroso, a concepção circular da viagem, um espécie de expectativa catártica em relação à viagem ou ainda o desejo de que a experiência do outro, do invulgar, alargue o horizonte individual, proporcionando uma visão mais abrangente do mundo".
Durante a Idade Média, viajou-se em comércio, cruzadas e peregrinações religiosas e o desconhecido foi diabolizado de tal forma que a literatura de viagens medieval contém uma "forte dose do que hoje consideramos o ‘fantástico'", nota o docente da UM. Veja-se o "Livro das Maravilhas do Mundo", de Sir John Mandeville (c. 1356), que vai até ao Extremo Oriente, em encontros com dragões e unicórnios, o bem (cristão) e o diabólico (o herege, não-cristão), e que durante séculos foi lido como uma narrativa autêntica, enquanto o relato de Marco Polo, um dos mais famosos viajantes "reais" da história, foi "descartado" como invenção.
Depois, com as viagens de expansão dos séculos XV e XVI iniciou-se o que Fernando Cristóvão classifica como a literatura de viagens (europeia) tradicional, que arrasta uma carga mágica de revelação de "novos mundos" e da vivência de aventuras extraordinárias "são viagens arriscadas, lentas, têm finalidades e grandes mentiras", resume. Durante séculos, Fernão Mendes Pinto foi popularmente (e jocosamente) conhecido por um trocadilho: "Fernão, Mentes? Minto". A sua "Peregrinação" pareceu sempre excessiva aos seus contemporâneos e vindouros. "Afinal, até parece que mente muito pouco", clarifica Fernando Cristóvão.
No século XIX tudo mudou, com o advento do turismo. Os leitores tornaram-se viajantes e passaram a exigir verosimilhança não é à toa que, por exemplo, o guia turístico, "subgénero utilitário" da literatura de viagem, considera Mário Matos, surgiu na primeiras décadas do século XIX (os "Murray Red Books" em Inglaterra, o "Baedeker" na Alemanha, e o "Guide Bleu" em França), a acompanhar a "institucionalização" do turismo moderno.
De facto, podemos dizer que as viagens e a literatura de viagens modernas se forjaram em oitocentos. A viagem passa a ser encarada como "busca de conhecimento, recreio e colecção de experiências individuais", sustenta Maria Luísa Leal, investigadora na área de Filologia Portuguesa na Universidade da Extremadura. Procura-se o exotismo, a aventura e, claro, o turismo e esta nova obsessão é, aliás, "parodiada", sublinha a investigadora, por Almeida Garret, em "As Viagens na Minha Terra": uma viagem "nada menos do que a Santarém".
E esta mudança de paradigma aconteceu, antes de mais, pela revolução dos transportes, aponta Fernando Cristóvão. "Passou a viajar-se mais rápido e as razões porque se viaja mudam radicalmente". Da necessidade passa-se para o lazer, uma mudança que já vinha sendo ensaiada desde que os Grand Tours se transformaram em viagens iniciáticas (de conhecimento e deleite) da aristocracia europeia integrados habilmente em obras de Henry James, por exemplo, ou narrados em primeira mão por grandes vultos da cultura ocidental, como Goethe e a sua "Viagem a Itália". Também Laurence Sterne, em 1768, fez "Uma Viagem Sentimental" pela França e Itália, e Lord Byron deixou diversas obras com as suas deambulações (românticas) europeias (Grécia, Itália, e, claro, Sintra, "o glorioso Éden").
"Para onde vou?"
Desde então, os meios de transporte evoluíram ainda mais, e com eles a comunicação e a representação até ao contexto actual da era do turismo de massas e da globalização, caracterizado pelo que Mário Matos define como "hipermobilidade" e "hipermedialidade". Porém, se estas revoluções tecnológicas imprimiram marcas indeléveis à prática da viagem, no que se refere às representações textuais do género da literatura de viagens (excluindo as suas novas formas mediais, como o cinema, a televisão ou a Internet), estas permanecem tal como foram "definidas" na viragem do século XVIII para o século XIX, quando se assistiu a uma "diferenciação da literatura de viagens em diversos subgéneros com funções e públicos diferentes", sustenta Mário Matos.
Começou, aponta, o relato de viagens de divulgação científico-popular sobre as grandes expedições da era do imperialismo colonial (a célebre "A Viagem do Beagle", de Charles Darwin, ou "Cosmos", onde o naturalista Alexander von Humboldt narra as suas expedições à América do Sul, fazem parte desta corrente, que Fernando Cristóvão integra num período de mudança já não é bem literatura de viagens tradicional, mas ainda não é bem a moderna -, a reportagem de viagem e o relato de viagens poético, este mais subjectivista e cultivado por autores profissionais que dominam a "arte da viagem e da escrita".
Fernando Cristóvão acrescenta ainda as obras de reconstituição histórica (e dá o "Equador", de Miguel Sousa Tavares, como exemplo), as grandes reportagens ("mesmo que sejam sobre o abominável homem das neves"), os textos de lazer e a reportagem de guerra e no LEV, o tema homónimo confirma essa tendência: poucos duvidarão que a obra de Robert Fisk, o correspondente de guerra inglês que, em 2010, foi um dos ausentes em Matosinhos (vítima, não da guerra, mas do vulcão islandês), "A Grande Guerra pela Civilização", continue a ser um fresco poderoso do Médio Oriente.
E Ryszard Kapuscinski, o jornalista polaco que chegou a ter o epíteto de "maior repórter do mundo", apesar das dúvidas recentemente colocadas sobre a veracidade dos seus trabalhos, deixa uma série de obras marcantes, fruto de um percurso que o levou a acompanhar guerras e revoluções, na Ásia, África ("Ébano. Febre Africana" vai ao Congo com Patrice Lumumba) e América Latina ("A Guerra do Futebol" acompanha o confl ito entre as Honduras e El Salvador, em 1969).
Nos últimos dois séculos, a literatura de viagens, de matriz predominantemente anglo-saxónica produziu os seus nomes e obras mais conhecidos e atraiu escritores de outros campos. O explorador Richard Burton, no século XIX, tornou-se o protótipo do escritor-aventureiro, uma personagem "bigger than life" que esteve em todo lado. E escreveu sobre tudo: da Goa portuguesa ao Brasil, cruzando África e Ásia e tendo ainda tempo para traduzir Lusíadas.
Henry M. Stanley ficou conhecido pelo seu Doctor Livingstone, I presume, mas a sua viagem pela África central continua um clássico ("Através do Continente Negro"). Mais tarde vieram, por exemplo, Wilfred Thesiger ("Pelo deserto das Arábias") e Robert Byron, cuja obra "Estrada para Oxiana", narrativa que acompanha dez meses de viagem pela Pérsia (Irão) e Afeganistão, é muitas vezes apontada como o melhor exemplar de literatura de viagens do século XX.
Bruce Chatwin permanece um dos nomes mais reconhecíveis na genealogia da literatura de viagens (e até de uma certa "filosofia" nómada, da solidão) e tem o seu nome intimamente ligado à Patagónia (mas viajou também, por exemplo, pela Austrália, com os aborígenes, em "Canto Nómada", por África, Benim e Togo, para escrever "The viceroy of Ouidah"), pelas obras "Na Patagónia" e "Regresso à Patagónia", este a meias com Paul Theroux, que anos antes tinha apanhado "O Velho Expresso da Patagónia" (a obsessão ferroviária já vinha de trás: "The Great Railway Bazaar" viajou pela Europa, Médio Oriente e Ásia) e depois fez a "Viagem Por África", unindo Cairo e Cidade do Cabo.
Escritores de outros géneros escreveram "narrativas de viagens" John Steinbeck descobriu a América de autocaravana, na companhia de Charley, o seu cão ("Travels with Charley"), Edith Wharton vai do Atlântico ao Atlas "Em Marrocos", Somerset Maugham não larga a China ("On a Chinese Screen" é mesmo não ficção, retalhos da vida chinesa no início do séc. XX) e André Gide viajou até ao Congo ("Viagem ao Congo").
Mark Twain veio à Europa, com passagem pelos Açores ("Innocents Abroad" - "A Viagem dos Inocentes ou A Nova Rota dos Peregrinos"), Agatha Christie viaja pela Síria ("Come Tell Me How You Live" - "Síria") e Saul Bellow foi a Jerusalém e voltou ("To Jerusalem and back" - "Jerusalém, Ida e Volta"); três títulos disponíveis em português, na colecção da Tinta-da-China. E se fugirmos à literatura estritamente de viagens, não conseguimos esquecer o Congo de "Coração das Trevas" de Joseph Conrad, do mesmo modo que o México deixa uma impressão indelével em "Debaixo do Vulcão" (Malcolm Lowry).
Numa altura em que prevalece a sensação inequívoca de que, em termos geográficos, não há nada de novo a representar, a literatura de viagens tem-se vindo a reinventar, debruçando-se cada vez mais no próprio escritor e esforçando-se por dar uma nova perspectiva, um olhar diferente sobre o supostamente conhecido e também sobre "o outro", que continua ser "o oxigénio da literatura de viagens". E a viagem permanece omnipresente na literatura. Como forma de transcender o quotidiano e conhecer outras realidades ou regressar ao passado. E se calhar de responder às perguntas que Jan Morris coloca em "Trieste and The Meaning of Nowhere": "O que estou aqui a fazer? Para onde vou?".
(Novas) Geografias literárias
Nos últimos dois séculos, os livros delimitaram a geografia das nossas deambulações literárias e turísticas. "Flanamos" pelo mundo inteiro à procura do desconhecido e do familiar. Por mais que o mundo esteja "mapeado" tanto geográfica, como imagética e literariamente e que a correcção política se tenha imposto na aldeia global multicultural ainda procuramos um espaço (e um "outro") distante e exótico (e, preferencialmente, raramente visitado); ao mesmo tempo, regressamos às nossas matrizes culturais.
A verdade é que continuamos a procurar o que sabemos estar distante da nossa realidade. O Oriente, por exemplo, permanece um ícone - e um "lugar estranho", que surge no título português da obra de Peter Carey sobre o Japão, "Wrong About Japan" ("O Japão é um Lugar Estranho"), também esclarecedor sobre o modo como os ocidentais olham para o país do sol nascente (isto mais de um século depois de outra obra famosa "Unbeaten Tracks of Japan", escrito em 1878 pela britânica Isabella L. Bird).
É uma geografia (que se faz história, antropologia) distante, que a literatura europeia sempre tratou de forma diferente (que levou, aliás, Edward Said a afirmar, em "Orientalismo", que o Oriente, em certa medida, é uma invenção literária do Ocidente), fosse em livros de viagem ou de ficção. Lemos a China em Somerset Maugham (ficção e não-ficção), em Antonio Colinas ("La Simiente Enterrada, Un Viaje a China"), em Santiago Gamboa ("Todo Pekín") e percebemos que o fascínio permanece e vem de partes diversas.
A Índia continua a ser um mosaico imenso de exotismo, a que a literatura vai levantando o véu. V.S. Naipaul deu-nos uma trilogia, sem romantismos, "An Area of Darkness", "A Wounded Civilization" e "A Million Mutinies Now" e Sukutu Mehta guia-nos pela "cidade máxima" que é "Bombaim Maximum City: Bombay Lost and Found".
África ainda é uma quinta no Quénia tal como Karen Blixen descreve em "África Minha", mas é também "Deus, o Diabo e a Aventura", de Javier Reverte (que dedicou uma trilogia ao continente, não traduzida em português) na Etiópia do século XVII na senda de um jesuíta, e o "Rio de Sangue", de Tim Butcher, que volta ao Congo onde passaram Stanley e Livingstone, para encontrar o "coração das trevas". E o jornalista australiano Alan Moorehead também andou a seguir as pisadas dos exploradores do século XIX, desta feita em torno do Nilo, e deixou-nos "The White Nile" e "The Blue Nile", como viagens de (re)descoberta e metáfora da fuga.
E subindo para Norte, o Cairo mereceu uma trilogia ("Trilogia do Cairo"), de Naguib Mahfou, que acompanha a cidade entre as duas guerras mundiais. Uma cidade em permanente renascimento, diz Max Rodenbeck: em "Cairo, A Cidade Vitoriosa", vai ao tempo dos faraós e mostra que o Cairo nunca perde o fio à meada mesmo que este se encontre nos bazares e bordéis, que Flaubert registou em "Egypt: A sensibility on Tour", reconstituindo a sua passagem pelo país em 1849.
"Aqui, no deserto, encontrara tudo aquilo que procurava e sabia que jamais encontraria o mesmo outra vez."
As palavras são de Wilfred Thesiger, em "Pelos Desertos das Arábias", mas provavelmente ecoam as dos muitos outros que fizeram dos territórios desertos o ponto de partida e chegada. Como Théodore Monod, que afirma ter sido "um dos últimos viajantes sarianos do período do camelo" encontramo-lo em "O Fascínio do Deserto" ou "Os Navegantes do Deserto", por exemplo.
A América do Sul é a geografia onde tudo é permitido mas é sobretudo a Patagónia, onde Chatwin e Theroux, nunca estão sós (Luís Sepúlveda também já se apoderou do imaginário local, com "Patagónia Express"). Na América do Norte, Nova Iorque é o farol do mundo, para o qual várias portas se abrem, pela mão de escritores tão distintos quanto Enric Gonzalés ("Historias de Nueva York") ou Brendan Behan ("Nova Iorque").
O Mediterrâneo tem sido a coutada do francês Daniel Rondeau, que tem percorrido algumas das suas cidades mais emblemáticas como Tânger ("Tânger e outros Marrocos"), Istambul, Alexandria ("Alexandria, Uma Narrativa", por exemplo) e Cartago.
E a Europa não fica de fora. Paris continua uma festa, e Julian Green ("Paris") e Edmund White ("Paris, Os Passeios de um Flâneur"), por exemplo, comprovam-no; Veneza segue fora do tempo mas dentro dos livros (e Paul Morand descobre-lhe várias caras em "Venises"). Barcelona é "a grande feiticeira" de Robert Hughes ("Barcelona: the Great Enchantress"), a cidade à qual Colm Tóibín presta homenagem ("Homage to Barcelona"). E para um mergulho na história, Rebecca West não nos deixa esquecer que houve um país chamado Jugoslávia ("Black Lamb and Grey Falcon").
(Faça-se aqui um parênteses, para falar das geografias dos escritores que se tornam dos leitores: Mark Twain continua no Mississipi, Dostoievski deambula por São Peterburgo, Marguerite Duras não regressou da Indochina, William Faulkner é o Sul dos EUA, a Londres de Dickens não se desvaneceu, as irmãs Brontë vivem nas charnecas do Yorkshire, Jorge Amado ainda cheira cravo e canela em Ilhéus, Thomas Mann permanece na "Montanha Mágica", ali pela Europa Central, e E. M. Forster ainda viaja pela Itália.).
Mas, voltando estritamente à literatura de viagens, é inevitável constatar que, com a massificação do turismo e com o "conhecimento" do mundo inteiro, esta se reinventou, propondo aos leitores novas formas de viajar e de percepção do outro que se dissolve no próprio autor. O alemão Lorenz Schröter publicou, em 2002, um relato muito particular do seu périplo alemão montado num burro, enquanto Julio Cortázar e Alain de Botton, respectivamente com "Los Autonautas de la Cosmopista. Un Viaje Atemporal Paris-Marsella "e, mais recente, "A Week at the Airport. A Heathrow Diary", se debruçaram sobre a exploração estética do que Marc Augé chama de "não-lugares" "os lugares de passagem sem significação própria e identidade diferenciada, lugares de trânsito e transitórios que se assemelham entre si em todo o mundo". E aqui entram, por exemplo, estações de comboio, aeroportos ou estações de serviço nas auto-estradas.
Crónica de um futuro anunciado na era do turista repórter
No início do século XIX, houve uma mudança de paradigma na literatura de viagens, com a revolução nos transportes; agora, dois séculos depois, talvez estejamos perto de entrar num novo paradigma. Desta feita à boleia da revolução tecnológica iniciada no século passado, com os computadores e telemóveis.
Fernando Cristóvão, docente da Faculdade de Letras da Universidade Lisboa (FCUL) e coordenador da obra Literatura de viagens Da tradicional à nova e à novíssima, chama-lhe "novíssima literatura de viagens", mas, salvaguarda, este é ainda um rótulo a prazo, "uma experiência". "Ainda estamos a ver se encontramos um corpus que possa ser literário, romanesco". "Novíssima" é a literatura do dia-a-dia veiculada na Internet, em sites, blogues e e-mails, e pelos telemóveis, em sms e mms.
"Muita gente que viaja envia logo e-mails ou fotografias", explica, "na maior parte dos casos, mais imagens do que texto, ao contrário do que acontecia antigamente". Agora, o destinatário é mais interveniente, faz perguntas, constrói a sua narrativa. O próprio estilo literário mudou, é mais sincopado, recorre ao calão. Veja-se, por exemplo, o site Trip Advisor, onde os viajantes deixam breves descrições de viagens, dos monumentos, restaurantes ou bares e partilham fotos.
Mário Matos, director do Departamento de Estudos Germanístico e Eslavos da Universidade do Minho, refere-se a este fenómeno como uma migração para os meios hipermediais a internet, que engloba vários media, como texto, imagens (fixas e em movimento), e que "permite a qualquer indivíduo transformar-se num potencial narrador da viagem". "Na Internet proliferam, aos milhares, os relatos de viagens digitais ou electrónicos que exploram ao máximo as potencialidades da hipertextualidade e da multimedialidade", reflecte. O site Alma de Viajante reflecte esta tendência de transferência medial: é um repositório de crónicas e reportagens de viagem e ao mesmo tempo quase um "diário", quando o autor anda em périplo.
E a migração medial também aconteceu para os audiovisuais, o que reflecte uma "omnipresença transversal" da representação das viagens em todos os meios de comunicação. Por exemplo, na televisão, há canais apenas dedicados aos temas da mobilidade e representações interculturais (como o Travel Channel, Odisseia, Discovery).
Pode não chegar a ser a "novíssima", mas a verdade é que a literatura de viagens tem vindo a contrariar todas as previsões. A "necro-lógica", como lhe chama Mário Matos, que há décadas tem anunciado a morte da viagem e da sua representação literária, que seria induzida pelo turismo de massas e pelos mass media, ainda não chegou aqui.
Quando a literatura é turismo
Quantas pessoas atravessaram (e atravessam) os EUA inspiradas por Jack Kerouac? Quantos não buscam ainda na Patagónia os passos de Chatwin, Paul Theroux ou, até, Francisco Coloane? Pode não ser possível quantificar, mas a verdade é que a literatura de viagens e a literatura em geral está inextrincavelmente interligada ao turismo. É essa a convicção de Mário Matos, director do Departamento de Estudos Germanístico e Eslavos da Universidade do Minho (UM). "É inquestionável que o caminho da literatura de viagens através dos tempos é co-determinado, senão mesmo indelevelmente cunhado, pela crescente mobilidade e, consequentemente, pelo desenvolvimento do turismo".
De tal forma que aconteceu uma pequena perversão: o surgimento do chamado turismo literário, resultado da procura deliberada pelo turista das imagens interculturais veiculadas pela literatura, seja a de viagens seja a romanesca, antiga ou recente. E a perversão surge do facto de, "nos últimos duzentos anos, a literatura de viagens produzida por escritores profissionais definir-se principalmente por tentar representar um ‘contra-programa' cultural ao galopante desenvolvimento do turismo", constata Mário Matos. Era o "maldito turista", alegadamente, "banal, insensível e inculto", em oposição ao "poeta viajante", um verdadeiro esteta e de sensibilidade apurada. Agora, somos todos turistas e a literatura é ela própria parte integrante da indústria turística. De uma forma ou de outra.
É verdade que há quem chegue a Lisboa com o "Livro do Desassossego" debaixo do braço, da mesma forma que em Istambul entram pela mão de Orhan Pamuk, se perdem nas ruas do Cairo com Naguib Mahfouz ou descobrem a Nova Iorque de Paul Auster. Mário Matos refere-se a esse fenómeno como o "uso individual e eclético" que cada turista faz do arquivo colectivo da história da literatura o roteiro é o turista que o faz de acordo com a sua sensibilidade. Mas não é menos verdade que há "pacotes" prontos. O turista em Lisboa pode não ter qualquer ligação especial com a obra de Fernando Pessoa, mas pode viajar com um computador portátil em cujo ecrã passa o DVD, recentemente editado, do "Lisbon Guide by Fernando Pessoa: What the Tourist Should See".
Este é um novo "fenómeno editorial", em que "os guias turísticos propõem ao viajante explorar certa cidade, região ou país ‘nos trilhos' de determinado autor", explica Mário Matos, com a passagem (quase) obrigatória pelas casas-museus dedicadas aos autores que tem proliferado um pouco por todo o lado. Isto vem juntar-se ao "marketing cultural" que começa a ser desenvolvido pelas entidades a um nível local, regional ou mesmo nacional, onde as referências literárias de cada um são promovidas, por exemplo, de forma mais ou menos explícita, nas brochuras turísticas.
O resultado é que Paris nunca mais voltou a ser a mesma depois de "O Código Da Vinci" e, em Inglaterra, a saga Harry Potter é cartaz turístico nacional ambos os casos ampliados devidamente pela passagem ao grande ecrã das obras. Nas livrarias abundam obras de "índole turístico-poética" que sugerem ao viajante conhecer a Praga de Kafka, a Dublin de Joyce, a Paris de Baudelaire, de Proust, da "geração perdida", a Barcelona de Carlos Ruiz Zafón, a Grã-Bretanha de Agatha Christie, a Tânger de Paul Bowles, ou a perseguir as paisagens do sonhador (e fictício) Dom Quixote ou a árida Patagónia descrita por Bruce Chatwin e Paul Theroux. E assim se transformam certos locais e percursos em ícones literários e turísticos.
Os portugueses de olhos postos no além-mar
A literatura de viagens portuguesa não é abundante, mas encontra-se inextrincavelmente ligada ao percurso enquanto nação. Podemos começar na nossa mais celebrada obra literária: em "Os Lusíadas" respiramos como nação em expansão e nessa expansão viajamos pelo mundo por África até ao Oriente do nosso contentamento. Antes, Pero Vaz de Caminha tinha-nos dado a carta do descobrimento do Brasil; depois dele, uma série de autores, deixou-nos a nossa História em literatura de viagens.
Fernão Mendes Pinto é um "gigante" e a "História Trágico Marítima", de João Carvalho Mascarenhas, incontornável. Olhámos para a China com "As Doze Excelências da China", de Gabriel de Magalhães, e continuamos a chegar à Índia com "Relação da Viagem de Vasco da Gama", de Álvaro Velho. No século XIX, perdemo-nos para "África de Angola à Contra-Costa", de Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens, chega em 1886 (e mais de um século após, Pedro Rosa Mendes segue-lhe os passos com "A Baía dos Tigres"), e antes já tínhamos ido "De Benguela às Terras de Laca" mantendo os olhos no Oriente. Na Índia permanecemos com "Os Brahamanes", de Francisco Luís Gomes (1866). Camilo Pessanha não saiu de Macau enquanto Wenceslau de Moraes se perdeu no império nipónico. Entretanto, Eça de Queirós vai ao Egipto e as suas imagens ficam registadas em "O Egipto", que só seria publicado em 1926.
Os ecos do ruir do fim "da expansão da fé e do império" começam a chegar mais tarde. Luandino Vieira descreve a crua realidade do colonialismo português em "Luuanda" (em 1968) e Fernando Assis Pacheco traz a guerra colonial para a metrópole em "Câu Kiên: Um Resumo" (1972), que Francisco Guedes considera "o livro mais terrível sobre a guerra em África". Entretanto, José Saramago faz a sua "Viagem a Portugal". Mais recentemente, Gonçalo Cadilhe, viajante com colaborações regulares em jornais e revistas, tornou-se um fenómeno de vendas, com obras como "Planisfério Pessoal" e "Nos Passos de Magalhães".
Como ele, outros "trota-mundos" fazem a transição dos jornais para os livros entre estes, Ana Isabel Mineiro (colaboradora da Fugas), que publicou, há dois anos, "Onde os Rios Têm Marés", uma viagem pelo Norte do Paquistão. Alexandra Lucas Coelho, grande repórter do Público, optou pelo Afeganistão: no seu "Caderno Afegão" percorremos durante um mês o país "dos talibã" e percebemos que esta designação é mais um lugar-comum avulso.