Viajar por terra no leste de África requer sono leve e um madrugar voluntarioso, caso contrário não se avança no terreno, que isto por aqui é chão que nunca mais acaba.
Para atingir Quiloa, onde me espera a fortaleza mandada construir em 1506 por Dom Francisco de Almeida, necessito de cumprir as etapas Pemba, Mocimboa da Praia e Palma, a mais setentrional povoação da província do Cabo Delgado, na fronteira com a Tanzânia.
Viajo na caixa de carrinhas, de encruzilhada em encruzilhada, longas horas de espera, fundo de picada no horizonte e muitos percalços pelo caminho. De realçar uns inesquecíveis, algo aterradores, 100 quilómetros praticamente sem travões. Nas descidas, felizmente pouco acentuadas, valeu-nos uma estóica primeira que se fartou de gemer.
Generosas mangueiras dão a sua sombra a aldeias de cubatas cobertas com o capim que cresce nas bermas da trilha percorrida por centenas de mulheres, homens e crianças com carregos na cabeça. Inúmeros ciclistas transportam sacos com carvão vegetal, o bem de consumo mais comercializado nestas paragens.
Cena habitual em África: população, dir-se-ia, num êxodo permanente, quando, afinal, macuas e macondes, etnias predominantes, se limitam a locomover, de aldeia em aldeia.
A nossa carrinha transporta ladrilhos, três caixilhos de alumínio para pendurar cortinas e quatro homens com a missão de preparar um palanque condigno para o presidente moçambicano, que, proximidade eleitoral o exige, visitará em breve a região.
Chegamos a Palma já de manhã, após uma madrugada dormida à bela estrela.
Um mero acaso conduz-me ao encontro de Mussa Abdulai, um desses moçambicanos miscigenados que preferiria que os portugueses nunca tivessem partido. Este empreiteiro oferece-se para me levar à fronteira e fala-me das ilhas de Ibo e das Quirimbas, terra de antigos aliados de Vasco da Gama. “Se calhar vamos ver elefantes”, alerta, enquanto, aos solavancos, o seu todo-o-terreno procura caminho pelo estradão de saibro e areia.
Na época seca, o rio Rovuma pode ser atravessado a vau, mas agora que abundam as águas e rareiam os viajantes, o preço da passagem é aquele que o barqueiro quiser cobrar.
Desembolsados os 30 dólares pela travessia e os 50 pelo visto tanzaniano, espera-me outra meia centena de quilómetros de terra batida, até Mtwara, a primeira povoação tanzaniana digna desse nome.
Às 5 da manhã do terceiro dia de jornada, eis-me numa camioneta que alegremente testa o asfalto financiado pelo general Kadafi, que nisto de construção de estradas em África anda em aberta concorrência com os chineses. Mas a empreitada do líbio não está concluída, e cedo compreendo o alerta para “uns 60 quilómetros em mau estado”. Mau estado?! Melhor é dizer, pesadelo de poeira e buracos.
Kilwa Masoko é a antecâmara continental da ilha da Quiloa, que apesar do título Património da Humanidade que ostenta desde 1981, não é propriamente considerada atracção turística.
A travessia faz-se de “dhow” e é emocionante. Desfraldada a vela, num instante pomo-nos ao largo. Na ilha de Moçambique limitara-me a avistar estas belas embarcações, inspiradoras da nossa caravela; agora estava dentro de uma delas, adornando a bombordo, o que obriga a movimentação de passageiros para equilibrar a coisa.
O forte de Quiloa, a Gereza como lhe chamam aqui, surge-nos pela frente, recortado num céu azul.
Enriquecem o quadro uma série de barcos varados num fundo lamacento rico em moluscos que a maré vaza revela.
Só o torreão da Gereza (que significa prisão em “swahili”) mantém a origem portuguesa. A restante estrutura sofreu transformações depois de termos abandonado a ilha, em 1512, dando lugar aos sultões omanitas, que se revezariam no poder durante séculos.
À sombra das ameias, pescadores remendam a lona das velas triangulares e os estudantes de uma escola corânica decoram em voz alta passagens do livro sagrado. Poderia ficar por aqui toda a tarde mas, antes do regresso, justifica-se uma visita à mesquita e ao palácio de Makutani, comprovativos arquitectónicos de que Quiloa sempre foi um dos principais portos da África ocidental.
Já em 1332, Ibn Batuta, o famoso viajante e geógrafo marroquino, falava em “edifícios construídos de pedra de coral” e em “estruturas formidáveis de vários pisos”.
Infelizmente, desde 2004 que este local integra a nada prestigiante lista do Património Mundial em Perigo.
A 10 de Junho serão conhecidas as 7 maravilhas de origem portuguesa. A Fortaleza de Quiloa é uma das 27 que estão na corrida para a eleição. A votação está a decorrer em www.7maravilhas.sapo.pt