Fugas - Viagens

Muro de Berlim

Muro de Berlim Paulo Pimenta

Berlim - O muro real e o virtual

Por Luís Maio

O Muro, duas décadas após o fim da Guerra Fria, continua a ser uma das maiores atracções turísticas de Berlim. Mas o Muro já quase não mora lá e a sua existência é quase puramente virtual.

São nove horas da manhã e a Pariser Platz, aos pés da monumental Porta de Brandemburgo, está praticamente vazia. O que torna ainda mais surreal a imagem de um soldado vestido a preceito com um uniforme da tropa da antiga Alemanha de Leste, pintado de prateado da cabeça aos pés. Posa em sentido, como numa parada, em pleno coração da praça, agora restaurada e emoldurada por majestosas embaixadas e sedes de banco. É o típico homem-estátua, que não fala, mas chama quem passa por gestos, para que se aproximem e se deixem fotografar ao seu lado. Depois estende a mão, numa pose teatralmente autoritária.

Meia hora depois a praça vai-se enchendo de turistas, quando chegam mais três "actores": um de uniforme soviético, outro de uniforme norte-americano, ambos com as bandeiras respectivas, e um terceiro dentro de um fato de gorila (!). O ritual das fotografias em troca de euros repete-se, mas agora num registo bem mais social, estilo grande confraternização internacional.

Hoje sitiada por colossais arranha-céus de vidros espelhados, Potsdamer Platz pouca memória arquitectónica conserva do tempo em que foi retalhada pelo Muro. A memória é, porém, avivada por meia dúzia de placas de betão, instaladas a poucos metros da nova entrada envidraçada da estação de metro. O primeiro a chegar ao "memorial" é um velhote que vende postais panorâmicos -mas àquela hora matinal o que ele mais faz é dar informações de trânsito e engatar dois dedos de conversa com quem passa.

Às dez em ponto da manhã chega outro actor, um rapaz alto, louro e vestido como soldado da RDA, desta feita acompanhado por um ajudante à civil, de cabelo escuro e oleoso, que parece ser de origem turca. O seu trabalho consiste em trazer e montar a mesa, a cadeira e o chapéu-de-sol (ou de chuva), para o outro se sentar a passar o resto do dia a carimbar falsos vistos de entrada na RDA aos turistas e inclusive a turmas inteiras de escolas das vizinhanças.

O terceiro vértice do "Triângulo do Muro" na cidade antiga é Checkpoint Charlie. Era a mais central das três fronteiras internacionais criadas no rescaldo da Segunda Grande Guerra, mas também a mais crítica por ser a única entre os seus sectores Ocidental e Oriental. É agora, sobretudo neste ano de comemorações, o sítio mais concorrido do Antigo Muro. Qualquer hora é hora de ponta nos passeios em redor, que facilmente transbordam com magotes de gente, semeando o caos na circulação automóvel. Só para tornar a confusão maior, o antigo posto fronteiriço fica num cruzamento e em cada esquina está montado um negócio diferente. Vai da impressão de carimbos falsos a bancas de "matrioskas" e barretes soviéticos, passando por música ao vivo.

No antigo posto fronteiriço, ou melhor, no seu duplo mais recentemente construído, há também actores com uniformes militares, desta feita em representação dos exércitos alemão, francês e soviético. Têm a cara tapada, ou melhor, velada pela bandeira correspondente e um pequeno cartaz aos pés, assegurando que se deixam fotografar à razão de um euro por chapa.

Os homens-estátua e outros actores nos sítios do Muro cumprem rigorosamente oito horas de trabalho. Pudemos confirmar que o oficial prateado que entra às nove sai às cinco, enquanto o macaco e os outros dois que entram 30 minutos depois também se demoram mais meia hora na Porta de Brandemburgo. A excepção será o oficial francês Checkpoint Charlie, que faz certamente horas extraordinárias o que, aliás, se comprova pelo castanho estampado na pele do rosto, mais entranhado que a de alguns mendigos. Este teatro é uma diversão segura para os turistas que andam em peregrinação pelos sítios do Muro, mas quem se demorar um pouco vai acabar por perguntar se os figurantes e todo o bazar anexo são um negócio público ou privado. Sobretudo, quem mandou para ali toda aquela trupe de falsos militares?

Não, não fazem parte das comemorações oficiais, antes pelo contrário. Os jornais alemães "online" são muito claros: os gestores públicos e os políticos, sobretudo os de centro-direita, condenam absolutamente semelhante teatro. Desfigura lugares históricos, adultera a própria história (nunca houve soldados americanos e soviéticos em Pariser Platz), convertendo o centro de Berlim numa espécie de disneylândia. Razões semelhantes levaram à proibição dos vendedores de salsichas e "souvenirs" na Porta de Brandemburgo. Mas as censuras dos políticos são ineficazes contra os actores de rua, porque não há nenhuma lei que os proíba de ganharem a vida a tirarem fotos com os turistas.

Os falsos soldados defendem-se, por sua vez, argumentando que estão a promover o turismo e a criar um ambiente de festa em espaços públicos onde, antes deles, era a completa desolação. Nesse ponto, pelo menos, tem de se lhes conceder algum crédito. Exemplarmente restaurada, a Pariser Platz é hoje um dos mais bonitos espaços públicos da capital alemã, mas sem animação acaba também por ser um sítio estéril e tristonho, pior que o Terreiro do Paço, que aqui nem há rio para pousar a vista.


Estratégias de substituição

O tristemente famoso Die Mauer (O Muro) foi criado a 13 de Agosto de 1961 por iniciativa do governo da RDA, como uma "barreira de protecção antifascista", ou mais prosaicamente como último recurso para estancar o crescente êxodo para Ocidente da população da Alemanha de Leste. Erguido ao longo de mais de 160 quilómetros de fronteira, era formado por placas de betão de 3,6 metros de altura, reforçadas por uma "terra de ninguém", que variava entre cinco e várias centenas de metros de largura, povoada por arame farpado, minas e torres de observação. O muro começou a ser amputado desde o colapso do regime comunista, no Outono de 1989, nomeadamente pelos chamados "pica-paus". Levaram pedaços, mas também placas inteiras, que acabaram em museus, colecções particulares e até nos urinóis de um casino de Las Vegas.

Eram mesmo assim 160 quilómetros de barreira e hoje ainda haveria certamente um pedaço gratuito para toda a gente, se entretanto o governo de Lothar DeMaiziere único eleito democraticamente na RDA não tivesse despachado rapidamente a "Questão do Muro" mal entrou em funções, na Primavera de 1990.

Mandou desmantelá-lo na íntegra e até contratou para o efeito uma empresa de demolições de Berlim Ocidental, que completou o trabalho em finais de 1991. Devem ter armazenado boa parte desse entulho, porque ainda hoje há fragmentos "autênticos" do Muro à venda na maior parte das lojas de "souvenirs" da cidade mas isso é outra história, ou melhor, outro corolário da mesma história de ausência. Em qualquer caso, na altura das demolições quase não se registaram protestos, nem a Ocidente, nem a Oriente. À medida, porém, que o tempo foi passando foi também crescendo a consciência do valor histórico e simbólico do Muro, o que naturalmente fez disparar a sua cotação turística.

O Muro, na realidade, foi sempre uma atracção turística. Era uma aberração, sem dúvida, mas durante os mais de 28 anos em que se manteve de pé ofereceu aos turistas uma experiência tangível do horror incluindo seguir tentativas de fuga, ao vivo e em directo, do outro lado do passeio em Bernauer Strass, onde agora está montado um "complexo memorial". Depois da queda, a maior do Muro, sobretudo os pontos mais negros da sua história no centro da cidade deram lugar a um intenso frenesim imobiliário. Esta vertigem de desenvolvimento levou à demolição, ou em alternativa à integração dos seus bastiões em novos equipamentos. É o caso dos fragmentos do Muro que decoram o "lobby" do novo Ministério do Ambiente (que, por sua vez se instalou no Ministério Prussiano da Agricultura), mas também da torre de observação fronteiriça em Erna-Berger Strasse, frente à Potsdamer Platz, deslocada alguns metros depois da Reunificação para dar lugar a novos arranha-céus.

Chegou ao ponto em que muitos visitantes e mesmo os habitantes dos escalões mais jovens têm dificuldade em perceber o traçado da antiga fronteira fortificada. É, na verdade, a pergunta mais frequente colocada pelos turistas: e então onde é que era o Muro? A resposta está, como sempre, na net (www.berlin.de/mauer), mas também nas ruas, assumindo a forma de uma dupla tira de godos, pontuada por placas de metal com a inscrição "Berliner Mauer 1961-1989", que agora serpenteia pelo pavimento de passeios e ruas do centro da cidade.

A operação de anamnese passa também por um circuito de contextualização, constituído por 29 conjuntos de painéis de informação com fotografias históricas e explicações sobre as principais estações do antigo traçado do Muro. Um terceiro expediente são sete criações artísticas colocadas em igual número de antigos postos de cruzamento de fronteira. Destacam-se as "Ohne Titel" (caixas de luzes) de Frank Thiel (1998), dois retratos gigantes, um de um soldado americano, outro de um russo, colados um contra o outro, oito metros acima do trânsito, sobre Checkpoint Charlie. O americano olha para Berlim Este, o russo para Oeste, sendo que os dois retratos foram tirados em 1994, antes da retirada definitiva dos Aliados.

Um punhado de obras de arte, um conjunto de painéis informativos, mais uma tira de godos são boas soluções para manter as memórias em dia, mas não são o Muro verdadeiro. Resta, em pleno centro da cidade, um único troço contínuo de muro em pé, que se estende por cerca de 160 metros de Niederkirchner Strasse, a dois passos de Checkpoint Charlie. Este sim, é o artigo genuíno, ainda mais inquietante e sórdido pelo estado de iminente derrocada em que se encontra. Nada em Berlim é tão Cortina de Ferro, ou capaz de traduzir a experiência de 28 anos de muro traumático, quanto esta tira de betão em ruínas. Vai certamente deixar de ser tão contundente e bem mais bonito quando for intervencionado e passar a estar vedado, como parte integrante de um novo núcleo monumental, centrado no vizinho antigo quartel-general da Gestapo.

Intervenções artísticas

Em 1990, já o Muro caminhava para o desmantelamento, um grupo de artistas designado Kani Alavi descobriu uma parcela de 1,3 quilómetros que tinha permanecido intacta. Assim nasceu a East Side Gallery, conhecida como a maior galeria de arte a céu aberto do mundo. Antes disso, na verdade praticamente desde a construção, as paredes do Muro serviram para exprimir a sua própria condenação. Começou com a escrita de epigramas de natureza política, nos anos 60, a que depois se vieram acrescentar posters, estandartes e toda a gama de novos meios de protesto visual, típicos do final dessa década.

A escrita de "graffiti", originária de Nova Iorque, foi introduzida na primeira metade dos anos 80, sobretudo a partir de Kreuzberg e da corrente neo-expressionista dos "Neue Wilden" (novos selvagens), que nasceu nesse bairro degradado, então colonizado por estudantes, emigrantes e artistas. Na quarta e última geração de blocos de betão do Muro (1983), mais largos e de superfície mais suave, "graffiters" e artistas de rua reconheceram a tela ideal, levando-os a arriscar atravessar ilegalmente a fronteira para intervirem no Muro, sempre colocado três ou quatro metros mais à frente, no interior da RDA. Houve algumas detenções, mas sem grandes consequências, e assim os principais pólos turísticos da cidade, como a Porta de Brandemburgo e a Potsdamer Platz, rapidamente foram decorados com peças de grande escala (e impacto). O fenómeno envolveu não apenas artistas locais, mas muitos estrangeiros e o nova-iorquino Keith Haring foi mesmo chamado a pintar mais de 100 metros de Muro (1986), nas imediações de Checkpoint Charlie.

Era uma fabulosa colecção de arte de rua, que naturalmente foi riscada do mapa quando o Muro foi demolido. Esse vazio acabou por ser de algum modo compensado pela East Side Gallery, um troço esquecido que veio a ser intervencionado por um grupo de artistas, boa parte originários do núcleo original de Kreuzberg. Corre ao longo da Muhlenstrasse, entre a ponte de Oberbaum e a estação ferroviária de Ost, e tem a particularidade de ser a única parcela substancial de muro pintada na sua face oriental, uma vez que as restrições de circulação entre os dois lados da fronteira na altura já tinham sido levantadas. O projecto envolveu 118 artistas, que assinaram igual número de peças, algumas das quais se tornaram em emblemas instantâneos de Berlim, como a imagem do Trabant que rompe o muro (Birgit Kinder), o beijo dos líderes Erich Honeker e Leonid Brezhnev (Dmitri Vrubel), ou os gigantones de Thierry Noir.

Uma série de factores, que vão da poluição ao vandalismo, convergiram para a degradação da East Side Gallery, até que a edilidade lançou um ambicioso projecto de recuperação, aproveitando este ano de comemorações. O restauro, que será inaugurado em Novembro, envolveu polir o betão, desenferrujar as vigas e apagar todos os "graffiti", antes de estes voltarem a ser pintados pelos seus autores. O projecto é coordenado por Thierry Noir, que assegurou o concurso da maior parte dos artistas envolvidos (84), contra a remuneração de 3000€. Alguns, no entanto, acharam essa quantia um insulto, enquanto outros aceitaram intervir, mas não repetir as imagens que criaram há vinte anos.

Repor as pinturas originais, apagando as camadas de imagens e mensagens que se lhe foram sobrepondo durante duas décadas, também não resulta pacífico. Não saberemos mais, por exemplo, que um habitante de Braga se entusiasmou e deixou a sua assinatura sobre uma pintura da Porta de Brandemburgo. A recriação da East Side Gallery faz parte, por outro lado, de um plano mais amplo de reabilitação urbana do bairro da ex-RDA em que se inscreve, um projecto que prevê apartamentos de luxo, centros comerciais e a conversão da zona ribeirinha num plácido relvado para piqueniques. Já construído está um gigantesco pavilhão multiusos, cujos painéis publicitários com imagens de estrelas actuais, como Beyoncé ou André Rieu, acabam por ofuscar e trivializar as pinturas históricas do Muro.


Um mito chamado Trabant

Um fabricante alemão de miniaturas de automóveis e aviões chamado Herpa conhece bem o encanto e poder de sedução do Trabant original pela simples razão que este é o seu produto mais vendido. Logo, fez todo o sentido que, no Salão Automóvel de Frankfurt de 2007, ano em que o Trabant comemorou 50 anos de existência, a Herpa exibisse uma miniatura do que poderia ser um sucessor do carro mais visto a seguir à queda do Muro de Berlim, em 1989, com milhares de alemães de Leste a bordo em direcção ao lado ocidental.

A Herpa não desistiu do projecto e, na edição de 2009 do Salão de Frankfurt de 2009, que acabou há poucos dias, apresentou mesmo um protótipo, baptizado Trabant nT. A simplicidade é a tónica e este "trabi" do século XXI está bem adaptado às novas orientações da indústria automóvel. É movido por um motor eléctrico de 64 cavalos, que lhe permite atingir uma velocidade máxima de 130 km/h e uma autonomia anunciada de 160 km. Para recarregar a totalidade da bateria são necessárias oito horas na ficha eléctrica lá de casa.

A Herpa não duvida do enorme capital de simpatia que o Trabant original conquistou ao longo dos anos e espera conseguir um parceiro com capacidade técnica e financeira para produzir o seu sucessor em série. O objectivo passa por vender o Trabant nT, em 2012, por um preço a rondar 20.000 euros.

Entre muitas outras referências, para além de integrar a letra da música "Budapeste", dos Mão Morta, o Trabant "brilhou" também no filme "Gato preto gato branco", de Emir Kusturica, numa cena em que um porco comia partes de um destes carros da Alemanha de Leste. As más-línguas diziam que o Trabant era feito de papel prensado, o que não corresponde bem à verdade. Na realidade, os painéis exteriores deste automóvel eram feitos de um composto chamado Duroplast, obtido a partir de resina de plástico com fios de algodão e lã. (Aníbal Rodrigues)

Como ir
Easyjet, Lisboa - Berlim directo com preços em redor dos 70/80€ por voo (preços 2011).

Como circular
Explorar a antiga Berlim de Leste ao volante de um Trabant, o "carro maravilha" da RDA, é uma daquelas armadilhas turísticas em que apetece mesmo cair. Há relíquias em perfeito funcionamento e pintadas de cores garridas, prontas a ser alugadas, à sombra do Balão do Mundo (telefone: +49 30 27592273), a um quarteirão de Checkpoint Charlie. Preço do aluguer: 30€ à hora por pessoa com quatro ocupantes, quantia que vai subindo até aos 60€ no caso de ocupação individual. Bem mais económico, ecológico e também susceptível de produzir uma agradável retro-experiência é alugar uma bicicleta por um dia (10€).

Onde dormir
Ostel-Das DDR Design Hostel
Wriezener Karree 5
Telefone: + 49 30 25768860
Situado num típico Plattenbau (prédio de apartamentos da RDA), o Ostel é um hotel temático em que cada quarto é decorado à moda da Alemanha de Leste, incluindo fotos de Eric Honecker sobre as camas. Fica a dois passos da East Side Gallery e de alguns dos melhores clubes de Berlim. Duplos desde 40€.

Onde comer
Café Adler
Friedrichstrasse 206
Telefone: +49 30 2518965
Ocupando uma das esquinas de Checkpoint Charlie, este café era um balcão privilegiado, onde os alemães ocidentais iam contemplar a vida do outro lado do Muro. Inspirou "O Espião Que Veio do Frio", de John Le Carré, e foi reconstituído em estúdio para o filme tirado do romance com Richard Burton no principal papel. Agora restaurado, serve snacks e comida tradicional alemã, mas nas horas mortas ainda é frequentado por fantasmas de outro tempo.

O que fazer
Se do Muro já pouco resta, em contrapartida há ainda muita arquitectura de inspiração comunista que (ainda) não foi demolida Berlim. O melhor exemplo é a Karl-Marx-Allee, bairro próximo de Alexanderplatz, em tempos publicitada como a resposta da RDA aos Campos Elísios. Mas quem vive em Moscovo aqui também se sente em casa.

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